segunda-feira, 12 de julho de 2010

"Mary e Max – Uma Amizade Diferente"

Cloves Geraldo *

Iguais e diferentes

Animação do diretor australiano Adam Elliot trata de amizade e frustrações que as estruturas sociais causam às pessoas

                As vidas de dois seres quase improváveis permitem ao diretor australiano Adam Elliot discutir as relações sociais nos tempos atuais. A partir da história real da garota australiana Mary Dinkle, 8 anos, e do estadunidense Max Horovitz, 44 anos, ele se vale da animação para estruturar sua narrativa, centrada em estados de espírito, visões de mundo, desencontros amorosos, compulsão consumista e, sobretudo, amizade entre eles. Uma história que atravessa 20 anos, entre altos e baixos, retraimento e fuga da realidade com que ambos se deparam, para manter vivas suas expectativas.
                Elliot, responsável pelo roteiro, direção e animação, estrutura a narrativa de modo a que o espectador não perceba que está diante de personagens que agem como pessoas reais. Vale-se das vozes dos atores Toni Collete (Mary), Philip Seymour Hoffman (Max) e Eric Bana (Damian) para torná-los críveis, próximos dele, espectador. Diferentes das dublagens das animações tradicionais que enfatizam encantamento e medo, jogando com suas emoções.
                Além disso, os ambientes/cenários contribuem para esta verossimilhança. Sombrios, amarronzados; dão densidade ao clima opressivo em que Mary e Max vivem. Móveis, utensílios, fotografias e animais, longe de serem decorativos, são extensões de ambos. Gordinha, inquieta, insatisfeita consigo e com os pais, ela tenta evadir-se de sua casa; ele, obeso, sofrendo da Síndrome de Asperger (espécie de autismo), mal consegue se deslocar pelo seu apartamento. Elliot trabalha-os não com suas fraturas, prefere dotá-los de humor corrosivo, criativo, tornando-os interessantes, simpáticos, até.
                Difícil conduzir uma narrativa assim, sem deixá-la cansar o espectador, por mais que o diretor/amimador tenha encontrado um equilíbrio nas sequências, cenas e entrechos. Trata-se de animação sem grandes lances de ação e desfecho grandioso. Elliot consegue manter o espectador atento pela forma como sua câmera foca os personagens. Ela está sempre próxima de Mary, de sua mãe, de seu galo; sempre situando Max entre móveis, utensílios e seu peixe no aquário. Quando dele se aproxima é para captar suas reações à vida ou para concentrar-se numa carta de ou para Mary.
             Preferências cotidianas unem Max e Mary
             Este tipo de narrativa ajuda o espectador entender o papel dos cenários. Tanto Mary, vivendo no subúrbio de Melbourne,  Austrália,  quanto Max, morando em Nova York, compensam suas carências de formas adversas. Ela tentando escapar à solidão, ao alcoolismo e roubos da mãe; ele entupindo-se de chocolate e fugindo da colega do grupo de tratamento de Asperger consume seu dia vendo tv. No entanto, eles têm em comum gostar do mesmo programa de televisão e compensar suas frustrações convivendo com animais – Mary com um galo, Max com um peixinho.
                Estes são mais que bichos de estimação, viram muletas, substitutos de pais, amigos, amantes, companheiros/as. Mary procura substituir estas compensações à medida que cresce. Consegue alguém para discutir suas carências; Max, cada vez mais velho, mantém-se solitário, comendo cada vez mais chocolates. Elliot nesta caracterização introduz um elemento importante para a compreensão de ambos: o que leva uma garota australiana a se tornar amiga por duas décadas de um estadunidense sem esperança alguma de elevar-se de patamar numa sociedade de massa?
                A resposta é simples: seus pontos em comum. Justamente aquilo que, em princípio, poderia ser improvável. Mas não é. São duas pessoas comuns. Gostam do mesmo programa de TV e adoram chocolate. Através destes marcos de identidade, elas trocam cartas, presentes e ficam cada vez mais próximas. Elliot dota-os de humor e criatividade para mostrar o quanto são diferentes, o  quanto são iguais. Principalmente, quando ela, iniciando a amizade quer saber como surgem os bebês nos EUA.  A resposta que ele lhe dá é hilariante, corrosiva, daquelas que fazem rir e pensar na mordacidade de Max para com padres, rabinos e freiras.
                São nestas sequências que os comentários ácidos do judeu Max e as inquietações da sensível Mary levam o espectador a entender o que, na verdade, quer Elliot. Mostrar como ambos são vítimas das estruturas sociais, capitalistas, feitas supostamente para “o bem estar” e terminam causando dores e frustrações. Max é um faz tudo, ex-comunista, que não sonha com mais nada. Seu horizonte vai apenas até pilhas e pilhas de caixas de chocolate. O de Mary, depois de tentar escapar à solidão, é o de mãe solteira em busca de uma saída. Elliot, mesmo assim, evita cair no pessimismo: Mary encontra nas cartas de Max, pregadas na parede do apartamento dele, a satisfação de tê-lo tido como amigo.
Um belo filme, em que a sobriedade narrativa em off de Barry Humphries ajuda a compreender melhor a natureza humana e as estruturas que os aprisiona. Nem se percebe os recursos de animação usados por Elliot. Eles estão ali para compor um quadro dos tempos atuais, cheios de carências e poucas compensações.

Mary e Max – Uma amizade Diferente” (“Mary e Max”). Drama. Animação. Austrália. 2009. 93 minutos. Roteiro, Direção, Animação: Adam Elliot.


* Jornalista e cineasta, dirigiu os documentários "TerraMãe", "O Mestre do Cidadão" e "Paulão, lider popular". Escreveu novelas infantis,  "Os Grilos" e "Também os Galos não Cantam".

Fonte: http://www.vermelho.org.br/coluna