quarta-feira, 20 de setembro de 2023

A via crucis de Luc Vankrunkelsven no Brasil

OBSERVAÇÃO! O escritor belga Luc Vankrunkelsven infelizmente faleceu em 15 de setembro em um hospital na cidade de Chapecó/SC

Viver é atravessar o tempo - sim, no estrito sentido de romper, transversalizar. Transpor as barreiras materializadas para nos deter. É enfrentá-lo desigualmente em seu terreno feito de tempestades, ciclones, vendavais que nos impactam quentes, gélidos, fortes ou suaves. De todo modo, estamos expostos em savana aberta, desnudados sem um abrigo para nossa integridade. É uma batalha desigual, para corajosos! Para os que fazem da ousadia, flecha de horizontes. É a teimosia, como força motriz dos que se negam parar. E só assim, para começarmos a entender certa coisas. – Entre elas, as jornadas de Luc Vankrunkelsven.

Minha vida já transpôs quatro décadas, muitas brisas e vendavais. Enxergo logo ali, meio século de existência. Vivi o suficiente para recordar-se de belezas. E claro: às experiências que nos mostram a fragilidade da vida ante os seus infortúnios. - Confesso! Foi doloroso reencontrar no aeroporto o companheiro de jornadas Luc Vankrunkelsven literalmente em batalha final com a ‘Esclerose Lateral Amiotrófica’ (ELA): sem voz, sem passos, sem oxigênio, sem horizontes – uma escatologia do inevitável. Embora eu tenha vivido tantas experiências como essa agora, nunca aprendemos. Pois o sofrimento é algo que nos inquieta, não há paz de espírito.
Na década de noventa, seminarista e estudante de filosofia, pesquisando sobre o ‘Sentido da Vida’ no pensamento do vienense Viktor Emil Frankl, fui voluntário em uma organização social para cuidados a portadores da 'Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS)' numa grande capital do Brasil. Era um tempo de pouca profilaxia para a doença. Neste lugar, vi muitas vezes a vida escoar como areia fina nos braços de adoecidos samaritanos – também portadores da doença. Mas que cuidar do outro em fase terminal, os acrescentava sentido a própria existência, como condenados ao mesmo fim. Muitas vezes ali chorei, como as velas choram enquanto morrem iluminando. Ali havia morte assistida, entre iguais, acalentadas apenas por aqueles que também, enxergavam diante dos próprios olhos, seus destinos pré-definidos - via crucis, calvários inevitáveis!
Acostumado? Jamais! - A gente nunca se acostuma com isso! Despedidas não comportam preparações. Aceitar os limites de nossa passagem é, ou sempre será difícil demais. Se viver é imitar as estações do ano, o belga Luc Vankrunkelsven vive o inverno de sua vida neste momento. Ironia ou não, no alvorecer da primavera deste sul do Brasil – na cidade de Chapecó, Santa Catarina. O lugar que fixou suas raízes profundamente como uma planta do Cerrado, o bioma que ganhou seu coração. – E agora, como o Cristo que enfrentou dias sombrios de Nazaré a Cafarnaum e desta, até a cruz em Jerusalém, Luc enfrentou de Bruxelas à Brasília, Goiânia, Bahia, Minas Gerais e Chapecó (SC) sua dolorosa via crucis.
Nossos pré-julgamentos, frias racionalizações, quase sempre incompreensíveis insistem saber: O que leva um europeu doente atravessar o oceano em uma longa e cansativa viagem? - O que o encoraja, mesmo ante os infortúnios da ‘Esclerose Lateral Amiotrófica’? – Apesar de nossas inquietudes, emerge a certeza: não pertence a nós a busca por uma resposta! Nossa missão seria sua recuperação ou mesmo, minimizar seus sofrimentos. Os últimos dias, foram tempos de acolhida, presença fraterna ao lado do casal de belgas Hermann Wauters e Siska Blonde, seus amigos incondicionais. Neles vemos uma presença de José e Maria, plenitude de cuidados, lealdade, ternura e amor. Entregaram suas vitalidades nessa via dolorosa como ventre que protege e o acalenta na dura jornada da Bélgica até esse Brasil. E juntos, inevitavelmente percorreram também suas próprias via crucis – sem fugir!
Pelo caminho contaram com a ajuda de amigos, companheiros de outras jornadas, do obstinado eco filósofo belga Luc. O que nos reconecta ao caminho do calvário de Cristo, onde os amigos o esperavam ao longo da via dolorosa. Não é metáfora, assemelha-se ao recontar da história vivida na própria carne. É a sua travessia, inevitavelmente a última como nos disse meses atrás. É o que se revela em seu rosto sofrido, seu corpo em autofagia. O semblante destroçado se revela como os açoites. A cama no Centro de Formação das Mulheres Camponesas (MMC) em Chapecó o acolhe inicialmente como colo de mãe, e o lençol do hospital o enrola como sudário nestes dias finais.
Luc carregou sua pesada cruz pelo caminho. Cruzou as estações da indiferença, criticado por seu trabalho em defesa da ‘Casa Comum’, atravessou suas estações de quedas, caiu e levantou-se muitas vezes nos últimos dias. De Brasília à Chapecó cruza as estações de encontros com amigos, companheiros de jornadas pelo caminho que escolheu fazer. É tempo de despedida e a queria presencialmente! Sem fazer questão de esconder seu estado de saúde. Manifestou momentos de medo ao ficar sozinho, revelando a sua humanidade, como o próprio Cristo que humanamente chorou no Jardim do Getsêmani. E Luc também corajosamente seguiu para as estações finais, mesmo quando seus amigos o tentaram convencer que deveria cancelar a jornada, preservando forças para seu retorno a Bélgica.
Mas os dias foram nos mostrando, que embora seu coração quisesse seguir, seu corpo dizia não, e clinicamente sucumbia. O homem determinado que conhecemos ao longo dos anos, entrava na sua batalha final. E mesmo ante os açoites implacáveis desde que chegou ao Brasil, nenhum de nossos argumentos o convenceu aliviar o peso da cruz. E então, por onde passou, seus amigos o acompanharam na dolorosa jornada. Impotentes com nossas racionalizações buscando reduzir seu sofrimento, fomos cancelando todos os eventos aqui na região sul. Pois, não foram poucos os momentos que ficamos atônitos, ante o ser humano que parecia não aceitar o fim sem a sua cruz, pois insistia seguir.
Este é Luc Vankrunkelsven, o admirável norbertino que fez do mundo sua abadia. Das causas sociais, ambientais, humanitárias seu sacerdócio e sacrifício. Do próprio sofrimento a travessia final de seu oceano de bondade, continente de entrega e reflexão. Ele parece viver tudo na própria carne. Não só como projeto existencial e espiritual que escolheu, mas sentido de sua vida, oxigênio de sua via crucis. Nos entregou muito de si, revelando o sentido de convicção profunda no ser humano. E diante de todos, irredutível abriu caminho para o calvário – foi pedagógico a todos, embora nem todos possam suportar. E fez, porque convicção profunda significa: saber o que fazemos, porque fazemos e assumir para si às consequências até o fim - sem fugir. Foi o que fez!
Precisa mais para tentarmos entendê-lo? Está claro que não! O monge da abadia de Averbode nos conecta a Ramón Cué Romano, padre jesuíta espanhol, que escreveu uma das mais inquieta narrativas sobre os infortúnios da existência na obra ‘Mi Cristo Roto’ (Meu Cristo Partido) – neste monólogo diz que uma cruz sem Cristo e um Cristo sem cruz perdem o sentido. Isso pode explicar o porquê da última viagem deste belga, mesmo ante os infortúnios de sua saúde. Sua teimosia é seiva do Bioma Cerrado, pão ao caboclo sertanejo com fome, escudo do indígena, resistência do quilombola ameaçado. Sua teimosia é martelo que rompe grilhões da escravidão oculta, seu coração Oasis de outro mundo possível. – Ele está todo aí, humanamente exposto a todos nós.
Sim! Tem sido triste, devastador, nada parece nos acalentar diante do quadro que presenciamos. Pois como uma vela acessa ao vento parece que irá apagar a qualquer momento. Mas se tem algo que é impossível negar, é que até no sofrimento nos entrega o mais profundo de si mesmo: que viver não é fugir dos desígnios que a nós estão postos. Que amor a vida não é fuga. Que coragem é não ter vergonha de apresentar-se diante dos seus, independentemente de aparência física. Que convicção mantém vivo os sonhos e as convicções dentro da gente.
E o mais importante: que não é a morte do corpo que deve nos entristecer, mas do espírito, da alma, dos projetos que escolhemos viver. Pois viver não cabe em racionalizações e preceitos. A cruz não é ponto final, mas travessia de corajosos, movidos por amor a suas causas, ou as causas do mundo. E que amar o que se faz, é viver para sempre: para si mesmo, para os outros e não sucumbir aos infortúnios do tempo. Talvez por isso faça-se necessário compreender sua ‘via crucis’ não como a estação final – mas convite, convocação para seguirmos além. Pois quem vive assim não morre, é semente que renasce todos os dias. Esse belga viverá conosco para sempre!

Texto publicado em 13 de setembro de 2023 - Chapecó/SC - Brasil
Prof. Neuri A Alves - Filósofo Pesquisador