segunda-feira, 12 de julho de 2010

Dragão de Jorge


Aposentadoria é quando o Dragão vira donzela, quando a batalha dá lugar ao gozo. Mas o simplesmente gozar não nos foi ensinado. E mergulhamos então na tristeza da depressão.


                                                                                       
   Rubem Alves*              

Sou Professor universitário, no gozo da liberdade que a aposentadoria  traz, tinha agora tempo para ler os livros que não lera, fazer as viagens que não fizera, ou simplesmente tempo para vagabundear. Sobravam-lhe as razões para viver o que William Blake escrevera: "No tempo de semear, aprender; no tempo de colher, ensinar; no tempo do inverno, gozar...". Seu inverno chegara. Estava aposentado, livre da compulsão prática que o trabalho impõe. Podia entregar-se a realizar os sonhos com que sempre sonhara. Chegara o tempo de gozar.

 
Minha cabeça, ao se defrontar com um enigma, faz o que faziam os gregos: ela inventa histórias, mitos. Pois foi isso que aconteceu. Baixou-me a história que passo a contar para explicar a incapacidade de gozar quando é tempo de gozar. "Desde muitos séculos, São Jorge fora um habitante da Lua. Romântica quando vista da Terra, a Lua era a arena de uma batalha diária entre o Santo Guerreiro e o Dragão da Maldade. Todas as manhãs, ao acordar, São Jorge sabia: havia uma missão que só ele poderia cumprir.

Era esse sentimento quase religioso de missão e de dever que dava sentido à sua vida. Bem que ele poderia ter matado o Dragão séculos antes. Mas ele sabia que se matasse o Dragão sua vida se transformaria num tédio sem fim: nada para fazer, nenhuma missão a cumprir. Sua máxima espiritual era 'Pugno, ergo sum': luto, logo existo. São as batalhas que dão sentido à vida.

Aconteceu, entretanto, algo de que ninguém suspeitava. O Dragão era, na verdade, uma linda donzela que uma bruxa invejosa havia enfeitiçado e mandado para a Lua. Mas como todo feitiço tem um prazo de validade, chegou também o dia em que a validade do feitiço chegou ao fim e se desfez: o horrendo Dragão foi transformado numa linda donzela.
São Jorge, que tudo ignorava, acordou na manhã daquele dia como acordava todos os dias, determinado a cumprir o seu destino que era dar combate ao Dragão. Com lança, armadura e espada saiu o guerreiro em seu cavalo. Mas qual não foi o seu susto quando, em vez de um Dragão, o que o esperava era um ser que lhe era totalmente estranho: uma linda donzela.

E a donzela com suas vestes entreabertas o recebeu com palavras de amor e gozo: 'Venha, Jorginho, provar do meu carinho e do mel dos meus beijos...' São Jorge ficou paralisado de susto e medo. Não sabia o que fazer. Essa entidade estranha não estava registrada em sua memória. Não lhe fora ensinada na escola. Fora educado a vida inteira para a batalha. Era a batalha que dava sentido à sua vida. E agora ele se defrontava com a possibilidade de simplesmente gozar sem nada fazer...

São Jorge nem desceu do seu cavalo. Voltou para onde viera triste e deprimido, com saudades dos tempos do Dragão. O Dragão dava sentido à sua vida. Ele definia a sua identidade: ele era um guerreiro... Agora, perdida sua identidade, perdeu-se também o sentido de sua vida.

Não lhe fora ensinada na escola a arte do gozo, de não ter deveres a cumprir. Sua vida tornou-se, então, um grande vazio. Quanto à linda donzela, apesar de linda, não foi apreciada. São Jorge olhava-a com aquela sensação saudosista dos tempos do Dragão...";

(*) Rubem Alves é escritor, educador e psicanalista