Dragão de Jorge
Aposentadoria é quando o Dragão vira donzela, quando a
batalha dá lugar ao gozo. Mas o simplesmente gozar não nos foi ensinado.
E mergulhamos então na tristeza da depressão.
Rubem Alves*
Sou Professor
universitário, no gozo da liberdade que a aposentadoria traz, tinha
agora tempo para ler os livros que não lera, fazer as viagens que não
fizera, ou simplesmente tempo para vagabundear. Sobravam-lhe as razões
para viver o que William Blake escrevera: "No tempo de semear, aprender;
no tempo de colher, ensinar; no tempo do inverno, gozar...". Seu
inverno chegara. Estava aposentado, livre da compulsão prática que o
trabalho impõe. Podia entregar-se a realizar os sonhos com que sempre
sonhara. Chegara o tempo de gozar.
Minha cabeça, ao se
defrontar com um enigma, faz o que faziam os gregos: ela inventa
histórias, mitos. Pois foi isso que aconteceu. Baixou-me a história que
passo a contar para explicar a incapacidade de gozar quando é tempo de
gozar. "Desde muitos séculos,
São Jorge fora um habitante da Lua. Romântica quando vista da Terra, a
Lua era a arena de uma batalha diária entre o Santo Guerreiro e o Dragão
da Maldade. Todas as manhãs, ao acordar, São Jorge sabia: havia uma
missão que só ele poderia cumprir.
Era esse sentimento quase
religioso de missão e de dever que dava sentido à sua vida. Bem que ele
poderia ter matado o Dragão séculos antes. Mas ele sabia que se matasse
o Dragão sua vida se transformaria num tédio sem fim: nada para fazer,
nenhuma missão a cumprir. Sua máxima espiritual era 'Pugno, ergo sum':
luto, logo existo. São as batalhas que dão sentido à vida.
Aconteceu, entretanto,
algo de que ninguém suspeitava. O Dragão era, na verdade, uma linda
donzela que uma bruxa invejosa havia enfeitiçado e mandado para a Lua.
Mas como todo feitiço tem um prazo de validade, chegou também o dia em
que a validade do feitiço chegou ao fim e se desfez: o horrendo Dragão
foi transformado numa linda donzela.
São Jorge, que tudo
ignorava, acordou na manhã daquele dia como acordava todos os dias,
determinado a cumprir o seu destino que era dar combate ao Dragão. Com
lança, armadura e espada saiu o guerreiro em seu cavalo. Mas qual não
foi o seu susto quando, em vez de um Dragão, o que o esperava era um ser
que lhe era totalmente estranho: uma linda donzela.
E a donzela com suas
vestes entreabertas o recebeu com palavras de amor e gozo: 'Venha,
Jorginho, provar do meu carinho e do mel dos meus beijos...' São Jorge ficou
paralisado de susto e medo. Não sabia o que fazer. Essa entidade
estranha não estava registrada em sua memória. Não lhe fora ensinada na
escola. Fora educado a vida inteira para a batalha. Era a batalha que
dava sentido à sua vida. E agora ele se defrontava com a possibilidade
de simplesmente gozar sem nada fazer...
São Jorge nem desceu do
seu cavalo. Voltou para onde viera triste e deprimido, com saudades dos
tempos do Dragão. O Dragão dava sentido à sua vida. Ele definia a sua
identidade: ele era um guerreiro... Agora, perdida sua identidade,
perdeu-se também o sentido de sua vida.
Não lhe fora ensinada na
escola a arte do gozo, de não ter deveres a cumprir. Sua vida tornou-se,
então, um grande vazio. Quanto à linda donzela, apesar de linda, não
foi apreciada. São Jorge olhava-a com aquela sensação saudosista dos
tempos do Dragão...";