sexta-feira, 28 de maio de 2021

Viveremos para contar as lágrimas?

Por Neuri A. Alves

''Fomos arrancados de nós mesmos, para uma 'coisificação final. Desabilitados do sentir, incapacitados de dividir as dores do mundo.''

 

O pensador vienense Sigmund Freud (1856/1939) disse: ‘’Não há, e certamente nunca haverá, um remédio capaz de acalentar a dor da perda, a experiência de morte’’. Será? – A interrogação é fruto deste tempo – que o assombro revela, denuncia: perdemos parte (ou a total) sensibilidade. Há uma naturalização da vida findada como comorbidade, ou como ordem natural das coisas, do inevitável. Uma explicita desatenção aos sofrimentos, transformados em gélida estatística. – Como contar as lágrimas deste tempo?

Nos congelamos em alguma esquina desta era, – e a odisseia do sapiens não revela nada igual. A pandemia desnudou o que há de pior na espécie. Aguçou o senso da individualidade, acentuou a perversidade de nossas contradições. Da negação dos perigos existentes, a contemplação natural dos infindáveis sofrimentos do outro. – porque não, de nós mesmos. Fez da vontade de abraçar uma anomalia, ante a insensibilidade do cuidado com o outro – e um pântano ideológico nos acalenta: ‘’o inferno são os outros’’. – Aqui não se contam as lágrimas, se contam justificativas. No lameamos na semântica expressiva: ‘primeiro as pessoas’’ - mas sem ser capaz de dizer quais pessoas?

Estamos só! Nós, em nossa imensa solidão, no inferno do mundo conectado. Adormecemos e despertamos sob números de partidas sem despedidas. Dores desidratadas de sensibilidade. Solenemente abrimos o nosso dia com as senhas do burocratismo, do pragmatismo produtivista, desumano. E findamos como códigos de barra do consumismo. Não mais estamos, apenas somos - sem SER. Fomos arrancados de nós mesmos, para uma 'coisificação final. Desabilitados do sentir, incapacitados de dividir as dores do mundo. - Quanto vale este sequestro?

Ah se pudéssemos nos resetar, reprogramarmos para além das receitas prontas oferecidas nas feiras de espiritualidades charlatãs, se ver livre dos líderes religiosos abusadores, das ideologias negacionistas e civismos barbarizados. Sentar à beira do caminho com a liberdade dos que ainda sorriem com as peraltices que reconectam aos dias felizes. Pois, quando viver se torna inapreensível, esvaziam-se horizontes, abrem-se abismos, olhamos para ele, que olha para nós e nos convida a entrar.

São tempos difíceis, basta somar nacionalismo do cagaço, fanatismo ignorante, fascismo ‘acalentador’ e temos a etapa que antecede a barbárie. Empunhe a cruz ao contrário e terás a espada, o dedo em riste e terás o rifle, a língua afiada de insensatez e teremos: a estupidez, o sangue, lágrimas e o inferno. - Conseguiremos escapar? – Vivos talvez sim. Porém humanos, as barbáries dificultam saber. Mas uma certeza nos reposiciona ao que já dissera Pascal: ‘Que quimera é o homem! Que confuso, que caos. Que misto de contradições. Juiz de todas as coisas, verme, imbecil, depositário de verdades e incertezas! Glória e nojo do universo – quem deslindará esta embrulhada?’ – Não sei vocês, mas quanto a mim, coleciono as bolhas de interrogação.


Prof. Neuri Adilio Alves - Filósofo pesquisador sobre Vazios no Campo, Trabalha com Educação Popular, com Assessoria de Organizações Sociais do Campo

quinta-feira, 27 de maio de 2021

Vazios e Silêncios na Agricultura Familiar


Por, Neuri A. Alves - 27 de maio 2021

''Não temos apenas latifúndios de terra, temos latifúndios de silêncios, de vazios existenciais, sociais, territoriais e sentidos para a vida na área rural''


Estudar vazios é parte de meu trabalho há duas décadas. E o ponto de partida é o sentido da vida, as crises existenciais do século XX e 
início deste milênio. O cenário é assustador, pensar a vida a partir da segunda metade do século passado é uma mescla de assombro e ilusão – pois é reveladora às mudanças no tecido social e as desoladoras esperanças que nos foram servidas como receitas de viver. Assombro, porque descobrimo-nos mais frágeis, limitados, embora o orgulho permanente – ilusão, porque sabemos que parte de tudo o que fizermos é mero adiar-se. E que todo nosso esforço parece esfacelar-se nos interesses mundanos e materiais de outros, e muito pouco para nós – não tem a ver com interdependência, é dependência mesmo de um sistema de governança maior que nós mesmo. O Campo vive esse drama profundamente, embora o vibracionismo de economistas e escribas do agronegócio.

Embora as barbáries, os conflitos ceifando vidas, campos de extermínio revelando nossa insensibilidade em relação a vida. Costumo dizer que lembrar Hiroshima e Nagasaki não é apenas o findar de um conflito. Não é apenas uma memória da perversidade do ego, da mente humana com duas bombas atômicas devastando territórios, dizimando milhares de vida, comprometendo a saúde de gerações, inviabilizando sonhos, abrindo uma ferida que nunca deixou de sangrar e condenando uma geração inteira as consequências físicas, materiais e existenciais – a ‘Rosa de Hiroshima’: hereditária, sem perfume, radioativa, estúpida e inválida’ nunca mais fechou.

É preciso olhar para estes fatos da história como mudanças de paradigmas no ocidente. Até ali tínhamos uma frágil certeza que morreríamos como indivíduos, mas aqueles dois artefatos nucleares mudaram a leitura antropológica da história, não apenas revelaram ao mundo a capacidade de destruição e imposição de poder. As bombas desnudaram-nos para a compreensão, ali pariu a certeza que podemos desaparecer como espécie de um instante para outro. A partir de então, passamos conviver com a angustia diária de incertezas, embora pouco compreendida pela narcísica cultura ocidental. Seja por disputas no campo das relações diplomáticas da geopolítica ou pela intencionalidade de um maluco qualquer, neste mundo de pouca sanidade.

O século XX e sua lógica urbanista, narcísica e consumista nos dessacralizou de valores fundamentais, nos coisificou como engrenagem da produção, consumo e falsos sentidos. Nos secularizou como máquinas com prazo de validade e esvaziou-nos para o sentido da vida. Não há registro de outros momentos na história humana em que se desenvolveu, produziu-se tantas coisas para tornar nossas vidas mais cômodas, tranquila e supostamente mais feliz. De outro modo, isso revelou-se insuficiente, desnecessário e aporte de insatisfação. Pois, nunca antes na história os indivíduos experimentaram aos milhões o vazio existencial, as angustias de buscas não compreendidas, a ausência de um sentido e significado para a vida e o suicídio como fuga das dores existenciais – e então, assombrosamente compreendemos o que é morrer por dentro. Mas aí, a insensibilidade falsamente nos blindou, congelou-nos até o ponto de derretimento por nossas contradições e as brutalidades de nosso ser irracional – embora a racionalidade exacerbada seja parte deste todo!

Mas tal experiência, que parecia mais uma realidade vivida pelo sujeito urbano, exposto a lógica de um desenvolvimento de caráter moderno a reboque de processo pós-moderno, revelou-se antropológica e sociologicamente teia de expansão também a vida no campo. E esta, tecida diariamente, expandida conforme a insaciável perversidade do sistema que nos individualizou, codificando-nos como número da produção e nos ‘coisificando’ como códigos de barras de valores e interesses transitórios, descartáveis na lógica perversa da produção. Ou seja, perdeu o valor ou capacidade de produzir se descarta – avançaria ainda mais.

E este que parecia um paradigma somente da vida urbana moderna, chega ao campo no Brasil a partir da programática agenda e pacote da Revolução Verde. E neste pacote da lógica produtivista de larga escala para circuitos longos, o homem do campo, em hegemônica maioria dos que não foram vítimas da expulsão (sim expulsão) via êxodo rural, passaram a ser desconstruídos, como sujeitos de vida comunitária, social, cultura e existencial, para serem transformados em mera engrenagem da estatística produtivista na balança comercial.

Ao menos, meio século depois aqui estou, primeiro como observador, segundo como provocador de releituras para o campo e por último, ensaísta e curioso pesquisador dos ‘Vazios Existenciais’ na agricultura familiar – ou seja, sei que não temos apenas latifúndios de terra neste país. Passamos ter latifúndios de silêncios, de vazios existenciais e sentidos para a vida na área rural também. Há milhares de agricultores e agricultoras morrendo de silêncio enquanto ensaio escrever este artigo – mas como diz a letra da música ‘Notícia de Jornal’ cantada por Chico Buarque: ‘’A dor da gente não sai no jornal’’ – e complemento dizendo: as dores existenciais menos ainda.

É preciso ouvir este silêncio que grita, provindo do seio das propriedades. Pois, os camponeses que até então cotados a desaparecer, não desapareceram, em virtude da produção subsistente e diversificada - quase uma subversão a monocultura. Estes agora passam viver com a angustia de uma vida vazia de sentido e significado. Uma existência pulverizada de angustias, stress, depressão, silêncio nas relações comunitárias, sociais, e a pior das realidades – conviver com o suicídio como remédio as ansiedades de uma vida imersa na lógica da produção e o consumo como batismo e salvação social e existencial.

Nas andanças por aí, conhecendo a angústia dos agricultores e agricultoras, fica explicito a necessidade urgente de devolver não só a liberdade ao homem do campo expropriada pela lógica impositiva de produzir, não o que se quer, mas o que o sistema determina. É preciso devolver-lhes o espaço da propriedade como direito de decidir sobre o que é seu. Lhes devolver a cuia de chimarrão, da celebração da vida, da convivência que lhe foi tirada como instrumento da confraternização. Devolver-lhes o direito de sentar-se à sombra quando o corpo estiver cansado, o direito de visitar os vizinhos mais próximos sem se sentir controlado, prisioneiro dos pacotes tecnológicos.

É preciso devolver o direito ao convívio da vida comunitária, o direito de dormir sem o peso das preocupações com o banco que lhes ameaça pelo crédito acessado. É preciso preencher os vazios de infelicidades com a dignidade que lhes foi expropriada – e acima de tudo, ressignificar o sentido da vida com as sensibilidades saqueadas de sua relação simbiótica com a terra, a propriedade. É preciso diferenciar a beleza que os intelectuais veem na capacidade de produzir, da dureza de quem põe a mão na terra e não na caneta e teclado eletrônico. Mais que dignidade, sustentabilidade é preciso felicidade no campo. Sem isso, não haverá colheitas significativas!

Prof. Neuri Adilio Alves - Filósofo pesquisador sobre Vazios no Campo, Trabalha com Educação Popular, com Assessoria de Organizações Sociais do Campo

quarta-feira, 26 de maio de 2021

Na distância do dizer e fazer faltam gerânios


''Quando apenas se olha, discursa e pouco faz, o jardim da luta é terra prometida, terra vazia ou terra arrasada. A retórica segue bonita, mas o jardim, a rua, o horizonte vazio e triste'' (Prof. Neuri a2)


A palavra ‘longe’ pode ser mero advérbio relativo de lugar, a depender de quem o diz, quem ouve, a que referência. Dos gregos a nós, a dimensão ou noção de espaço, tempo e lugar, do dizer e fazer, pode ser descrito, conceituado, mas não findado como determinismo. Dizer isso é importante, quando queremos aferir dimensão daquilo que não só se vê, se vocifera, mas acima de tudo, se faz. Pois, entre o dizer e o fazer, por vezes, se abrem abismos difícil de atravessar, a não ser por palavras, quando as pernas se recusam enfrentar.


A luta deveria ter um pouco dos girassóis (estratégicos na luz do sol, práticos no escuro da noite (na espera do amanhecer) mas nem sempre, ou quase nunca, é. Quando muito, a transformamos em jardim exótico de: rosas com espinhos, bonitas de ver, mas temerosas por espinhar. Como dama da noite, tímida com a luz do dia e desinibida ao anoitecer – embora pouca presença para a ver. No otimismo, até a imaginamos como rosa do deserto, resiliente, teimosa e resistente, apenas para os fortes, no pessimismo é Rosa de Hiroshima, estúpida, sorrateira e inválida, típica dos covardes, que usam das piores ações para justificar a condição.

Mas quando a luta se faz jardim que encanta por dentro e regado por fora com prática transformadora, ela redimensiona a realidade, mexe no espirito, preenche de coragem, provoca mobilidade e transformação na realidade. E aqui lembro dos dirigentes, militantes que pouco falam e muito fazem – e muitas vezes, sem precisar de diretivas. Estes, assemelham-se a história ‘A rua triste dos Gerânios’ descrita pelo escritor Paulo Coelho há quase uma década, nesta, o escritor relata:

‘’Numa rua cinzenta e triste de um bairro operário de Liverpool, uma mulher colocou um vaso de gerânios na janela. Dois dias depois, sua vizinha da frente por inveja, ou porque notou que os gerânios eram bonitos colocou dois vasos de flores. Alguns trabalhadores, voltando para casa, notaram duas janelas diferentes. Suas mulheres, vaidosas, resolveram também comprar flores. Um mês depois, todas as janelas da rua tinham pequenos jardins. Alguém pintou a fachada do lugar onde morava, já que a beleza das flores realçava a feiura do resto. O exemplo foi imitado. Um ano depois, a cinzenta e triste Rua de Liverpool se transformou num referencial de urbanização. Hoje, cinco anos depois, o bairro inteiro está sendo modificado, com apoio da prefeitura. - Tudo porque, um belo dia, alguém colocou um vaso de gerânios na janela.’’

Porque descrevo isso? Porque a luta exige sensibilidade para ver, iniciativa, estratégia, proatividade, e esta, é carregada de uma palavrinha mágica e provocativa chamada convicção, que se traduz em sei o que faço, porque faço e assumo os desafios e responsabilidades sobre aquilo que preciso ver e fazer. Pois, quando apenas se olha, discursa e pouco faz, o jardim da luta é terra prometida, terra vazia ou terra arrasada. - A retórica segue bonita, mas o jardim, a rua, o horizonte vazio e triste.

Ver-pensar-fazer é mais fecundo que falar-justificar-acomodar. Por ora, se ainda não conseguimos enxergar os ‘gerânios’ na janela, que possamos aprender com os girassóis durante os dias de luz e o escurecer das noites. Na luta, quem não consegue ver e agir na luz do sol, muito menos enfrentará as noites escuras que tem. - Por mais ‘gerânios’ na janela!!!


Prof. Neuri A. Alves