quinta-feira, 9 de abril de 2020

Não pergunte o que mudará depois!

''O depois não existe para quem não se questiona agora, ele é gestação do que fizemos ontem, problematizamos hoje e projetamos para amanhã.''
A imensurável compreensão da totalidade nos impõe limite de apontar certezas. Fato – há muito não somos mais os mesmos. E dizer isso é duro, pois vem a memória parte do que amo nas canções compostas pelo poeta da música Belchior, assim como preenche-me os ouvidos a voz linda e imponente de Elis Regina cantando a letra (‘Como nossos país’ – 1976): ‘’Minha dor é perceber. Que apesar de termos feito tudo, tudo o que fizemos. Ainda somos os mesmos e vivemos. Ainda somos os mesmos e vivemos. Como os nossos pais.’’
Sim! É duro dizer. Mas não somos mais os mesmos, não vivemos como nossos pais, e talvez em essência não vivemos. E quanta beleza deixamos pelo caminho, quantos valores dissolvemos nas fragilidades da tese pós moderna do necessário ser diferentes e atualizados, como critério de falsa adesão e inclusão neste mundo. Não ser mais o mesmo deveria ser desafiador a quem se vê confrontado consigo mesmo, seus limites, suas decadências e o frágil tecido do isolamento individual a que o projeto neoliberalista condicionou milhões de cidadãos no planeta.
Nenhum processo foi tão competente como ferramenta de produzir falso empoderamento (individualizante) como o mundo neoliberal, consumista. Fomos descaracterizados como seres comunitários, fraternos, solidários e políticos. Característica substancial e primeva do sapiens. Fomos transformados em engrenagem solitária a serviço do sistema produtivista mundial na vida rural e urbana. Aliás, não somos mais cidadãos urbanos ou rurais, sendo agora elogioso sentir-se cidadãos planetários, embora as imensas contradições.
Nos isolamos de nós mesmos, perdemos sensibilidade, nos apossamos de uma racionalidade mitigada, vazia, responsiva a interesses pontuais do sistema. E vez que outra, somos beliscados por algo que nos choca, oferece-nos um insight de percepção que ainda vivemos. – Embora não sejamos os mesmos. E isso se revela em momentos como agora. Neste, o isolamento individual é confrontado com a imposição de um isolamento social , e repentinamente estamos no mesmo ambiente familiar com pessoas que nos parecem estranhas no revelado convívio social doméstico.
Esta diáspora para o isolamento social parece chocante, deprimente, tediosa – mas talvez oportuna. Pois, é duro repentinamente encontrar-se consigo mesmo, quando estamos acostumados a usar máscaras para olhar no espelho quebrado do mundo, usar vitrines para fugir de insatisfações do corpo e da alma, usar óculos escuros para esconder o que fomos transformados a luz do dia. Estávamos miseráveis de nós mesmos, embora repentinamente oportunizados pisar novamente no terreno minado de nossas contradições, e neste, um tesouro a ser encontrado – a vida!  
Descobrimos novamente que não seremos eternos, que talvez não chegaremos ao centenário, e na pior hipótese não passaremos de um número na estatística. Talvez, um pontinho quase insignificante na curva mortal que sobe levando impiedosamente vidas em meio a pandemia. Não é o fim dos tempos, não é castigo divino ou messianismo de fim de feira, é a realidade que salta de nossas prepotências. É arrogância de um ocidente sendo posta em xeque, é a ciência se dando conta de seus limites, a política entregando-se a si mesma, o dinheiro se mostrando insuficiente, e a natureza reafirmando seu imenso poder ante nossa pequena capacidade de responder ao diferente, não ao novo – vírus não são novidades.
De outro modo, nossa vida repentinamente volta ser novidade. Mas não pergunte o que mudará depois. – O depois não existe para quem não se questiona agora, ele é gestação do que fizemos ontem, problematizamos hoje e projetamos para amanhã. Que Belchior esteja certo e seja a luz a iluminar as nebulosidades contraditórias deste tempo, que embora pareça fazer-se transparente, não sai da noite escura. Que sua canção, se ao menos não provar-nos o contrário, nos sirva de alento: ‘’Mas é você que ama o passado e que não vê. É você que ama o passado e que não vê. Que o novo sempre vem…’’ – Então, que vivamos este tempo oportuno para renascer.
Feliz Páscoa a todos!!!

Prof. Neuri A. Alves – Filósofo Pesquisador em Antropologia Filosófica Existencial e Assessor de Formação e Elaboração na Fetraf Santa Catarina