PHA – Professor Miguel, o senhor é
professor de onde?
MC – Eu sou professor da American University, em Washington D.C.
PHA – Há quanto tempo o senhor estuda o problema agrário no Brasil e o
MST?
MC- Quase duas décadas já. Comecei com as primeiras pesquisas no
ano de 91.
PHA – Eu gostaria de tocar agora em alguns pontos específicos
da sua introdução “Desigualdade Social Democracia no Brasil”. O senhor
descreve, por exemplo, a manifestação de 2 de maio de 2005, em que, por
16 dias, 12 mil membros do MST cruzaram o cerrado para chegar a
Brasília. O senhor diz que, provavelmente, esse é um dos maiores eventos
de larga escala do tipo marcha na história contemporânea. Que
comparações o senhor faria ?
MC – Não achei outra marcha na história contemporânea mundial que
fosse desse tamanho. A gente tem exemplo de outras mobilizações
importantes, em outros momentos, mas não se comparam na duração e no
numero de pessoas a essa marcha de 12 mil pessoas. Houve depois, como eu
relatei no rodapé, uma mobilização ainda maior na Índia, também de
camponeses sem terra. Mas a de 2005 era a maior marcha.
PHA – O senhor compara esse evento, que foi no dia 2 de maio de 2005,
com outro do dia 4 de junho de 2005 – apenas 18 dias após a marcha do
MST – com uma solenidade extremamente importante aqui em São Paulo que
contou com Governador Geraldo Alckmin, sua esposa, Dona Lu Alckmin, e
nada mais nada menos do que um possível candidato do PSDB a Presidência
da República, José Serra, que naquela altura era prefeito de São Paulo.
Também esteve presente Antônio Carlos Magalhães, então influente senador
da Bahia. Trata-se da inauguração da Daslu. Por que o senhor resolver
confrontar um assunto com o outro ?
MC – Porque eu achei que começar o livro com simples estatísticas
de desigualdades sociais seria um começo muito frio. Eu acho que um
assunto como esse precisa de uma introdução que também suscite emoções
de fato e (chame a atenção para) a complexidade do fenômeno da
desigualdade no Brasil. A coincidência de essa marcha ter acontecido
quase ao mesmo tempo em que se inaugurava a maior loja de artigos de
luxo do planeta refletia uma imagem, um contraste muito forte dessa
realidade gravíssima da desigualdade social no Brasil. E mostra nos
detalhes como as coisas aconteciam, como os políticos se posicionavam de
um lado e de outro, como é que a grande imprensa retratava os fenômenos
de um lado e de outro.
PHA – O senhor sabe muito bem que a grande imprensa brasileira – que
no nosso site nós chamamos esse pessoal de PiG (Partido da Imprensa
Golpista) - a propósito da grande marcha do MST, a imprensa ficou muito
preocupada como foi financiada a marcha. O senhor sabe que agora está
em curso uma Comissão Parlamentar de Inquérito Mista, que reúne o Senado
e a Câmara, para discutir, entre outras coisas, a fonte de
financiamento do MST. Como o senhor trata essa questão ? De onde vem o
dinheiro do MST ?
MC _ Tem um capítulo 9 de minha autoria feito em conjunto com o
Horácio Marques de Carvalho que tem um segmento que trata de mostrar o
amplo leque de apoio que o MST tem, inclusive e apoio financeiro.
PHA – O capítulo se chama “Luta na terra, o MST e os assentamentos” -
é esse ?
MC – Exatamente. Há uma parte onde eu considero sete recursos
internos que o MST desenvolveu para fortalecer sua atuação, nesse
processo de fazer a luta na terra, de fortalecer as suas comunidades,
seus assentamentos. E aí tem alguns detalhes, alguns números
interessantes. Porque eu apresento dados do volume de recursos que são
repassados para entidades parceiras por parte do Governo Federal. Eu
sublinho no rodapé dessa mesma página o fato de que as principais
entidades ruralistas do Brasil têm recebido 25 vezes mais subsídios do
Governo Federal (do que o MST). E o curioso de tudo isso é que só
fiscalizado como pobre recebe recurso público. Mas, sobre os ricos, que
recebem um volume de recursos 25 vezes maior que o dos pobres, (sobre
isso) ninguém faz nenhuma pergunta, ninguém fiscaliza nada. Parece que
ninguém tem interesse nisso. E aí o Governo Federal subsidia advogados,
secretárias, férias, todo tipo de atividade dos ruralistas. Então chama a
atenção que propriedade agrária no Brasil, ainda que modernizada e
renovada, continua ter laços fortes com o poder e recebe grande fatia
de recursos públicos. Isso são dados do próprio Ministério da
Agricultura, mencionados também nesse capítulo. Ainda no Governo Lula, a
agricultura empresarial recebeu sete vezes mais recursos públicos do
que a agricultura familiar. Sendo que a agricultura familiar emprega
80% ou mais dos trabalhadores rurais.
PHA – Qual é a responsabilidade da agricultura familiar na produção
de alimentos na economia brasileira ?
MC – Na página 69 há muitos dados a esse respeito.
PHA- Aqui: a mandioca, 92% saem da agricultura familiar. Carne de
frango e ovos, 88%. Banana, 85%.. Feijão, 78%. Batata, 77%. Leite, 71%.
E café, 70%. É o que diz o senhor na página 69 sobre o papel da
agricultura familiar. Agora, o senhor falava de financiamentos públicos.
Confederação Nacional da Agricultura, presidida pela senadora Kátia
Abreu, que talvez seja candidata a vice-presidente de José Serra, a
Confederação Nacional da Agricultura recebe do Governo Federal mais
dinheiro do que o MST ?
MC – Muito mais. Essas entidades ruralistas em conjunto, a CNA, a
SRB, aquela entidade das grandes cooperativas, em conjunto elas recebem
25 vezes do valor que recebem as entidades parceiras do MST. Esses
dados, pelo menos no período 1995 e 2005, fizeram parte do relatório da
primeira CPI do MST. O relatório foi preparado pelo deputado João
Alfredo, do Ceará.
PHA – O senhor acredita que o MST conseguirá realizar uma reforma
agrária efetiva ? A sua introdução mostra que a reforma agrária no
Brasil é a mais atrasada de todos os países que fazem ou fizeram reforma
agrária. Que o Brasil é o lanterninha da reforma agrária. Eu pergunto:
por que o MST não consegue empreender um ritmo mais eficaz ?
MC – Em primeiro lugar, a reforma agrária é feita pelo Estado. O
que os movimentos sociais como o MST e os setenta e tantos outros que
existem em todo o Brasil fazem é pressionar o Estado para que o Estado
cumpra o determinado na Constituição. É a cláusula que favorece a
reforma agrária. O MST não é responsável por fazer. É responsável por
pressionar o Governo. Acontece que nesse país de tamanha desigualdade, a
história da desigualdade está fundamentalmente ligada à questão
agrária. Claro que, no século 20, o Brasil, se modernizou, virou muito
mais complexo, surgiu todo um setor industrial, um setor financeiro, um
comercial. E a (economia) agrária já não é mais aquela, com tanta
presença no Brasil. Mas, ainda sim, ficou muito forte pelo fato de o
desenvolvimento capitalista moderno no campo, nas últimas décadas, ligar
a propriedade agrária ao setor financeiro do país. É o que prova, por
exemplo, de um banqueiro (condenado há dez anos por subornar um agente
federal – PHA) como o Dantas acabar tendo enormes fazendas no estado do
Pará e em outras regiões do Brasil. Houve então uma imbricação muito
forte entre a elite agrária e a elite financeira. E agora nessa última
década ela se acentuou num terceiro ponto em termos de poder econômico
que são os transacionais, o agronegócio. Cargill, a Syngenta… Antes, o
que sustentava a elite agrária era uma forte aliança patrimonialista com
o Estado. Agora, essa aliança se sustenta em com setor transacional e o
setor financeiro.
PHA – Um dos sustos que o MST provoca na sociedade brasileira,
sobretudo a partir da imprensa, que eu chamo de PiG, é que o MST pode
ser uma organização revolucionária – revolucionária no sentido da
Revolução Russa de 1917 ou da Revolução Cubana de 1959. Até empregam
aqui no Brasil, como economista Xico Graziano, que hoje é secretário de
José Serra, que num artigo que o senhor fala em “terrorismo agrário”. E
ali Graziano compara o MST ao Primeiro Comando da Capital. O Primeiro
Comando da Capital, o PCC, que, como se sabe ocupou por dois dias a
cidade de São Paulo, numa rebelião histórica. Eu pergunto: o MST é uma
instituição revolucionária ?
MC – No sentido de fazer uma revolução russa, cubana, isso uma
grande fantasia. E uma fantasia às vezes alardeada com maldade, porque
eu duvido que uma pessoa como o Xico Graziano, que já andou bastante
pelo campo no Brasil, não saiba melhor. Ele sabe melhor. Mas eu acho que
(o papel do) MST é (promover) uma redistribuição da propriedade. E não
só isso, (distribuição) de recursos públicos, que sempre privilegiou os
setores mais ricos e poderosos do país. Há, às vezes, malícia mesmo de
certos jornalistas, do Xico Graziano, Zander Navarro, dizendo que o MST
está fazendo uma tomada do Palácio da Alvorada. Eles nunca pisaram em um
acampamento antes. Então, tem muito intelectual que critica sem saber
nada. O importante desse (“Combatendo a desigualdade social”) é que
todos os autores têm longos anos de experiência (na questão agrária). A
grande maioria tem 20, 30 anos de experiência e todos eles têm vivência
em acampamento e assentamentos. Então conhecem a realidade por perto e
na pele. O Zander Navarro, por exemplo, se alguma vez acompanhou de
perto o MST, foi há mais de 15 anos. Tem que ter acompanhamento porque o
MST é de fato um movimento.
PHA – Ou seja, na sua opinião há uma hipertrofia do que seja o MST ?
Há um exagero exatamente para criar uma situação política ?
MC – Exatamente. Eu acho que há interesse por detrás desse
exagero. O exagero às vezes é inocente por gente que não sabe do
assunto. Mas às vezes é malicioso e procura com isso criar um clima de
opinião para reprimir, criminalizar o MST ou cortar qualquer verba que
possa ir para o setor mais pobre da sociedade brasileira. Há muito
preconceito de classe por trás (desse exagero).