quinta-feira, 28 de setembro de 2023

A volta para casa de Luc Vankrunkelsven

''Sabia que viajariam incompletos. Dois seres humanos em um só corpo, uma só alma, uma só dor. E que deixavam aqui seus corações''

Não costumo reler textos que escrevo para sites, jornais, mídias sociais e impressos. Entre as razões: ansiedades para reescrever, o espirito de autocritica na trincheira da dialética. Mas, as circunstâncias me levaram ao site da Federação da agricultura familiar de Santa Catarina (FetrafSC) para reler um texto que escrevi no mês de fevereiro deste ano, logo após Luc Vankrunkelsven me confirmar que viria ao Brasil. Ele queria fazer o lançamento de seu novo (último) livro, findar o ciclo de seus intercâmbios Brasil – Europa. E claro, despedir-se dos amigos de longa data, em virtude do diagnóstico que o confirmava portador da Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA).

Então! Como seu amigo, companheiro de jornadas e multiplicador de seu trabalho, escrevi para o site da Fetraf Santa Catarina o texto “A última viagem é pelo roteiro da vida’’ (https://fetrafsc.org.br/a-ultima-viagem-e-pelo-roteiro.../), cujo objetivo era divulgar sua vinda, abordar o que até então sabia sobre seu problema de saúde. E claro, dizer que aquele espaço virtual, publicaria crônicas contidas em seu novo livro. Mas nas entre linhas, queria dizer sensivelmente que o escritor e ativista belga vivia as angustias de descobrir-se portador de uma doença neurológica de implacável desfecho. O que se comprovou nos últimos dias de Luc Vankrunkelsven junto a nós nesse sul do Brasil.

Infelizmente a impressão que tive ao reencontrá-lo no aeroporto de Chapecó se confirmou. A jornada havia sido dura demais, seu corpo sucumbia. Seu último roteiro de viagem encontrava-se com o roteiro da própria vida, no lugar onde há 23 anos havia iniciado suas jornadas no Brasil. Estava mais claro do que nunca para mim, que seria sim sua última grande viagem – mas não imaginava que seria aqui comigo, com os amigos, organizações sociais, universidades, institutos, escolas que ao longo dos anos construiu um legado de profunda relação e respeito. Confesso! Se pudesse escolher outro roteiro final escolheria. Mas na impossibilidade, jamais fugiria de estar ao seu lado – como fiz.

Não esquecerei que fiquei estarrecido na sala de espera do aeroporto quando o vi chegar conduzido em uma cadeira de rodas. Era nítido a expressão do imenso esforço que fizeram para chegar até aqui. O homem que eu havia acompanhado em atividades neste mesmo lugar 18 meses antes, não era mais o mesmo. Agora entendia o sentido da sua viagem de despedida, da última viagem!

Não esquecerei também a expressão facial de Herman Wauters e Siska Blonde, o casal de amigos que o acompanhavam da Bélgica ao Brasil. Talvez, inicialmente muito mais para serem uma presença amiga, solidária, fraterna e assistencial em momentos pontuais. Mas não, eles ser tornaram seu tudo. Era impossível não se comover com tamanha manifestação de lealdade.

Não sai de minha cabeça o deslocamento do aeroporto para minha casa, ao meu lado no banco do carro, Luc Vankrunkelsven fazia poucos movimentos, os olhos vazios fitavam o horizonte vazio. Ali alguém que viveu intensamente o amor pelo meu país. Que trocou a segurança de seu lar na capital da Europa, pelas inseguranças na cansativa viagem. Alguém que se movia convicto, que essa última viagem, não era só para deslocamento físico, era viagem existencial, espiritual, metafisica. Por isso a queria presencial! E para isso, havia escolhido duas muralhas de ternura, resiliência para o acompanha-lo.

Porém, a resiliência inicial de Hermann e Siska, foi sendo devorada pelas preocupações. Eles tinham a dimensão do todo, desde a saída da Bélgica, eu apenas da impressão inicial. Se mostravam fortes, encorajados, vinte quatro horas ao seu lado. Tentavam não demonstrar que sofriam. Mas suas humanidades transbordaram, em seus olhos já era possível ver o temor, incertezas, sofrimentos também. Os vi chorar em vários momentos. Porém, dois momentos me marcaram profundamente:

- O primeiro no hospital, horas antes de iniciarem a viagem de retorno a Bélgica. Era dia 14 de setembro às 17:00hs, e a caminho do aeroporto, passamos no hospital para despedirem-se do amigo que com eles não voltaria. Fazia vinte quatro horas que Luc Vankrunkelsven não se comunicava mais, estava em profundo silêncio e imobilidade. Havia entrado em sua travessia, mas algo aconteceu no momento que Herman se despedida em seu leito de morte. Como se tivesse ouvindo as palavras dolorosas de adeus de seu amigo, mexeu seus olhos, talvez por gratidão, sincero adeus. Então, os recebi em lagrimas na porta do carro. O choro era o manifesto do amor fraterno, enfrentando a dor da despedida. Foi triste, doloroso demais!

- Minutos depois, sofri ao lado deles novamente. Pela segunda vez, os vi chorar na fila para o check-in no aeroporto. A funcionária da empresa aérea que os havia acompanhado na chegada, os reconheceu e perguntou: onde estava o amigo que há 15 dias ela havia conduzido em uma cadeira de rodas naquele mesmo local? Herman e Siska não conseguiram conter as lágrimas. Confesso! Chorei também ali próximo a eles. Tomado de uma dor profunda, não podia fazer nada para preencher o vazio que eles sentiam naquele momento. Sabia que viajariam incompletos. Dois seres humanos em um só corpo, uma só alma, uma só dor. E que deixavam aqui seus corações.

Essa experiência me redimensionou, passei de comovido a tomado de responsabilidade. Transformei aquela dor compartilhada em senso de compromisso. Sai do aeroporto convicto que meu coração só descansaria com a volta de Luc Vankrunkelsven para casa. E que faria isso por ele, por Herman e Siska, seus familiares, confrades de sua abadia - por mim mesmo. Isso explica porque permaneci o tempo todo na linha de frente ajudando cuidar dos processos de translado.

Essa experiência expôs minha fragilidade para despedidas. A gente acha que sabe conviver com elas momentaneamente. E quando acontecem como sucessão, uma após a outra, demoramos para nos recuperar. - Vi Siska Blonde chorar na despedida do documentarista Fabricio Gallinucci por tudo que havia fraternalmente feito. Vi Herman e Siska chorarem na despedida do amigo Luc, no abraço de encontro e despedida dos monges Peter e Jan no aeroporto também. Nesta mesma noite, vivi na carne a dor da despedida do casal de amigos, aprofundando uma sensação de vazio em mim.

No dia seguinte (15/09) despedi-me de Agnes Vercauteren, uma fortaleza de nossos dias mais difíceis. E no início da tarde do mesmo dia, a mais dolorosa das despedidas, às 13:15hs em sua cama de hospital, na presença de seu amigo e confrade padre Peter, o norbertino Luc Vankrunkelsven despedia-se deste mundo também. Entrei no quarto, para me somar solidariamente. Ali, os três padres belgas em silêncio recolhiam os pertences do ente querido. Um grupo de enfermeiras retiravam os equipamentos. E na cama o corpo revelava as batalhas travadas e enfim seu descanso. Havia um clima de batalha perdida, mas também de alento. Era digno o fim de seu sofrimento. Morria horas após ouvir de seus confrades Pe. Peter Kastekkere e Pe. Eygenraam Jan, que tinham vindo para levá-lo para casa. Morreu em paz!

Ao lado de seu corpo, despedi-me do europeu que amou nossos povos originários, uma alma brasileira. A voz dos povos das aguas e florestas, manifesto das comunidades tradicionais, olhos que viam e grito que denunciavam internacionalmente a destruição do bioma cerrado. Ali descansava o filho do veterinário que o inseriu na vida do campo, no contato com os camponeses, que lhes inundou sua alma com as histórias dos povos ameríndios. Mas não tivemos tempo para nosso luto, iniciava a corrida para realizar seu desejo de retorno. Contato com a funerária, seguradora, a grande odisseia por cartórios, tabelionatos, documentação, tradução e por fim o apostilar documental exigido pelos órgãos de controle nacional e internacional.

Não esquecerei da celebração de corpo presente no dia seguinte a sua morte. Não esquecerei o canto dos Guaranis invocando os espíritos, iluminando sua travessia. Não esquecerei que dias depois, sozinho acompanhei a funerária até o aeroporto. Ali vi seu caixão sendo embrulhando em plásticos, fitas e etiquetas da empresa aérea. Para eles, só mais um produto para o transporte, para mim uma parte do todo. Voltei para casa vazio, sem alma, não conseguia pensar direito, a imagem não saia de minha cabeça. Lembrei-me da sociedade liquida de Zigmunt Baumann, da sociedade do cansaço de Byung-Chul Han, do vazio existencial de Viktor Frankl e novamente da solidão de Cristo.

Essa semana completou quarenta dias desde sua chegada no Brasil. Uma sucessão de coincidências, interrogações, cercaram a convergência de fatos. Mas enfim, recebi hoje confirmação de seu translado internacional, me sinto completo. É a concretização do seu desejo de retorno a Bélgica. Mas, um dia da semana ficará marcado em todo esse processo: foi numa sexta-feira que o levei a primeira vez no hospital. Em uma sexta-feira faleceu. Também em uma sexta feira iniciou seu translado aéreo de Chapecó para São Paulo. E na programação prevista no translado internacional, em uma sexta feira chegará a sua Europa. – Sim, quinze dias após sua partida, mas cumprimos seu desejo do descanso
Foto (2019): Painel de Debates em Universidade de Chapecó/SC
eterno em Averbode. E aqui, o meu (o nosso) espirito descansará também, com sensação de missão cumprida. Este é o maior presente que recebi em meu aniversário – a felicidade de sua volta, cessando um tempo de sofrimento!

E nesta sexta feira 29 de setembro quando chegar em sua terra, também na terra, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) plantará 1000 árvores no Assentamento Conquista na Fronteira em Dionísio Cerqueira estado de Santa Catarina. E fará uma homenagem a este belga de coração brasileiro, alma intercontinental, espirito dos movimentos de luta. – E plantar árvores é também plantar memórias, longevidades – como longevo eram seus sonhos, seu ser intercontinental. Descanse em Paz!!!

◙ Roteiro Final

• Mês de Agosto:

Dia 16/08 - Chegava ao Brasil
Dia 17/09 - Brasília
Dia 20/08 - Goiânia
Dia 22/08 - Bahia (Salvador e Ilhéus)
Dia 28/08 - Minas Gerais (Rio Pomba e Juiz de Fora)

• Mês de Setembro:

Dia 30/08 - Chegada em Chapecó
Dia 04/09 - Internado no Hospital Unimed
Dia 15/09 - Faleceu no hospital
Dia 22/09 - Translado para São Paulo
Dia 28/09 - Translado para Europa
Dia 29/09 - Chegada a Europa (Frankfurt - Alemanha)
Dia 30/09 - Chegada na Bélgica (Bruxelas, e o descanso eterno na Abadia de Averbode)

*Neuri A. Alves é professor, filósofo pesquisador e assessor de formação e elaboração