Almas Secas: A Perpetuação do Genocídio (3) |
Escrito por Wellington Fontes Menezes | |
14-Jul-2010 | |
Meu Deus, meu Deus
Assim fala o pobre
Do seco Nordeste
Com medo da peste
Da fome feroz
("A triste partida", Patativa do Assaré)
Enfrentar permanentemente a questão da fome não é mera caridade ou
filantropia permissiva. Deveria ser o programa fundamental de cada
governo comprometido com o ser humano. Obviamente, em Estados
semidemocráticos, como é caso do Estado brasileiro, a fome é muito mais
um elemento de salutar perpetuação da escravidão eleitoral ou nota de
rodapé "exótico" em algum jornal da Big Mídia.
A fome também é um problema ideológico e cultural. Convencionou-se a
acreditar na naturalidade da desgraça famélica alheia como um problema
divino ou um "trágico" fenômeno da natureza. Para isto, Josué de Castro
desbanca as certezas invioláveis de falaciosas premissas do ‘ocaso da
fome’: "Querer justificar a fome do
Com a abdução da política pelo capital, urgentes debates são deixados de
lado (ou distorcidos de sua realidade) dentro de uma sociedade em que
poderiam contrariar os interesses dos capitalistas. Assuntos
considerados mais "cosméticos" socialmente e pouco capazes de ferir as
engrenagens capitalistas, como o debate em torno dos direitos de
minorias (sexuais, "raciais"
Obviamente, tais lutas sociais são importantes, porém, não afetam
diretamente ao grande capital (paradoxalmente, como não são movimentos
de "ruptura", muitas vezes colaboram ainda para criar muito mais cisão
dentro da própria sociedade!). A Big Mídia, por exemplo, insiste
exaustivamente em considerar que a reforma agrária é um tema do passado.
Ressalta Josué de Castro: "Precisamos enfrentar o tabu da reforma
agrária - assunto proibido, escabroso, perigoso - com a mesma coragem
com que enfrentamos o tabu da fome".
Para muitos defensores da sociedade irrealista que só existe em
duvidosos índices econométricos em véspera de eleição ou nas manchetes
da Big Mídia, é necessário a sociedade se voltar para a importância da
centralidade do debate em torno da fome e da subalimentação. Agora, o
"grande" Brasil extasiado em crescimento de índice econômico chinês não
pode ter a ousadia de mexer no próspero latifundiário?
Na mesma dimensão da propaganda governamental, o maior exportador de
carne bovina do planeta (um robusto percentual de 28% do comércio
mundial em 2008, segundo a Associação Brasileira das Indústrias
Exportadoras de Carnes, ABIEC) convive com o drama de milhões de pessoas
que sequer podem comprar um único quilo de carne semanal (até mesmo
mensal!). O seguido recorde dos grãos na agricultura abastece mercados
consumidores com potencial poder de compra, e os grãos de pior qualidade
podem encher as cestas básicas da nefasta caridade eleitoreira.
Não obstante, a produção cultural foi bem mais generosa com o ser humano
e a denúncia da espoliação do homem pelo próprio homem sempre foi campo
de interesse. Entre vários autores que fizeram a denúncia da fome no
Nordeste, temos as canções imortais de Luiz Gonzaga, a poesia
magistralmente seca de Patativa do Assaré e João Cabral de Melo Neto e a
literatura de Graciliano Ramos, destacando o clássico "Vidas Secas". No
campo cinematográfico, vários filmes e documentários ressaltaram o
descalabro da fome. Inspirado em "Vidas Secas", recentemente se destaca o
documentário de José Padilha, "Garapa" (2009), no qual o diretor
procura imergir o espectador na perspectiva do drama dos que sentem fome
nos bolsões de pobreza endêmica no Ceará. O título do documentário de
Padilha bem é apropriado, uma vez que "garapa" é a mistura de água com
açúcar ou rapadura, preparada pelas famílias para alimentar suas
crianças e driblar momentaneamente a fome.
A fome não é uma querela pontual, para os seres humanos que vivem em
regiões endêmicas de extrema pobreza trata-se asperamente da luta pela
mera sobrevivência de seus corpos secos e tísicos. No caso brasileiro, a
seca nordestina, como símbolo do mais profundo e bárbaro descarte
humano, é uma seca de almas em desespero permanente.
Acima de tudo, é a seca derivada da criminosa indiferença dos centros de
decisões sócio-econômicas que mais castiga e assassina anualmente de
forma lenta e corrosiva milhões de homens, mulheres e principalmente as
crianças. Salvo alguma catastrófica tragédia natural ou astronômica que
dizime a espécie humana, seguramente apenas com a sociedade
proporcionando novos modelos sócio-econômicos de produção, que tenham
como base a socialização mais humana e igualitária da riqueza produzida
em coletividade, se terá o cessar da perpetuação por completo do
genocídio da fome.
Almas Secas: A Perpetuação do Genocídio (1) Almas Secas: A Perpetuação do Genocídio (2) Wellington Fontes Menezes é mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), bacharel e licenciado em Física pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Rede Pública do estado de São Paulo. Fonte: http://www.correiocidadania. |