Almas Secas: A Perpetuação do Genocídio (1)
Estou no cansaço da vida
Estou no descanso da fé
Estou em guerra com a fome
("Terra, Vida e Esperança", Jurandir da Feira/Luiz Gonzaga)
Estou no descanso da fé
Estou em guerra com a fome
("Terra, Vida e Esperança", Jurandir da Feira/Luiz Gonzaga)
A fome é um tema recorrente. Seja pelo desgraçado som das barrigas
roncando dos famélicos, seja pelo espetáculo de sordidez hipócrita como o
tema é debatido (e sempre amenizado ou esquecido). Segundo uma
estimativa atual da Organização das Nações Unidas (ONU), mais de 920
milhões de pessoas sofrem de fome crônica no mundo. Sem maiores
adjetivações, a fome é muito mais que uma particularidade de uma dada
região endêmica, mas sobretudo uma questão profundamente inserida no
modo de produção e partilha de riquezas materiais, ideológicas e
culturais de uma sociedade.
Para quem vive nos suntuosos escritórios da Avenida Paulista, símbolo
lustroso da "locomotiva" paulista, acomodando o farto glúteo em densas
poltronas de couro "legítimo", entre um olho nos índices da BOVESPA e o
outro olho em algum catálogo em busca da próxima garota de programa para
o descontraído "happy hour", a fome seria uma coisa de pobre, preto ou
nordestino (geralmente um misto destas três derivações!). Claro, a tal
"fome" não passa nem de longe na cabeça de algum agiota financeiro ou um
empresário "bem sucedido" no capitalismo à brasileira.
Não seria a ética ascética do trabalho que agracia seu crédulo com
beatitude do lucro e leva para debaixo do tapete qualquer excrescência a
este processo? Na limitada dimensão do mundo e no alto de imponentes
edifícios, a ótica do especulador das finanças do engenho capitalista, a
fome e a degradação humana são problemas do "gueto" (leia-se, "aquelas
criaturas que ficam pedindo esmola nos faróis da cidade" e ponto
final!). Para as classes médias e remediadas, a questão da fome oscila
entre a caridade recalcada e a "punição merecida" aos lenientes ao
trabalho (logo, riqueza e pobreza é uma questão meramente de "sorte para
os esforçados"!). Para os burocratas formadores de políticas públicas,
os chamados "policymakes", a fome precisa se enquadrar dentro dos
padrões orçamentários governamentais. Já para os políticos de amplo
espectro partidário, a fome é sempre um mote que angaria um bocado
jocoso de votos.
Josué de Castro (1908-1973) se debruçou com maior afinco e destaque no
estudo da fome no Brasil. Pernambucano de nascimento, médico e
sociólogo, conheceu bem de perto o drama existencial do conceito de
fome. A definição para as origens da fome merece o destaque das palavras
de Castro: "A fome é, conforme tantas vezes tenho afirmado, a expressão
biológica de males sociológicos. Está intimamente ligada com as
distorções econômicas, a que dei, antes de ninguém, a designação de
‘subdesenvolvimento’".
É muito mais simples culpar os miseráveis pela sua própria miséria
humana do que querer discutir os reais fundamentos da desequilibrada
distribuição de renda entre os indivíduos vivendo numa mesma sociedade.
Há ainda aqueles supostos "especialistas" que tratam do tema como se
fosse praticamente "profano" a tal ponto que qualquer tentativa de
debatê-lo seria em vão (sempre suscitando uma expressão semelhante ao
"muito complexo" compondo a discussão da fome). Para os partidários do
"complexismo da fome", deveriam perguntar aos que passam fome qual a
sensação de não terem absolutamente nada para comer durante horas ou
dias (certamente a resposta seria inequívoca!).
Naturalmente, dentro dos teares do que o economista austríaco, Karl
Polanyi, batizou de "moinho satânico", está o sistema de regulação da
natureza capitalista do mercado, que possui na sua gênese a ordem
imperativa da desagregação social. O que causa certa perplexidade quando
alguns pesquisadores buscam justificar o "ambiente caótico" do
capitalismo na aproximação de teorias naturais de caos e complexidade
(alguns destes "bombeiros intelectuais" têm a insensatez de adornar tais
estudos com um rótulo fantástico de "Econofísica", ou seja, o que seria
uma prosaica "Física da Economia"!).
Logo, o que sobra para amenizar os conflitos de classes e não
proporcionar maiores empecilhos ao capital (por exemplo, revoltas e
revoluções por parte dos excluídos do processo deste sistema)? Uma forma
muito bem oportuna é patrocinar a querela cristã da piedade ou
caridade. Destaca-se no "Novo Testamento" a importância da doação como
oferenda divina e não como necessidade de justiça social: "O poder
divino deu-nos tudo o que contribui para a vida e a piedade, fazendo-nos
conhecer aquele que nos chamou por sua glória e sua virtude" (Segunda
Epístola de Pedro, 1:3).
A piedade sob a forma de caridade é uma vil promessa de cura que apenas
sustenta a linha entre a vida e a morte. Atos de caridade podem ser
muito salutares como dogmas religiosos (salvação da alma avarenta em
busca de bonança na Terra Prometida), porém, são um nefasto caminho para
justificar a suposta amenização da fome. Tratar a questão da fome como
um problema isolado e passível tão somente da assistência providencial
da caridade na esfera pública é proporcionar a perpetuação latente da
degradação humana. A miséria não pode ser estancada com cômodas medidas
circenses de piedade contemplativa cujos resultados são paliativos ou
inócuos.
Excetuando períodos de guerra ou profundas calamidades naturais, é
permanente o desequilíbrio social em praticamente todos os países, sejam
os mais desenvolvidos, em desenvolvimento ou subdesenvolvidos. O que
difere tais blocos de países em diferentes condições de progresso
material é o apoio logístico que o Estado concede em cada um destes
países, alguns mais propensos à amenização da pobreza, enquanto outros
relegam seus habitantes à própria sorte. A fome é o símbolo máximo do
lento genocídio do descarte humano.
Wellington Fontes Menezes é mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), bacharel e licenciado em Física pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Rede Pública do estado de São Paulo.
Fonte: http://www.correiocidadania.com.br