quarta-feira, 20 de setembro de 2023

A via crucis de Luc Vankrunkelsven no Brasil

OBSERVAÇÃO! O escritor belga Luc Vankrunkelsven infelizmente faleceu em 15 de setembro em um hospital na cidade de Chapecó/SC

Viver é atravessar o tempo - sim, no estrito sentido de romper, transversalizar. Transpor as barreiras materializadas para nos deter. É enfrentá-lo desigualmente em seu terreno feito de tempestades, ciclones, vendavais que nos impactam quentes, gélidos, fortes ou suaves. De todo modo, estamos expostos em savana aberta, desnudados sem um abrigo para nossa integridade. É uma batalha desigual, para corajosos! Para os que fazem da ousadia, flecha de horizontes. É a teimosia, como força motriz dos que se negam parar. E só assim, para começarmos a entender certa coisas. – Entre elas, as jornadas de Luc Vankrunkelsven.

Minha vida já transpôs quatro décadas, muitas brisas e vendavais. Enxergo logo ali, meio século de existência. Vivi o suficiente para recordar-se de belezas. E claro: às experiências que nos mostram a fragilidade da vida ante os seus infortúnios. - Confesso! Foi doloroso reencontrar no aeroporto o companheiro de jornadas Luc Vankrunkelsven literalmente em batalha final com a ‘Esclerose Lateral Amiotrófica’ (ELA): sem voz, sem passos, sem oxigênio, sem horizontes – uma escatologia do inevitável. Embora eu tenha vivido tantas experiências como essa agora, nunca aprendemos. Pois o sofrimento é algo que nos inquieta, não há paz de espírito.
Na década de noventa, seminarista e estudante de filosofia, pesquisando sobre o ‘Sentido da Vida’ no pensamento do vienense Viktor Emil Frankl, fui voluntário em uma organização social para cuidados a portadores da 'Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS)' numa grande capital do Brasil. Era um tempo de pouca profilaxia para a doença. Neste lugar, vi muitas vezes a vida escoar como areia fina nos braços de adoecidos samaritanos – também portadores da doença. Mas que cuidar do outro em fase terminal, os acrescentava sentido a própria existência, como condenados ao mesmo fim. Muitas vezes ali chorei, como as velas choram enquanto morrem iluminando. Ali havia morte assistida, entre iguais, acalentadas apenas por aqueles que também, enxergavam diante dos próprios olhos, seus destinos pré-definidos - via crucis, calvários inevitáveis!
Acostumado? Jamais! - A gente nunca se acostuma com isso! Despedidas não comportam preparações. Aceitar os limites de nossa passagem é, ou sempre será difícil demais. Se viver é imitar as estações do ano, o belga Luc Vankrunkelsven vive o inverno de sua vida neste momento. Ironia ou não, no alvorecer da primavera deste sul do Brasil – na cidade de Chapecó, Santa Catarina. O lugar que fixou suas raízes profundamente como uma planta do Cerrado, o bioma que ganhou seu coração. – E agora, como o Cristo que enfrentou dias sombrios de Nazaré a Cafarnaum e desta, até a cruz em Jerusalém, Luc enfrentou de Bruxelas à Brasília, Goiânia, Bahia, Minas Gerais e Chapecó (SC) sua dolorosa via crucis.
Nossos pré-julgamentos, frias racionalizações, quase sempre incompreensíveis insistem saber: O que leva um europeu doente atravessar o oceano em uma longa e cansativa viagem? - O que o encoraja, mesmo ante os infortúnios da ‘Esclerose Lateral Amiotrófica’? – Apesar de nossas inquietudes, emerge a certeza: não pertence a nós a busca por uma resposta! Nossa missão seria sua recuperação ou mesmo, minimizar seus sofrimentos. Os últimos dias, foram tempos de acolhida, presença fraterna ao lado do casal de belgas Hermann Wauters e Siska Blonde, seus amigos incondicionais. Neles vemos uma presença de José e Maria, plenitude de cuidados, lealdade, ternura e amor. Entregaram suas vitalidades nessa via dolorosa como ventre que protege e o acalenta na dura jornada da Bélgica até esse Brasil. E juntos, inevitavelmente percorreram também suas próprias via crucis – sem fugir!
Pelo caminho contaram com a ajuda de amigos, companheiros de outras jornadas, do obstinado eco filósofo belga Luc. O que nos reconecta ao caminho do calvário de Cristo, onde os amigos o esperavam ao longo da via dolorosa. Não é metáfora, assemelha-se ao recontar da história vivida na própria carne. É a sua travessia, inevitavelmente a última como nos disse meses atrás. É o que se revela em seu rosto sofrido, seu corpo em autofagia. O semblante destroçado se revela como os açoites. A cama no Centro de Formação das Mulheres Camponesas (MMC) em Chapecó o acolhe inicialmente como colo de mãe, e o lençol do hospital o enrola como sudário nestes dias finais.
Luc carregou sua pesada cruz pelo caminho. Cruzou as estações da indiferença, criticado por seu trabalho em defesa da ‘Casa Comum’, atravessou suas estações de quedas, caiu e levantou-se muitas vezes nos últimos dias. De Brasília à Chapecó cruza as estações de encontros com amigos, companheiros de jornadas pelo caminho que escolheu fazer. É tempo de despedida e a queria presencialmente! Sem fazer questão de esconder seu estado de saúde. Manifestou momentos de medo ao ficar sozinho, revelando a sua humanidade, como o próprio Cristo que humanamente chorou no Jardim do Getsêmani. E Luc também corajosamente seguiu para as estações finais, mesmo quando seus amigos o tentaram convencer que deveria cancelar a jornada, preservando forças para seu retorno a Bélgica.
Mas os dias foram nos mostrando, que embora seu coração quisesse seguir, seu corpo dizia não, e clinicamente sucumbia. O homem determinado que conhecemos ao longo dos anos, entrava na sua batalha final. E mesmo ante os açoites implacáveis desde que chegou ao Brasil, nenhum de nossos argumentos o convenceu aliviar o peso da cruz. E então, por onde passou, seus amigos o acompanharam na dolorosa jornada. Impotentes com nossas racionalizações buscando reduzir seu sofrimento, fomos cancelando todos os eventos aqui na região sul. Pois, não foram poucos os momentos que ficamos atônitos, ante o ser humano que parecia não aceitar o fim sem a sua cruz, pois insistia seguir.
Este é Luc Vankrunkelsven, o admirável norbertino que fez do mundo sua abadia. Das causas sociais, ambientais, humanitárias seu sacerdócio e sacrifício. Do próprio sofrimento a travessia final de seu oceano de bondade, continente de entrega e reflexão. Ele parece viver tudo na própria carne. Não só como projeto existencial e espiritual que escolheu, mas sentido de sua vida, oxigênio de sua via crucis. Nos entregou muito de si, revelando o sentido de convicção profunda no ser humano. E diante de todos, irredutível abriu caminho para o calvário – foi pedagógico a todos, embora nem todos possam suportar. E fez, porque convicção profunda significa: saber o que fazemos, porque fazemos e assumir para si às consequências até o fim - sem fugir. Foi o que fez!
Precisa mais para tentarmos entendê-lo? Está claro que não! O monge da abadia de Averbode nos conecta a Ramón Cué Romano, padre jesuíta espanhol, que escreveu uma das mais inquieta narrativas sobre os infortúnios da existência na obra ‘Mi Cristo Roto’ (Meu Cristo Partido) – neste monólogo diz que uma cruz sem Cristo e um Cristo sem cruz perdem o sentido. Isso pode explicar o porquê da última viagem deste belga, mesmo ante os infortúnios de sua saúde. Sua teimosia é seiva do Bioma Cerrado, pão ao caboclo sertanejo com fome, escudo do indígena, resistência do quilombola ameaçado. Sua teimosia é martelo que rompe grilhões da escravidão oculta, seu coração Oasis de outro mundo possível. – Ele está todo aí, humanamente exposto a todos nós.
Sim! Tem sido triste, devastador, nada parece nos acalentar diante do quadro que presenciamos. Pois como uma vela acessa ao vento parece que irá apagar a qualquer momento. Mas se tem algo que é impossível negar, é que até no sofrimento nos entrega o mais profundo de si mesmo: que viver não é fugir dos desígnios que a nós estão postos. Que amor a vida não é fuga. Que coragem é não ter vergonha de apresentar-se diante dos seus, independentemente de aparência física. Que convicção mantém vivo os sonhos e as convicções dentro da gente.
E o mais importante: que não é a morte do corpo que deve nos entristecer, mas do espírito, da alma, dos projetos que escolhemos viver. Pois viver não cabe em racionalizações e preceitos. A cruz não é ponto final, mas travessia de corajosos, movidos por amor a suas causas, ou as causas do mundo. E que amar o que se faz, é viver para sempre: para si mesmo, para os outros e não sucumbir aos infortúnios do tempo. Talvez por isso faça-se necessário compreender sua ‘via crucis’ não como a estação final – mas convite, convocação para seguirmos além. Pois quem vive assim não morre, é semente que renasce todos os dias. Esse belga viverá conosco para sempre!

Texto publicado em 13 de setembro de 2023 - Chapecó/SC - Brasil
Prof. Neuri A Alves - Filósofo Pesquisador

sexta-feira, 28 de maio de 2021

Viveremos para contar as lágrimas?

Por Neuri A. Alves

''Fomos arrancados de nós mesmos, para uma 'coisificação final. Desabilitados do sentir, incapacitados de dividir as dores do mundo.''

 

O pensador vienense Sigmund Freud (1856/1939) disse: ‘’Não há, e certamente nunca haverá, um remédio capaz de acalentar a dor da perda, a experiência de morte’’. Será? – A interrogação é fruto deste tempo – que o assombro revela, denuncia: perdemos parte (ou a total) sensibilidade. Há uma naturalização da vida findada como comorbidade, ou como ordem natural das coisas, do inevitável. Uma explicita desatenção aos sofrimentos, transformados em gélida estatística. – Como contar as lágrimas deste tempo?

Nos congelamos em alguma esquina desta era, – e a odisseia do sapiens não revela nada igual. A pandemia desnudou o que há de pior na espécie. Aguçou o senso da individualidade, acentuou a perversidade de nossas contradições. Da negação dos perigos existentes, a contemplação natural dos infindáveis sofrimentos do outro. – porque não, de nós mesmos. Fez da vontade de abraçar uma anomalia, ante a insensibilidade do cuidado com o outro – e um pântano ideológico nos acalenta: ‘’o inferno são os outros’’. – Aqui não se contam as lágrimas, se contam justificativas. No lameamos na semântica expressiva: ‘primeiro as pessoas’’ - mas sem ser capaz de dizer quais pessoas?

Estamos só! Nós, em nossa imensa solidão, no inferno do mundo conectado. Adormecemos e despertamos sob números de partidas sem despedidas. Dores desidratadas de sensibilidade. Solenemente abrimos o nosso dia com as senhas do burocratismo, do pragmatismo produtivista, desumano. E findamos como códigos de barra do consumismo. Não mais estamos, apenas somos - sem SER. Fomos arrancados de nós mesmos, para uma 'coisificação final. Desabilitados do sentir, incapacitados de dividir as dores do mundo. - Quanto vale este sequestro?

Ah se pudéssemos nos resetar, reprogramarmos para além das receitas prontas oferecidas nas feiras de espiritualidades charlatãs, se ver livre dos líderes religiosos abusadores, das ideologias negacionistas e civismos barbarizados. Sentar à beira do caminho com a liberdade dos que ainda sorriem com as peraltices que reconectam aos dias felizes. Pois, quando viver se torna inapreensível, esvaziam-se horizontes, abrem-se abismos, olhamos para ele, que olha para nós e nos convida a entrar.

São tempos difíceis, basta somar nacionalismo do cagaço, fanatismo ignorante, fascismo ‘acalentador’ e temos a etapa que antecede a barbárie. Empunhe a cruz ao contrário e terás a espada, o dedo em riste e terás o rifle, a língua afiada de insensatez e teremos: a estupidez, o sangue, lágrimas e o inferno. - Conseguiremos escapar? – Vivos talvez sim. Porém humanos, as barbáries dificultam saber. Mas uma certeza nos reposiciona ao que já dissera Pascal: ‘Que quimera é o homem! Que confuso, que caos. Que misto de contradições. Juiz de todas as coisas, verme, imbecil, depositário de verdades e incertezas! Glória e nojo do universo – quem deslindará esta embrulhada?’ – Não sei vocês, mas quanto a mim, coleciono as bolhas de interrogação.


Prof. Neuri Adilio Alves - Filósofo pesquisador sobre Vazios no Campo, Trabalha com Educação Popular, com Assessoria de Organizações Sociais do Campo

quinta-feira, 27 de maio de 2021

Vazios e Silêncios na Agricultura Familiar


Por, Neuri A. Alves - 27 de maio 2021

''Não temos apenas latifúndios de terra, temos latifúndios de silêncios, de vazios existenciais, sociais, territoriais e sentidos para a vida na área rural''


Estudar vazios é parte de meu trabalho há duas décadas. E o ponto de partida é o sentido da vida, as crises existenciais do século XX e 
início deste milênio. O cenário é assustador, pensar a vida a partir da segunda metade do século passado é uma mescla de assombro e ilusão – pois é reveladora às mudanças no tecido social e as desoladoras esperanças que nos foram servidas como receitas de viver. Assombro, porque descobrimo-nos mais frágeis, limitados, embora o orgulho permanente – ilusão, porque sabemos que parte de tudo o que fizermos é mero adiar-se. E que todo nosso esforço parece esfacelar-se nos interesses mundanos e materiais de outros, e muito pouco para nós – não tem a ver com interdependência, é dependência mesmo de um sistema de governança maior que nós mesmo. O Campo vive esse drama profundamente, embora o vibracionismo de economistas e escribas do agronegócio.

Embora as barbáries, os conflitos ceifando vidas, campos de extermínio revelando nossa insensibilidade em relação a vida. Costumo dizer que lembrar Hiroshima e Nagasaki não é apenas o findar de um conflito. Não é apenas uma memória da perversidade do ego, da mente humana com duas bombas atômicas devastando territórios, dizimando milhares de vida, comprometendo a saúde de gerações, inviabilizando sonhos, abrindo uma ferida que nunca deixou de sangrar e condenando uma geração inteira as consequências físicas, materiais e existenciais – a ‘Rosa de Hiroshima’: hereditária, sem perfume, radioativa, estúpida e inválida’ nunca mais fechou.

É preciso olhar para estes fatos da história como mudanças de paradigmas no ocidente. Até ali tínhamos uma frágil certeza que morreríamos como indivíduos, mas aqueles dois artefatos nucleares mudaram a leitura antropológica da história, não apenas revelaram ao mundo a capacidade de destruição e imposição de poder. As bombas desnudaram-nos para a compreensão, ali pariu a certeza que podemos desaparecer como espécie de um instante para outro. A partir de então, passamos conviver com a angustia diária de incertezas, embora pouco compreendida pela narcísica cultura ocidental. Seja por disputas no campo das relações diplomáticas da geopolítica ou pela intencionalidade de um maluco qualquer, neste mundo de pouca sanidade.

O século XX e sua lógica urbanista, narcísica e consumista nos dessacralizou de valores fundamentais, nos coisificou como engrenagem da produção, consumo e falsos sentidos. Nos secularizou como máquinas com prazo de validade e esvaziou-nos para o sentido da vida. Não há registro de outros momentos na história humana em que se desenvolveu, produziu-se tantas coisas para tornar nossas vidas mais cômodas, tranquila e supostamente mais feliz. De outro modo, isso revelou-se insuficiente, desnecessário e aporte de insatisfação. Pois, nunca antes na história os indivíduos experimentaram aos milhões o vazio existencial, as angustias de buscas não compreendidas, a ausência de um sentido e significado para a vida e o suicídio como fuga das dores existenciais – e então, assombrosamente compreendemos o que é morrer por dentro. Mas aí, a insensibilidade falsamente nos blindou, congelou-nos até o ponto de derretimento por nossas contradições e as brutalidades de nosso ser irracional – embora a racionalidade exacerbada seja parte deste todo!

Mas tal experiência, que parecia mais uma realidade vivida pelo sujeito urbano, exposto a lógica de um desenvolvimento de caráter moderno a reboque de processo pós-moderno, revelou-se antropológica e sociologicamente teia de expansão também a vida no campo. E esta, tecida diariamente, expandida conforme a insaciável perversidade do sistema que nos individualizou, codificando-nos como número da produção e nos ‘coisificando’ como códigos de barras de valores e interesses transitórios, descartáveis na lógica perversa da produção. Ou seja, perdeu o valor ou capacidade de produzir se descarta – avançaria ainda mais.

E este que parecia um paradigma somente da vida urbana moderna, chega ao campo no Brasil a partir da programática agenda e pacote da Revolução Verde. E neste pacote da lógica produtivista de larga escala para circuitos longos, o homem do campo, em hegemônica maioria dos que não foram vítimas da expulsão (sim expulsão) via êxodo rural, passaram a ser desconstruídos, como sujeitos de vida comunitária, social, cultura e existencial, para serem transformados em mera engrenagem da estatística produtivista na balança comercial.

Ao menos, meio século depois aqui estou, primeiro como observador, segundo como provocador de releituras para o campo e por último, ensaísta e curioso pesquisador dos ‘Vazios Existenciais’ na agricultura familiar – ou seja, sei que não temos apenas latifúndios de terra neste país. Passamos ter latifúndios de silêncios, de vazios existenciais e sentidos para a vida na área rural também. Há milhares de agricultores e agricultoras morrendo de silêncio enquanto ensaio escrever este artigo – mas como diz a letra da música ‘Notícia de Jornal’ cantada por Chico Buarque: ‘’A dor da gente não sai no jornal’’ – e complemento dizendo: as dores existenciais menos ainda.

É preciso ouvir este silêncio que grita, provindo do seio das propriedades. Pois, os camponeses que até então cotados a desaparecer, não desapareceram, em virtude da produção subsistente e diversificada - quase uma subversão a monocultura. Estes agora passam viver com a angustia de uma vida vazia de sentido e significado. Uma existência pulverizada de angustias, stress, depressão, silêncio nas relações comunitárias, sociais, e a pior das realidades – conviver com o suicídio como remédio as ansiedades de uma vida imersa na lógica da produção e o consumo como batismo e salvação social e existencial.

Nas andanças por aí, conhecendo a angústia dos agricultores e agricultoras, fica explicito a necessidade urgente de devolver não só a liberdade ao homem do campo expropriada pela lógica impositiva de produzir, não o que se quer, mas o que o sistema determina. É preciso devolver-lhes o espaço da propriedade como direito de decidir sobre o que é seu. Lhes devolver a cuia de chimarrão, da celebração da vida, da convivência que lhe foi tirada como instrumento da confraternização. Devolver-lhes o direito de sentar-se à sombra quando o corpo estiver cansado, o direito de visitar os vizinhos mais próximos sem se sentir controlado, prisioneiro dos pacotes tecnológicos.

É preciso devolver o direito ao convívio da vida comunitária, o direito de dormir sem o peso das preocupações com o banco que lhes ameaça pelo crédito acessado. É preciso preencher os vazios de infelicidades com a dignidade que lhes foi expropriada – e acima de tudo, ressignificar o sentido da vida com as sensibilidades saqueadas de sua relação simbiótica com a terra, a propriedade. É preciso diferenciar a beleza que os intelectuais veem na capacidade de produzir, da dureza de quem põe a mão na terra e não na caneta e teclado eletrônico. Mais que dignidade, sustentabilidade é preciso felicidade no campo. Sem isso, não haverá colheitas significativas!

Prof. Neuri Adilio Alves - Filósofo pesquisador sobre Vazios no Campo, Trabalha com Educação Popular, com Assessoria de Organizações Sociais do Campo

quarta-feira, 26 de maio de 2021

Na distância do dizer e fazer faltam gerânios


''Quando apenas se olha, discursa e pouco faz, o jardim da luta é terra prometida, terra vazia ou terra arrasada. A retórica segue bonita, mas o jardim, a rua, o horizonte vazio e triste'' (Prof. Neuri a2)


A palavra ‘longe’ pode ser mero advérbio relativo de lugar, a depender de quem o diz, quem ouve, a que referência. Dos gregos a nós, a dimensão ou noção de espaço, tempo e lugar, do dizer e fazer, pode ser descrito, conceituado, mas não findado como determinismo. Dizer isso é importante, quando queremos aferir dimensão daquilo que não só se vê, se vocifera, mas acima de tudo, se faz. Pois, entre o dizer e o fazer, por vezes, se abrem abismos difícil de atravessar, a não ser por palavras, quando as pernas se recusam enfrentar.


A luta deveria ter um pouco dos girassóis (estratégicos na luz do sol, práticos no escuro da noite (na espera do amanhecer) mas nem sempre, ou quase nunca, é. Quando muito, a transformamos em jardim exótico de: rosas com espinhos, bonitas de ver, mas temerosas por espinhar. Como dama da noite, tímida com a luz do dia e desinibida ao anoitecer – embora pouca presença para a ver. No otimismo, até a imaginamos como rosa do deserto, resiliente, teimosa e resistente, apenas para os fortes, no pessimismo é Rosa de Hiroshima, estúpida, sorrateira e inválida, típica dos covardes, que usam das piores ações para justificar a condição.

Mas quando a luta se faz jardim que encanta por dentro e regado por fora com prática transformadora, ela redimensiona a realidade, mexe no espirito, preenche de coragem, provoca mobilidade e transformação na realidade. E aqui lembro dos dirigentes, militantes que pouco falam e muito fazem – e muitas vezes, sem precisar de diretivas. Estes, assemelham-se a história ‘A rua triste dos Gerânios’ descrita pelo escritor Paulo Coelho há quase uma década, nesta, o escritor relata:

‘’Numa rua cinzenta e triste de um bairro operário de Liverpool, uma mulher colocou um vaso de gerânios na janela. Dois dias depois, sua vizinha da frente por inveja, ou porque notou que os gerânios eram bonitos colocou dois vasos de flores. Alguns trabalhadores, voltando para casa, notaram duas janelas diferentes. Suas mulheres, vaidosas, resolveram também comprar flores. Um mês depois, todas as janelas da rua tinham pequenos jardins. Alguém pintou a fachada do lugar onde morava, já que a beleza das flores realçava a feiura do resto. O exemplo foi imitado. Um ano depois, a cinzenta e triste Rua de Liverpool se transformou num referencial de urbanização. Hoje, cinco anos depois, o bairro inteiro está sendo modificado, com apoio da prefeitura. - Tudo porque, um belo dia, alguém colocou um vaso de gerânios na janela.’’

Porque descrevo isso? Porque a luta exige sensibilidade para ver, iniciativa, estratégia, proatividade, e esta, é carregada de uma palavrinha mágica e provocativa chamada convicção, que se traduz em sei o que faço, porque faço e assumo os desafios e responsabilidades sobre aquilo que preciso ver e fazer. Pois, quando apenas se olha, discursa e pouco faz, o jardim da luta é terra prometida, terra vazia ou terra arrasada. - A retórica segue bonita, mas o jardim, a rua, o horizonte vazio e triste.

Ver-pensar-fazer é mais fecundo que falar-justificar-acomodar. Por ora, se ainda não conseguimos enxergar os ‘gerânios’ na janela, que possamos aprender com os girassóis durante os dias de luz e o escurecer das noites. Na luta, quem não consegue ver e agir na luz do sol, muito menos enfrentará as noites escuras que tem. - Por mais ‘gerânios’ na janela!!!


Prof. Neuri A. Alves 

domingo, 21 de junho de 2020

O DIREITO UNIVERSAL DE RESPIRAR


Achille Mbembe – Filósofo Camaronês

''Somos capazes de redescobrir que cada um de nós pertence à mesma espécie, que temos um vínculo indivisível com toda a vida?'' 

Algumas pessoas já estão falando sobre "pós-COVID-19". E por que não deveriam? Mesmo que, para a maioria de nós, especialmente aqueles em partes do mundo onde os sistemas de saúde tenham sido devastados por anos de negligência organizada, o pior ainda esteja por vir. Sem leitos hospitalares, sem respiradores, sem testes de massa, sem máscaras, desinfetantes ou arranjos para colocar aqueles que estão infectados em quarentena, infelizmente, muitos não passarão pelo olho da agulha.

Uma coisa é se preocupar com a morte de outros em uma terra distante e outra é tomar consciência subitamente da própria putrescência, ser forçado a viver intimamente com a própria morte, contemplando-a como uma possibilidade real. Tal é, para muitos, o terror desencadeado pelo confinamento: ter que finalmente responder pela própria vida, pelo próprio nome.

Devemos responder aqui e agora por nossa vida na Terra com outras pessoas (incluindo vírus) e nosso destino compartilhado. Essa é a liminar que esse período patogênico trata da humanidade. É patogênico, mas também o período catabólico por excelência , com a decomposição dos corpos, a triagem e expulsão de todos os tipos de resíduos humanos - a “grande separação” e o grande confinamento causado pela impressionante expansão do vírus - e junto com ele , a digitalização generalizada do mundo.

Por mais que tentemos nos livrar disso, no final, tudo nos leva de volta ao corpo. Tentamos enxertá-lo em outras mídias, transformá-lo em corpo de objeto, corpo de máquina, corpo digital, corpo ontopânico. Agora ele volta para nós como uma horrível mandíbula gigante, um veículo para contaminação, um vetor para pólen, esporos e mofo.

Saber que não enfrentamos essa provação sozinhos, que muitos não vão escapar dela, é um conforto vã. Pois nunca aprendemos a conviver com todas as espécies vivas, nunca nos preocupamos realmente com os danos que nós, humanos, causamos nos pulmões da terra e em seu corpo. Assim, nunca aprendemos a morrer. Com o advento do Novo Mundo e, vários séculos depois, o surgimento das “raças industrializadas”, escolhemos essencialmente delegar nossa morte a outras pessoas, para fazer uma grande reformulação sacrificial da própria existência através de uma espécie de vicariato ontológico.

Em breve, não será mais possível delegar a morte de alguém a outros. Não será mais possível que essa pessoa morra em nosso lugar. Não apenas seremos condenados a assumir nossa própria morte, sem mediação, mas as despedidas serão poucas e distantes entre si. Chegou a hora da autofagia e, com ela, a morte da comunidade, pois não existe uma comunidade digna de seu nome em que se torna impossível dizer a última despedida , ou seja, relembrar os vivos no momento da morte.

A comunidade - ou melhor, o comum - não se baseia apenas na possibilidade de dizer adeus , isto é, de ter um encontro único com outras pessoas e honrar essa reunião repetidamente. O comum é baseado também na possibilidade de compartilhar incondicionalmente, cada vez que extrai dele algo absolutamente intrínseco, algo incontável, incalculável, inestimável .

Não há dúvida de que os céus estão se aproximando. Presa no domínio da injustiça e da desigualdade, grande parte da humanidade é ameaçada por um grande estrangulamento, pois a sensação de que nosso mundo está em um estado de alívio se espalha por toda parte.

Se, nessas circunstâncias, um dia depois vier, não poderá ocorrer às custas de alguns, sempre os mesmos, como na Ancienne Économie - a economia que precedeu essa revolução. Deve necessariamente ser um dia para todos os habitantes da Terra, sem distinção de espécie, raça, sexo, cidadania, religião ou outro marcador de diferenciação. Em outras palavras, um dia depois chegará, mas apenas com uma ruptura gigante, resultado da imaginação radical.

Papel sobre as rachaduras simplesmente não serve. No fundo desta cratera, literalmente tudo deve ser reinventado, começando pelo social. Depois de trabalhar, fazer compras, acompanhar as notícias e manter contato, nutrir e preservar conexões, conversar entre si e compartilhar, beber juntos, adorar e organizar funerais, começa a ocorrer apenas na interface das telas, é hora de reconhecer que por todos os lados estamos cercados por anéis de fogo. Em grande parte, o digital é o novo buraco que está explodindo a Terra. Simultaneamente, uma trincheira, um túnel, uma paisagem lunar, é o bunker onde homens e mulheres são convidados a se esconder, isolados.

Eles dizem que, através do digital, o corpo de carne e ossos, o corpo físico e mortal, serão liberados de seu peso e inércia. Ao final dessa transfiguração, ele poderá se mover através do espelho, se afastar da corrupção biológica e restituir a um universo sintético de fluxo. Mas isso é uma ilusão, pois, assim como não há humanidade sem corpos , da mesma forma, a humanidade nunca conhecerá a liberdade sozinha, fora da sociedade e da comunidade, e a liberdade nunca poderá custar à biosfera.

Temos que começar de novo. Para sobreviver, precisamos retornar a todos os seres vivos - incluindo a biosfera - ao espaço e energia de que precisam. Em seu ventre úmido, a modernidade tem sido uma guerra interminável contra a vida. E está longe de terminar. Um dos principais modos desta guerra, levando diretamente ao empobrecimento do mundo e à dessecação de áreas inteiras do planeta, é a sujeição ao digital.

Após essa calamidade, existe o perigo de que, em vez de oferecer santuário a todas as espécies vivas, infelizmente o mundo entrará em um novo período de tensão e brutalidade . Em termos de geopolítica, a lógica do poder e do poder continuará a dominar. Por falta de uma infraestrutura comum, uma divisão viciosa do globo se intensificará e as linhas divisórias se tornarão ainda mais arraigadas. Muitos estados procurarão fortalecer suas fronteiras na esperança de se protegerem do exterior. Eles também procurarão ocultar a violência constitutiva que continuam a direcionar habitualmente para os mais vulneráveis. A vida atrás das telas e em condomínios fechados se tornará a norma.

Especialmente na África, mas em muitos lugares do Sul Global, a extração intensiva em energia, a expansão agrícola, as vendas predatórias de terras e a destruição de florestas continuarão inabaláveis. A alimentação e o resfriamento de chips e supercomputadores de computador depende disso. O fornecimento e fornecimento dos recursos e energia necessários para a infraestrutura de computação global exigirão mais restrições à mobilidade humana. Manter o mundo à distância se tornará a norma para manter riscos de todos os tipos do lado de fora. Mas, por não abordar nossa precariedade ecológica, essa visão catabólica do mundo, inspirada em teorias de imunização e contágio, pouco faz para romper o impasse planetário em que nos encontramos.

Todas essas guerras na vida começam tirando o fôlego. Da mesma forma, como impede a respiração e bloqueia a ressuscitação de corpos e tecidos humanos, o COVID-19 compartilha essa mesma tendência. Afinal, qual é o objetivo da respiração, se não a absorção de oxigênio e a liberação de dióxido de carbono em uma troca dinâmica entre sangue e tecidos? Mas no ritmo que a vida na Terra está acontecendo, e dado o que resta da riqueza do planeta, a que distância estamos realmente do momento em que haverá mais dióxido de carbono do que oxigênio para respirar?

Antes deste vírus, a humanidade já estava ameaçada de asfixia. Se deve haver guerra, não pode ser tanto contra um vírus específico como contra tudo o que condena a maioria da humanidade a uma interrupção prematura da respiração, tudo o que ataca fundamentalmente o trato respiratório, tudo o que, no longo reinado do capitalismo, tem restringiu segmentos inteiros da população mundial, raças inteiras, a uma respiração difícil e ofegante e à vida de opressão. Vir através dessa constrição significaria que concebemos a respiração além de seu aspecto puramente biológico, e sim como aquilo que mantemos em comum, aquilo que, por definição, ilude todo cálculo. Com o que quero dizer, o direito universal de respirar.

Como aquilo que não é aterrado e é comum, o direito universal de respirar não é quantificável e não pode ser apropriado. De uma perspectiva universal, não é apenas o direito de todo membro da humanidade, mas de toda a vida. Portanto, deve ser entendido como um direito fundamental à existência. Consequentemente, não pode ser confiscado e, assim, ilude toda a soberania, simbolizando o princípio do soberano por excelência . Além disso, é um direito originário de viver na Terra, um direito que pertence à comunidade universal de habitantes terrestres, humanos e outros.

Ocaso já foi pressionado mil vezes. Recitamos as acusações de olhos fechados. Seja a destruição da biosfera, a tomada da mente pela tecnociência, a criminalização da resistência, ataques repetidos à razão, cretinização generalizada ou a ascensão de determinismos (genéticos, neuronais, biológicos, ambientais), os perigos enfrentados pela humanidade são cada vez mais existenciais.

De todos esses perigos, o maior é que todas as formas de vida serão tornadas impossíveis. Entre aqueles que sonham em carregar nossa consciência em máquinas e aqueles que têm certeza de que a próxima mutação de nossa espécie está em nos libertar de nossa casca biológica, há pouca diferença. A tentação eugenista não se dissipou. Longe disso, de fato, uma vez que está na raiz dos recentes avanços na ciência e na tecnologia.

Nesse momento, chega a súbita prisão, uma interrupção não da história, mas de algo que ainda escapa ao nosso alcance. Uma vez que nos foi imposta, essa cessação não deriva de nossa vontade. Em muitos aspectos, é simultaneamente imprevisível e imprevisível. No entanto, precisamos de uma cessação voluntária, uma interrupção consciente e totalmente consensual . Sem o qual não haverá amanhã. Sem o qual nada existirá, a não ser uma série interminável de eventos imprevistos.

Se, de fato, COVID-19 é a expressão espetacular do impasse planetário em que a humanidade se encontra hoje, é uma questão de reconstruir uma Terra habitável para dar a todos nós o fôlego da vida. Temos de recuperar os pulmões do nosso mundo, a fim de criar novos caminhos. A humanidade e a biosfera são uma. Sozinho, a humanidade não tem futuro. Somos capazes de redescobrir que cada um de nós pertence à mesma espécie, que temos um vínculo indivisível com toda a vida? Talvez seja essa a pergunta - a última - antes de darmos nosso último suspiro de morte.

Joseph-Achille Mbembe, é um filósofo, teórico político, historiador, intelectual e professor universitário camaronês.

Fonte: https://africasacountry.com/2020/06/the-universal-right-to-breathe

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Entre os 1300 mortos, perdi o grande mestre


Prof. Dr Cleverson Leite Bastos 
Talvez pudesse me conformar que a morte é uma invenção da vida – eu disse talvez. Mas o dia terminou mais triste, não perdi (e entre colegas perdemos) apenas um professor de filosofia que teria cruzado os corredores de uma sala de aula em minha vida. Perdi o grande mestre Professor Cleverson Leite Bastos. Perdi, quem aguçou-me a curiosidade para mergulhar em grandes obras, a curiosidade por estudar sem me apegar apenas por escolas filosóficas, porque filosofia é mais do que escolas, é totalidade. Dele, os incentivos ao mergulho na complexidade, na grande bolha interrogativa deste mundo – estudar, estudar, estudar.  

Difícil esquecer suas aulas de metafisica, ética, estética, filosofia da ciência, cosmologia e lógica – aliás, meu grande terror os estudos da lógica, uma de suas grandes paixões e reconhecido escritor e pesquisador. Quem não lembra dos temerosos dias de prova, em meio a seus risos, sarcasmos de uma mente perturbada, genial, de quem produziu uma tese de doutorado com quase mil página, (dez com louvor na banca na UFSCAR/SP) discutindo os paradoxos de Zenão de Eleia, o ‘Infinito dentro do Finito’ – monstruoso. Aquele excêntrico professor que aplicava a prova de Lógica I, II ou III no início da manhã, então pegava suas coisas e ia embora, voltando perto do meio dia para recolher. – Colar o que? E de quem? Que nota tirar? – Que terror!!!  

Partiu vítima do infortúnio deste momento (COVID19), encontrou-se com o limite do tempo, retornando à diluição cósmica, causa de tantas discussões em suas peripatéticas aulas de metafisica. Difícil esquecer aquele epistêmico e amargo conformismo em Filosofia da ciência: ‘da entropia ninguém escapa’, em Cosmologia: ‘tudo neste universo é só perda’, na aula de Metafisica: ‘tudo é ente, tudo existe’. E a dureza de afirmações do tipo: ‘a morte é a prova de que não somos necessários neste mundo’. - Difícil esquecer os momentos que vivi em suas aulas no Instituto Vicentino de Filosofia e também na Pontifícia Universidade Católica em Curitiba (PUCPR).

Se a genialidade o diferenciava, o vício do cigarro o denunciava quase como um sarcasmo a inteligência, uma dose de demência perdoada. Partiu vítima de um vírus, algo que emerge de suas afirmações: ‘contra a natureza não se luta’, e por uma ironia do destino ou não, a criatura invisível o levou, aproveitando-se da única brecha de estupidez, manifesta em um pulmão fragilizado pelo vício. Costumava dizer que o filósofo é uma espécie de poeta frustrado com cientista inacabado, de inteligência exacerbada e demências oportunizadas – Ele foi um pouco deste todo. 

Foi poeta da vida contando versos de amor a canoagem, das aventuras ajudando o pai pescador em alto mar, foi cientista dedicado nos estudos da ‘filosofia da mente’ ‘matrimoniando’ duas paixões: neurociência e psicanálise. Se não fosse pelos milhares de alunos, de suas quase três décadas na PUC/PR partiria no anonimato, sem o espetáculo da filosofia show dos grandes palcos aplaudidas neste país – aliás, que tanto odiava. Deixa um legado de grandes histórias, reconhecidas publicações no campo da Lógica, turbilhão de belas lembranças e exemplo de dedicação a filosofia. Sim, talvez vai cedo demais, mas como ele mesmo diria: 'tudo aqui é só perda'. 

– O vírus que o levou neste dia entre os 1300 mortos, já levou outros 39.797 especiais também, vítimas da ‘gripinha’ mais cruel do século. De tudo, fica a lição necessária de cuidarmo-nos com um brinde amargo no licor de Sigmund Freud: ‘a morte é a única dor que não se encontrou e se encontrará remédio algum’. – Carpe Diem, et memento mori!

Aqui uma pequena oportunidade de ouvir sua reflexão sobre o 'Livre Arbitrio'

Prof. Neuri A. Alves – Filósofo Pesquisador em Antropologia Filosófica Existencial e Assessor de Formação e Elaboração na Fetraf Santa Catarina

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Ufanismos e Paradoxos do ‘Agro Pop’

Problematizar sucessos é incorrer no risco de ousadia, excesso de preciosismo, quando oportuno e cômodo seria apontar o dedo aos limites, fracassos de um agroprodutivismo, respaldado meramente por balança comercial. No entanto, nem todo sucesso é sinônimo de bilharete. Por vezes, revela cicatrizes profundas, sob o tecido corolário do êxito, que encobre dolorosas feridas, que sangram ao custo de acúmulos degradantes – e como a terra não mente ou esconde suas dores, ela se revela como ferida hemorrágica.                                                     
De retirante família camponesa, fomos empurrados ao mundo urbano na década de 1970, nunca deixei de pisar no solo onde foi enterrado meu umbigo de nascituro doméstico pelas mãos de minha avó parteira. E assim passei a infância visitando o lugar de minha ancestralidade. Ali, com a alegria de um urbanoide pobre (em férias de escola) para além das peraltices, conheci propriamente os desafios enfrentados nas pequenas propriedades de trabalho braçal e produção artesanal destinada ao consumo familiar.
► O que vi na década de 1980
Nas idas e vindas deste período, em meados dos anos 80, ouvi as primeiras conversas sobre o cultivo de uma semente ‘lucrativa’ que mais tarde compreendi tratar-se da soja. Porém, diziam que tal cultivar não era para a pequena propriedade (talvez nem as grandes), embora cooperativas do agronegócio regional incentivassem os pequenos (alguns miseráveis) agricultores a plantar. Mesmo que permanecesse aproximadamente 150 dias (quase meio ano) ocupando o solo e inviabilizando o cultivo de alimentos básico as famílias – o que nos oportunizava chamá-la também de ‘grão da fome’ em propriedades de até 7 hectares!
Neste espaço de tempo, conheci também a suinicultura e avicultura em grandes alojamentos, com placas identitárias na entrada das propriedades sinalizando um processo de organização produtiva que não era para as famílias. Era sim, para abastecer grandes mercados, circuitos longos ao custo da mais valia da terra, degradação ambiental, subordinação da saúde e condicionante da força de trabalho do agricultor. Ciclo vicioso que se consolida agora no confinamento para produção de leite, fortalecendo uma hegemonia de controle do tempo, espaço, domínio, posse das propriedades e exclusão dos pequenos agricultores. 
 O que observamos nas andanças
Assessorando entidades da agricultura familiar, entendi que a nominada Revolução Verde havia feito de alguns afortunados do lucro, outros meras engrenagens da produção, da terra uma vítima ambiental, e a uma hegemônica maioria escravos do produtivíssimo: sem lucro, saúde, terra, propriedade, tempo, voz, vez e identidade. Mas com a possibilidade de se chamar empreendedor rural. – Um processo a desconstruir o sujeito comunitário do campo, consolidando a ferramenta perversa neoliberal do individualizar para fragilizar. O que responde parte dos desafios colocados ao sindicalismo e todas as organizações da categoria social.
Mas a suposta grandeza de um projeto para balança comercial tão propalado pelo capital e porque não dizer também, por muitos ‘numerologistas’ de commodities do campo progressista, não objetiva levar em consideração os impactos que estão por trás do modo de produção no agronegócio. Um sistema que além de impactar violentamente no meio ambiente, destruir a base cultural de uma categorial social, ameaça nossa permanência como espécie por aqui. Seja esta última, pela produção para escala global abandonando a soberania local ampliando a mesa da fome e miséria, seja pelo uso indiscriminado de agroquímicos e uma nanociência para sementes que não garante a saúde humana, esteriliza a autonomia dos agricultores e ameaçam a soberania dos povos.
 Modelo agro pop e as ameaças veladas
Não bastasse, o momento oportuniza dizer que o agronegócio é um sistema pandêmico de zoonoses. Problema tão grave, que uma parcela significativa de doenças infecciosas que acometem espécies animais inteiras no planeta, assim como, são potenciais contaminantes humanos. – O que se revela no momento a possível origem da COVID19. – Some-se a isso, as endemias e pandemias no agronegócio planetário como: ‘Peste Suína Africana’, a ‘Gripe Aviária’, a Síndrome Respiratória do Oriente Médio, (ou MERS) uma doença provocada por outra variante dos Coronavírus (o MERS-CoV), a Encefalopatia Espongiforme Bovina (Mal da Vaca Louca). Se não suficiente, junte a este pacote mortal as conhecidas bactérias da toxoplasmose, hidatidose, equinococose, teníase, cisticercose, brucelose e salmonelas.
Sei que nem toda provocação resulta reflexão, mas não fazer, é padecer incólume ante ao óbvio – e não podemos sucumbir a armadilha da inércia, que legitima o lucro-pelo-lucro se usando da mais valia da terra e a esterilização do planeta via concentração destrutiva e capital improdutivo. – Quem está preocupado com as grandes ameaças endêmicas ou pandêmicas do agronegócio? Não será o capital improdutivo do agronegócio, que neste momento cozinha no caldeirão da ganância o prato de nossa soberania alimentar e nutricional. Pois, somente o quarteto ABCD (ADM, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus) dominam o comércio planetário de commodities agrícolas. Acrescente a esta bomba relógio os pacotes ‘milagrosos’ da Bayer/Monsanto.
 Na resteva das colheitas sobra provocações
O que nos resta além de número da balança comercial? – Resta o ônus do violento impacto ambiental, a destruição física, mental, social e espiritual do agricultor. A desconstrução do sujeito do campo e as ameaças permanentes de um vírus ou bactéria do desenfreado capitalismo agrícola periférico ou central, colocar o planeta em xeque mate, mas diferente de agora, sem salvação. Em última instância, resta a pedagogia deste momento. Que nos sirva de limiar para uma nova esperança, com mudanças profundas de consciência a uma nova ética planetária do cuidado, respeito a vida, solidariedade, resiliência e sororidade entre os seres. Do contrário, pela inteligência esterilizada e nossa consciência falida, nos consumiremos em autofagia até o colapso final.
Não há mais tempo, a decisão de ontem é produzir e consumir para viver, ou insistir no modelo convencional para morrer. Diferenças entre agricultura familiar, camponesa e agronegócio não é simplismo de nomenclatura, masturbação mental da semântica ou conceito de planilha para economistas de escritório, as diferenças no modo de ser, viver e produzir são abissais. O que por si só suscita profundas reflexões, começando pelo paradoxo do suposto sucesso produtivo de um modelo pop, mas que revela 1 bilhão de famintos no planeta e nos oferece uma ‘pequena’ mas singela verdade: agroecologia não é autofagia, portanto, a escolha sobre modelo e o que queremos consumir nos pertence Ic et nunc, (aqui, agora). Do contrário, vamos providenciar nossos flutuantes temporários, o barco vai afundar e não haverá resgate!  
Prof. Neuri A. Alves – Filósofo Pesquisador em Antropologia Filosófica Existencial e Assessor de Formação e Elaboração na Fetraf Santa Catarina

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Não pergunte o que mudará depois!

''O depois não existe para quem não se questiona agora, ele é gestação do que fizemos ontem, problematizamos hoje e projetamos para amanhã.''
A imensurável compreensão da totalidade nos impõe limite de apontar certezas. Fato – há muito não somos mais os mesmos. E dizer isso é duro, pois vem a memória parte do que amo nas canções compostas pelo poeta da música Belchior, assim como preenche-me os ouvidos a voz linda e imponente de Elis Regina cantando a letra (‘Como nossos país’ – 1976): ‘’Minha dor é perceber. Que apesar de termos feito tudo, tudo o que fizemos. Ainda somos os mesmos e vivemos. Ainda somos os mesmos e vivemos. Como os nossos pais.’’
Sim! É duro dizer. Mas não somos mais os mesmos, não vivemos como nossos pais, e talvez em essência não vivemos. E quanta beleza deixamos pelo caminho, quantos valores dissolvemos nas fragilidades da tese pós moderna do necessário ser diferentes e atualizados, como critério de falsa adesão e inclusão neste mundo. Não ser mais o mesmo deveria ser desafiador a quem se vê confrontado consigo mesmo, seus limites, suas decadências e o frágil tecido do isolamento individual a que o projeto neoliberalista condicionou milhões de cidadãos no planeta.
Nenhum processo foi tão competente como ferramenta de produzir falso empoderamento (individualizante) como o mundo neoliberal, consumista. Fomos descaracterizados como seres comunitários, fraternos, solidários e políticos. Característica substancial e primeva do sapiens. Fomos transformados em engrenagem solitária a serviço do sistema produtivista mundial na vida rural e urbana. Aliás, não somos mais cidadãos urbanos ou rurais, sendo agora elogioso sentir-se cidadãos planetários, embora as imensas contradições.
Nos isolamos de nós mesmos, perdemos sensibilidade, nos apossamos de uma racionalidade mitigada, vazia, responsiva a interesses pontuais do sistema. E vez que outra, somos beliscados por algo que nos choca, oferece-nos um insight de percepção que ainda vivemos. – Embora não sejamos os mesmos. E isso se revela em momentos como agora. Neste, o isolamento individual é confrontado com a imposição de um isolamento social , e repentinamente estamos no mesmo ambiente familiar com pessoas que nos parecem estranhas no revelado convívio social doméstico.
Esta diáspora para o isolamento social parece chocante, deprimente, tediosa – mas talvez oportuna. Pois, é duro repentinamente encontrar-se consigo mesmo, quando estamos acostumados a usar máscaras para olhar no espelho quebrado do mundo, usar vitrines para fugir de insatisfações do corpo e da alma, usar óculos escuros para esconder o que fomos transformados a luz do dia. Estávamos miseráveis de nós mesmos, embora repentinamente oportunizados pisar novamente no terreno minado de nossas contradições, e neste, um tesouro a ser encontrado – a vida!  
Descobrimos novamente que não seremos eternos, que talvez não chegaremos ao centenário, e na pior hipótese não passaremos de um número na estatística. Talvez, um pontinho quase insignificante na curva mortal que sobe levando impiedosamente vidas em meio a pandemia. Não é o fim dos tempos, não é castigo divino ou messianismo de fim de feira, é a realidade que salta de nossas prepotências. É arrogância de um ocidente sendo posta em xeque, é a ciência se dando conta de seus limites, a política entregando-se a si mesma, o dinheiro se mostrando insuficiente, e a natureza reafirmando seu imenso poder ante nossa pequena capacidade de responder ao diferente, não ao novo – vírus não são novidades.
De outro modo, nossa vida repentinamente volta ser novidade. Mas não pergunte o que mudará depois. – O depois não existe para quem não se questiona agora, ele é gestação do que fizemos ontem, problematizamos hoje e projetamos para amanhã. Que Belchior esteja certo e seja a luz a iluminar as nebulosidades contraditórias deste tempo, que embora pareça fazer-se transparente, não sai da noite escura. Que sua canção, se ao menos não provar-nos o contrário, nos sirva de alento: ‘’Mas é você que ama o passado e que não vê. É você que ama o passado e que não vê. Que o novo sempre vem…’’ – Então, que vivamos este tempo oportuno para renascer.
Feliz Páscoa a todos!!!

Prof. Neuri A. Alves – Filósofo Pesquisador em Antropologia Filosófica Existencial e Assessor de Formação e Elaboração na Fetraf Santa Catarina

sexta-feira, 20 de março de 2020

Só o temor não nos Salvará


''Não é o vírus que nos mata, morreremos de irresponsabilidades assistidas e vilipendiadas''

Assombroso, mas não suficiente! Sete séculos depois oportunizados estamos a nos beliscar novamente. Se os fatos ainda não eram suficientes, temos agora uma quarentena tentando nos livrar do pior – final da espécie. Da invisibilidade inicial da ‘Peste Negra’ que ceifou milhões de vidas na eurásia aos dias atuais, (afora a visível explosão nuclear) não tivemos nenhuma outra oportunidade de confrontarmo-nos com nossa limitada capacidade de lidar com o invisível – sim invisível. Os vírus são parcelas do invisível que se revela no temor da presença, terror do encontro, trabalho da ciência e dor materializada aos que ficam, após letalidade sobre os que partem. O momento que vivemos seria mera coincidência? Certo que não! 

Diante de um mundo que se revela excessivamente no estético, nos priva do temor forjando falsa autossuficiência, nos isenta da reflexão ao que compõe a aparente visibilidade estética, cedo ou tarde seremos devorados pela frágil arrogância de seres bem informados, através do poder destrutivo que emerge do invisível. E falar do que aparentemente ‘vemos’ não é tratar do que arrogantemente sabemos, decidimos e dominamos sobre nós mesmo. É dizer sim, que pouco sabemos ou controlamos no mundo a nossa volta – na síntese: somos presas cativas do visível e vítimas fáceis do invisível, em parte pela dificuldade de assimilar e aceitar.

Dos assombros vividos, rememoro minha tenra idade em meados dos anos 80, pré-adolescente curtindo nas ondas de rádio a explosão planetária da banda inglesa Queen. Aos doze anos ouvi pela primeira vez ‘Who Wants to Live Forever?’ (Quem quer viver para sempre?) em um dos discos emblemáticos da história da música lançado em 1986, período em que o planeta refletiu profundamente sobre questões existenciais/sociais através do Rock Progressivo com suas letras revelando e provocando reflexões acerca de realidades. Na letra em questão o genial Freddie Mercury da singularidade inconfundível de sua voz a melodia tocante nos provoca profundamente: ‘’Não há tempo para nós, não há lugar para nós. O que é essa coisa que constrói nossos sonhos e vai para longe de nós? - Não há chance para nós, é tudo decidido para nós’’.

São letras que revelam invisíveis, desnudam assombros da vida, denunciam controles sobre nós, iluminam partes do obscurantismo que o mundo nos impõe. Sejam elas, embaladas por um ‘The Wall’ de Pink Floyd tratando de nossas prisões e privações existenciais, até um ‘Muro e Grades’ de nosso Engenheiros do Hawaii, no emblemático disco de meados da mesma década e emblemática letra: ‘’Nas grandes cidades do pequeno dia-a-dia, o medo nos leva a tudo, sobretudo a fantasia. Então erguemos muros que nos dão a garantia. De que morreremos cheios de uma vida tão vazia (...) Um dia super, uma noite super. Uma vida superficial. Entre as sombras entre as sobras... Da nossa escassez’’. - E porque rememorar tais canções? – Porque é difícil acreditar que um mundo de falsos empoderamento, excessos de prepotência, falsa segurança nos levará muito longe cantando no ritmo do ‘Tudo Ok’: ‘’Cabelo ok, marquinha ok, sobrancelha ok, a unha tá ok’’ – como se o completar da mensagem fosse: quarentena ok, comida ok, vida Ok!!!’’

COVID 19 não é uma novidade é a realidade que assombra. Ele salta do obscurantismo de um mundo explicado por Darwin (mutação/adaptação), compreendido, mas não dominado pela ciência. Tão característico de processos cumulativos de compreensão, cuidados permanentes, investimentos em pesquisas e responsabilidades governamentais – Sim, responsabilidades de governos, o que não reflete o nosso. Um país que caminha para a destruição de seus processos de produção cientifica, esterilização de investimentos e condenação de seu povo a misérias. Imposição as quarentenas estendidas, do cuidados com infecções, isolamento da cidadania, civilidade e direito mínimo a dignidade de grande parte da população. Não é o vírus que nos mata, morreremos de irresponsabilidades assistidas e vilipendiadas. 

Não precisamos responder a grande pergunta ‘Quem quer vive para sempre?’, pois Mercury responde dizendo que o sempre é o nosso hoje, e ninguém espera para sempre do mesmo modo. Ou seja, se amar para sempre (apesar de nosso esforço) não venha ser o preceito total, que ao menos o odiar não seja o nosso desejo final. Pois, não consigo silenciar a voz de Gessinger cantando: ‘’Nas grandes cidades de um país tão irreal. Os muros e grades nos protegem de nosso próprio mal’’. - Então, em que temores e grades protegemos nossas vidas do invisível hoje? 

Neuri A. Alves - Professor, pesquisador em Antropologia Filosófica Existencial. Educador popular, assessor de Formação e Elaboração na estratégia da Agricultura Familiar Catarinense.

domingo, 8 de março de 2020

A luta das Mulheres a me moldar

''De quanta sensibilidade tem sido o escrever, o pensar, participar, assimilar e integrar-se a causa pela justiça social?''
Arquétipo é um conceito usual na psicologia analítica do suíço Carl Gustav Jung. Embora a origem seja a palavra grega ‘arché’, principio, fundamento, o que no ‘frigir dos ovos’ (em subversiva semântica) se encontra com a concepção Junguiana. Porém, muito antes de encontrar-me com as dimensões de anima (presença do feminino) e animus (presença do masculino) descobri em mim e no mundo, sensibilidades que convergem, dialogam. Problematizam realidades enraizadas no patriarcalismo como processo histórico, observado no seio familiar com seis irmãs, mais a mãe progenitora encastelada, enclausurada no lar – e porque não citar, minha experiência de aluno numa sala de 40 mulheres no magistério escolar na década de 1990.
Meu contato com a obra do pensador suíço ainda na tenra idade preencheu-me de assombro, ousadia e temeridade. – Assombro ao entender a possibilidade do compreensível, mensurável a presença do feminino (anima) em mim segundo Jung. Eu, primogênito numa família de sete mulheres, adolescente participe das tribos jovens em afirmação da testosterona. – Ousadia, porque apropriar-se de uma bengala de ciência (mesmo que frágil), por vezes nos dá sensação de poder, principalmente ao tratar do que ainda não temos acúmulos suficientes – e por fim: temeridade, ao mexer no enferrujado, mas cortante machado secular do patriarcado arcaico, estupido e real.  
Não tenho problema de dizer que sou a soma de muitas mulheres, por vezes excessos de anima e escassez de animus. Há em mim parcela de muitas mulheres – e espaço para acrescentar-me um pouco de tantas outras com suas causas, sabedorias e sensibilidades. Mas não quero tratar dos dias que virão, quero problematizar os dias que são e estão, pois aqui as dores do mundo têm cor, sexo, gênero e categoria social. Tem referencial velado, silêncios que matam, contradições que ferem, negações que revelam e elucubrações que se esvaziam.
Talvez por isso, curioso do mundo, ousado provocador, aprendiz colaborador da luta me coloco ao lado das mulheres organizadas em entidades, movimentos, núcleos de resistência ao abandono e a espera de mãos humanas a reatar coragens. E munido destas, enfrentar o divórcio displicente do Estado que teria o papel de lhes assistir – e tantos outros, injustos rompimentos. Das relações que as violentam no seio familiar a transversalidade de violências presente nas interações cotidianas e que deveriam de algum modo nos sensibilizar, mexer por dentro, mas não mexe, nem mesmo pela narrativa histórica de vidas perdidas na luta diária por justiça, equidade.  
Há alguns anos, anônimo participe no plenário de um simpósio latino americano, quisera o destino que Eduardo Galeano escolhesse alguém para presentear, e ganhei um dos mais belos presentes, seu livro ‘Mulheres’. Nele, a intensidade e sensibilidade de um escritor que em suas narrativas faz-nos ver sangue e sofrimento, ouvir gritos e rostos violentados, sensibilizando-nos para o aparente sofrimento distante. Galeano não descreve personagens, ele ilustra vidas, rostos, sujeitos. Mulheres a protagonizar história e aquelas por ela esquecidas – nada passa despercebido em sua vivaz alma latina, perspicaz de militante e sensível escritor. São histórias narradas de mulheres que sonham e são vítimas do sonhar, sobreviventes e que nos ajudam sobreviver. Narrativas comoventes pela determinação e subversão, o toque da fragilidade que não as apequena, mas que humanamente nos atinge como flecha, ou deveria minimamente nos sensibilizar – embora difícil mensurar, ante a realidade que vivemos em nosso país.
A intensidade de suas personagens femininas e suas causas me afetam, me reconstroem, preenchem vazios, provocam sensações adormecidas pela insensibilidade de um tempo gélido como iceberg à deriva. Difícil não se comover com as causas descritas de Joana d’Arc à Rosa Luxemburgo, de Eva Peron às dores infindáveis de esperanças das Mães da Praça de Maio. Entre tantos relatos de lutadoras conhecidas, sua perspicaz sensibilidade a revelar-nos as mulheres escondidas na história, das que lutaram na Comuna de Paris às que se rebelaram nos prostíbulos da patagônia. Com impar sensibilidade o escritor latino não as descreve, mas as desenha para que possamos ao menos ver, se nos falta dignidade para sensibilizar.
E você? – De quanta sensibilidade tem sido o escrever, o pensar, participar, assimilar e integrar-se a causa pela justiça social? – Difícil dizer, quando lutamos primeiro para vencer o que nos violenta internamente como processo histórico. Talvez por isso saiba, o assombro que toma-me a alma agora – mas também, o quanto ainda posso apreender junto as mulheres que diariamente comigo compartilham angustias da luta. As que permite-me visitar suas trincheiras organizativas e reservam tempo a ensinar-me. E mesmo que vítimas seculares, convidam-me para dividir seus dias de desafios e dores nas trincheiras de resistência, como se ao gênero algoz, concedesse mais uma dose de confiança – se antes petrificado, me diluo em seus gestos. 
Por isso, o meu findar é feito de memória, lindas lembranças e um revelar das mulheres presentes em minha vida: da amada companheira de todos os dias, a mãe que desafiou a miséria e todas as dificuldades possíveis oportunizando-me este mundo. Com elas e por elas na origem, memorar as mulheres camponesas e agricultoras familiar que fazem brotar da terra ardida dias de esperanças. As colegas de trabalho pela ousadia de afrontar o patriarcalismo velado nas relações cotidianas, a coordenadora de mulheres na federação pela coragem de assumir tamanho desafio. Enfim, a todas as companheiras de luta que encontro pelos caminhos da vida e que pelo diálogo permanente tenho aprendido tanto, fica o muito obrigado e o renovar de compromissos.
Eu sou um pouco de vocês – sou anima e animus, sou lágrimas e lenço, bandeira e mastro, estrada e pegadas, sou aprendiz de Arqué e operário da Diké – sou 8M com vocês!

Prof. Neuri A. Alves – Assessor de Formação e Elaboração Fetraf-SC

Publicado em 06 de março - Site da Fetraf-SC

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

A arrogante classe média 2SM local



'' (...) justo mesmo é Paulo Guedes, o Robin Hood dos banqueiros, salvador dos lucros e algoz dos estúpidos''

É espantoso como a narcísica, mas falsa classe média local/regional, de curta memória, parca identidade, frágil compreensão quebrou o próprio espelho. O que talvez explique em partes, porque no clubinho dos odiosos, nas postagens em redes sociais, no círculo de 'anormais', defendem a fala do escravista, ministro banqueiro Paulo Guedes sobre domésticas passear na Disney. 

Em ampla maioria, escondem na arrogância ou dissolvem na ignorância que são meros trabalhadores também. Que por exemplo, só entraram ou andaram de avião a partir de 2002, e o único dinheiro que gastavam no exterior tinha endereço de curta distância (de carro ou ônibus), ali do outro lado da ponte da amizade em Foz do Iguaçu/PR, onde o então Real (R$) ‘dolarizado’ devorava o pobre guarani.

Até porque, aqui no aeroporto de Chapecó no início deste milênio, só tinha Teco Teco na pista, e estes, pertenciam ao aeroclube local. Quando muito, um avião das agroindústrias, jatinhos alugados e uma visita que outra de aviões presidenciais – voo comercial: só aos exclusivos. Sim, a pista era movimentada por 'piazada' caçando com ‘bodoque’ nas margens e cabeceiras - um perigo aos aeroplanos. - Qualquer objeto no ar estava suscetível ao estilingue.

Então chegaram os vermelhos ao governo, com a política de valorização do salário mínimo, geração de renda, poder de compra, sinal verde ao ‘deus’ Cartão de Crédito, que viria ser o tapete voador de trabalhadores pobres que assumiram o falso status de classe média emancipada. Agora eles tinham emprego, renda e podiam até estudar - uma chance de decolar da política colonial de privilégios para alguns e ignorância a maioria. 

Mas claro, esta falsa ‘classe média’ pobre de consciência, miserável de memória, que então conseguiu ir além do desenhar o nome (aposentando polegar, e mesmo que no modo informal) aprendeu escrever (mesmo que para agredir com palavras a si própria como categoria social), se nega refletir, optando por acusar, reproduzir mentiras e prontos chavões de desprezos as classes laborais - mesmo sendo parte!

Para estes, justo mesmo é Paulo Guedes, o Robin Hood dos banqueiros, salvador dos lucros e algoz dos estúpidos. Parabéns a esta classe média local/regional, com renda MÉDIA 2SM (Dois Salários Mínimos) que há tempo voando não colocam os pés no chão. A cabeça não mais repousa no travesseiro porque os boletos não cabem no holerite mensal, embora sigam com palmas ao governo que os marginaliza como classe, embora insistam mimetizar nas ilusões e atirar pedras a seus ‘iguais’ - por similitude, a si mesma.

Um brinde reflexivo a falsa prosperidade. Mais cedo ou mais tarde vocês voltam do mundo da fantasia, esta Disney criada para a fuga da realidade. Aquelas doze parcelas que custou o pacote de viagem para um tango em Buenos Aires (ao preço do dólar atual) você pagará rapidinho. Mas, o pesadelo deste governo permanecerá por mais 35 mil pés (digo 35 meses) de distância da possibilidade última de findar as cotidianas turbulências e acender alguma luz sobre as trevas que vocês ajudaram provocar.

A trabalhadora doméstica tem noção de suas lutas e direitos alcançados nos últimos anos, (inclusive de viajar para onde quiser), o que incomoda muito, de banqueiros afortunados a arrogantes assalariados. Mas, aos últimos, se permanecerem como Classe ‘Dois Salário Mínimo’ (2SM) estarão no lucro. Pois, tem tudo para terminarem como Classe SSM (Sem Salário Mínimo) – empobrecidos pela concentração do setor financeiro (Tio Patinhas), enganados pelo presidente (Pateta), corroídos pelo ministro da economia (Mickey Mouse) e meros indigentes nesta falsa Suíça, terra catarinense - Fim de viagem!!!


Neuri A. Alves
Pesquisador, assessor de formação e elaboração