sábado, 26 de junho de 2010

        André Tokarski é o novo presidente da UJS         

Cerca de 2 mil jovens participaram de quatro dias de debates, atos políticos e atividades culturais na capital baiana

Terminou em Salvador, em clima de torcida pelo Brasil, o 15° Congresso Nacional da UJS. Os cerca de 2 mil jovens, de todos os estados brasileiros, que mais tarde se reunirão para a despedida assistindo ao jogo da seleção brasileira contra a Costa do Marfim, estiveram devidamente uniformizados de verde e amarelo, na parte da manhã, para a plenária final. Foram decididas as resoluções da entidade para os próximos dois anos e houve a eleição da nova diretoria. O goiano André Tokarski, de 26 anos, foi eleito novo presidente da UJS, um dos mais jovens da história da entidade.

Tokarski admite que presidir a UJS é a maior responsabilidade de sua vida. Porém, sente-se seguro ao contar com a construção diária, de toda a militância, para o sucesso dessa gestão. “Chegamos nesse Congresso com mais de 100 mil filiados e representações em todos os estados, o que dá um pouco da dimensão do nosso alcance com a Juventude Brasileira”, declarou. Leia mais abaixo uma entrevista completa com o novo presidente da UJS.

O Congresso, que teve início na quinta-feira (17) foi marcado pela oficialização do apoio da UJS à candidatura de Dilma Roussef nas eleições presidenciais 2010. Também tiveram destaque os debates do Seminário Nacional Juventude, Participação e Políticas Públicas, realizado pelo Centro de Estudos e Memória da Juventude em parceria com a UJS. O encontro em Salvador teve também a presença de jovens estrangeiros representando juventudes socialistas de cinco outros países: Portugal, Grécia, Venezuela, Sudão e Argentina. Os estrangeiros falaram aos congressistas, durante a plenária final, saudando a UJS.

Resoluções
No campo das políticas para a Juventude, os congressistas defenderam que a Secretaria Nacional de Juventude, criada a partir da mobilização das entidades, ganhe status de Ministério da Juventude. Preocupada na questão do emprego e oportunidade para os jovens, a UJS aprovou a resolução de pressionar o pode público pelo cumprimento da lei de estágio.

Para educação, a UJS propôs mudanças no ensino médio para valorizarem o caráter politécnico e humanista, através de uma estrutura esportiva e cultural. A entidade também cobrou a implementação efetiva da lei 10639, que determina o ensino da história da África e manifestações afro-brasileiras nas escolas. Em relação aos movimentos sociais, os jovens pediram a aprovação do projeto de lei que criminaliza a homofobia e decidiram por uma participação ainda mais forte da UJS no movimento LGBT.

No campo internacional, a UJS manifestou sua solidariedade ao Haiti e defendeu uma ação prolongada do Brasil no país nos campos educacionais e de combate à pobreza. Foi também manifestado repúdio ao recente ataque de Israel a um comboio humanitário que se dirigia à Faixa de Gaza. Outras resoluções aprovadas foram o desenvolvimento de uma campanha pela internet banda larga no Brasil e a participação efetiva da juventude na realização das propostas do Plano Decenal da Terceira Conferência de Esporte.
Emoção e Despedidas
Durante a plenária final, também foi realizada uma homenagem aos militantes que, após anos de participação, deixam a UJS nesse 15 Congresso, entre eles, o presidente Marcelo Gavião, que encerrou sua gestão. Ele fez questão de realizar um pequeno pronunciamento de agradecimento aos companheiros: “Esse momento sempre emociona muito quem sai e também a quem fica. Não é exagero dizer, mas vejo aqui entre os companheiros que encerram sua participação, pessoas que dedicaram, pelo menos metade de suas vidas à construção da UJS”, disse.


Entrevista com o novo presidente da UJS André Tokarski:

Como você se sente, pessoalmente tendo a responsabilidade de dirigir a União da Juventude Socialista?
Essa é a maior responsabilidade da minha vida, mas sei que, nesse momento, a minha eleição não é o mais importante para a UJS. Não é a direção que define essa entidade, e sim o conjunto da militância na luta do dia a dia. Sei que precisaremos ter muita consciência em nossas ações porque, atualmente, cria-se sempre uma grande expectativa sobre o posicionamento da UJS nas questões nacionais e muita repercussão com as suas mobilizações. Temos uma interlocução em que levamos nossas reivindicações ao presidente da república, ministros, governadores. Isso gera muita responsabilidade e eu espero contribuir da melhor forma para que a UJS cresça ainda mais.
Qual a sua trajetória nos movimentos de juventude?

Comecei no movimento secundarista em 1997, com 13 anos, quando fui a meu primeiro encontro estudantil, o congresso da UBES. Depois disso, me engajei no grêmio da escola, me filiei à UJS e me juntei à União Municipal de Estudantes Secundaristas (UMES) de Goiânia, da qual acabei sendo presidente. Ingressei na Universidade Federal de Goiânia (UFG) e lá me formei como bacharel em Direito. Durante a universidade, participei do Centro Acadêmico do Curso e fui presidente da União Estadual de Estudantes de Goiás (UEE-MG). Fui também diretor jurídico da União Nacional dos Estudantes (UNE).


Qual é, na sua opinião, o saldo do 15° Congresso da UJS?

Foi um Congresso muito importante. O tema principal “Para ser muito mais Brasil” remete a um momento de muito otimismo do país. Na nossa história recente, nunca tivemos tantas oportunidades de o Brasil dar certo em diversas áreas, incluindo-se aí a realização da Copa do Mundo e das Olimpíadas. Nós temos hoje 50 milhões de jovens no país e as resoluções desse Congresso estão muito relacionadas à mobilização desse grupo. É impossível, atualmente, que qualquer processo importante do país não passe pela juventude.


Quais deliberações foram importantes nesse sentido?

Destaco as resoluções que tivemos em defesa dos 50% do fundo social do pré-sal para a educação e em defesa do marco regulatório para as políticas públicas de juventude. Desde a década de 80, o jovem era visto como um problema social, depois houve um avanço para tratá-lo como um sujeito de direitos. Agora, nós defendemos que o jovem seja entendido como um verdadeiro protagonista nas questões nacionais. Infelizmente, ainda há muito preconceito com os jovens que são vistos como menos capazes. Precisamos mudar esse quadro.


Como será a participação da UJS na campanha da Dilma para presidência da República?

O ato de apoio à candidatura da Dilma demonstrou o prestígio da nossa instituição e a força que ela pode ter em um momento tão crucial como esse das eleições. Todos os nossos anseios, discussões, projetos dependem totalmente do resultado das eleições de 2010. Eu acredito que esse ano teremos um dos maiores desafios da história da UJS, comparado somente a momentos como o Fora Collor em 1992 e a eleição de Lula. Isso porque corremos o risco de pôr a perder uma série de conquistas dos movimentos sociais e dos jovens. O outro candidato é algo como um exterminador do futuro da juventude. Por isso, vamos com tudo para a campanha da Dilma, com a força e as propostas da UJS para a juventude, educação e tantos outros temas debatidos neste 15° Congresso.


Houve uma polêmica, durante a votação das propostas na plenária final, sobre a questão da legalização das drogas. Qual o saldo desse debate?

Primeiro, é importante dizer que a mesa de debate sobre as drogas foi uma das mais concorridas e qualificadas deste Congresso da UJS. Nosso objetivo é ampliar a discussão em torno do tema não apenas da legalização da maconha, mas sobre as drogas como um todo. Este problema, claro, diz respeito a toda a sociedade, mas, principalmente, aos jovens. Haviam três resoluções em votações. Uma dizia que a UJS deveria lutar pela descriminalização da Maconha, outra falava sobre a Legalização. A proposta aprovada, no entanto, foi a de realização no primeiro semestre do ano que vem de um seminário para ampliar o debate sobre o tema. A resolução da UJS avança no sentido da nossa entidade cobrar do Estado e da sociedade um debate sem hipocrisia. Vamos realizar este seminário e de lá sairemos com um proposta mais elaborada sobre este assunto. Assim é a UJS, existe a diversidade, debate, constrói e unifica.


Como a UJS se encaixa nesse novo perfil de juventudes do século XXI

Toda a diversidade que pôde ser vista neste Congresso consolida, um processo de trabalho que a UJS construiu com suas frentes de trabalho, como o Hip Hop e LGBT. Isso reflete também a diversidade que é a juventude brasileira, que se organiza de maneiras diferentes, mas sempre com a consciência politica. Chegamos nesse Congresso com mais de 100 mil filiados e representações em todos os estados, o que dá um pouco da dimensão do nosso alcance com a Juventude Brasileira. Além disso, ampliamos a possibilidade de contato em novos canais como a internet. É muito importante citar a criação da Rede UJS, uma rede social online que já conta com 50 mil participantes e através da qual podemos expandir a nossa luta. É importante lembrar também que esse Congresso foi transmitido ao vivo, pela internet, com um alcance maior para os companheiros que não puderam estar presentes e para todos outros jovens que venham a conhecer as ideias e propostas da UJS.

Rafael Minoro e Artênius Daniel www.ujs.org.br
Fome de coerência, o gesto de Manoel da Conceição


“Os valores do PT não podem ser negociados. Devem ser reafirmados como princípios da reconstrução partidária e ideal dos movimentos sociais” (Manoel da Conceição).

por Wagner Cabral da Costa*

Muito tem se falado sobre a greve de fome, iniciada em 11 de junho, do fundador do PT, Manoel da Conceição, do deputado Domingos Dutra e da ex-deputada Terezinha Fernandes, contra a intervenção do Diretório Nacional que revogou a decisão estadual de apoiar Flávio Dino (PCdoB) para governador do Maranhão, aprovando, em substituição, o nome de Roseana Sarney (PMDB). Parcela expressiva da opinião pública e da imprensa tomou contato (quase) pela primeira vez com a pessoa de Manoel da Conceição. Afinal, quem seria esse “desconhecido”, esse Mané, que ousou desafiar, em gesto radical, a direção do partido no poder e a Presidência, em mais uma capitulação cínica diante da mais velha oligarquia da República?

Filho de lavradores do vale do rio Itapecuru, Manoel vivenciou experiências que lhe propiciaram uma sólida convicção ética, humanista e socialista, de dedicação à causa dos trabalhadores. A começar, ainda na juventude, pela expulsão de sua família por proprietários rurais, violência presenciada ainda em inúmeros outros massacres; depois, a migração em busca de “terra liberta”; a crença evangélica e o início da militância; o envolvimento com o Movimento de Educação de Base (MEB), ligado à Igreja progressista; o engajamento na Ação Popular (AP) e a luta pelas Reformas de Base; até o golpe de 1964, quando sofreu as primeiras prisões.

Durante a ditadura militar, Mané se dedicou à organização e educação de trabalhadores rurais na região do rio Pindaré em sua luta contra o latifúndio e pela conquista da terra. Foi alvo de violenta repressão da polícia militar do governo José Sarney (1966-70), sendo baleado e preso em julho de 1968, ocasião em que teve parte da perna direita amputada por falta de atendimento médico. Na seqüência, foi preso pela polícia política (1972) e dado como “desaparecido”, quando foi submetido a sessões de interrogatório e tortura, sendo solto graças à intervenção da AP e da Anistia Internacional. Liberdade breve, pois, mais uma vez, os militares o prenderam, desta vez em São Paulo, com mais torturas e sevícias (1975). Novamente a solidariedade – da Anistia e das Igrejas católica e protestante – conseguiu resgatá-lo das mãos assassinas da ditadura, com o que Manoel partiu para a Suíça (1976), onde permaneceu até a decretação da Lei da Anistia (1979).

No exílio, lançou o livro-denúncia Essa terra é nossa, contando sua história de luta pela reforma agrária e de resistência à ditadura, uma leitura necessária e fundamental para compreender os “anos de chumbo”. Livro que acaba de ser reeditado pela UFMG (com o título: Chão de minha utopia), através do Projeto República, com o apoio do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). A ironia não podia ser mais evidente: o mesmo governo petista que, por um lado, promove o resgate de sua memória e história; por outro, lhe recusa o direito de, aos 75 anos, continuar sendo um militante ativo das lutas sociais e políticas – defendendo a democracia interna do partido e a democratização do Maranhão contra a oligarquia patrimonial e golpista. Que resposta obteve Manoel após lançar duas cartas abertas ao companheiro e presidente Lula?

Esse silêncio, no entanto, inexistia em fevereiro de 1980. Pois, na fundação do Partido dos Trabalhadores se pretendeu vinculá-lo organicamente às diversas tradições de luta do povo brasileiro, sendo convidados seis signatários que representavam simbolicamente essas vertentes da esquerda: 1) Mário Pedrosa, escritor, crítico e líder socialista; 2) Manoel da Conceição, líder camponês; 3) Sérgio Buarque de Holanda, historiador; 4) Lélia Abramo, do Sindicato dos Artistas de SP; 5) Moacir Gadoti, que assinou em nome do educador Paulo Freire; e 6) Apolônio de Carvalho, combatente na Guerra Civil Espanhola e na Resistência Francesa, um dos líderes dos movimentos da resistência popular (Ata da reunião no Colégio Sion – site da Fundação Perseu Abramo).

Dos personagens-símbolo da identidade e dos valores do PT, o único que permanece vivo é Manoel da Conceição Santos, marido amoroso, pai e avô dedicado, brasileiro nascido em 1935 no distrito de Pirapemas, em Coroatá, Maranhão. Era esse “desconhecido”, esse Mané, que se encontrava em greve de fome no plenário da Câmara dos Deputados. Por cima de quantos cadáveres (reais e simbólicos) o PT terá que passar em seu processo de transformação em Partido da Ordem?

Ps.: Poucas horas após o fechamento deste artigo, Manoel da Conceição e Domingos Dutra foram internados inconscientes em Brasília, com risco de vida. A situação forçou o Diretório Nacional do PT a fazer um acordo pelo qual os petistas maranhenses ficaram liberados de apoiar a oligarquia Sarney e ter campanha independente em favor de Flávio Dino. Este acordo encerrou a greve de fome, após uma semana, em 18 de junho de 2010, continuando ambos sob cuidados médicos.

* Wagner Cabral da Costa é Historiador e professor da UFMA. Autor de “Sob o signo da morte: o poder oligárquico de Vitorino a Sarney” (2006); co-organizador de “A terceira margem do rio: ensaios sobre a realidade do Maranhão no novo milênio” (2009). Este artigo foi publicado no jornal O Estado de São Paulo, suplemento Aliás, domingo, 20 de junho de 2010.

Fonte:  Estado de São Paulo

quinta-feira, 24 de junho de 2010

                Saramago: um crítico da democracia formal                  


Morre José Saramago (1922-2010), um dos maiores romancistas da língua portuguesa (prêmio Nobel de Literatura de 1998). Além de escritor, Saramago foi conhecido também como um crítico da humanidade contemporânea (por andar sem racionalidade) e do sistema de governo democrático vigente no mundo. Nas palavras do escritor: "Todos estamos de acordo que vivemos em um sistema democrático; portanto, somos cidadãos, somos eleitores, há eleições, votamos, forma-se um parlamento e, a partir desse parlamento, forma-se uma maioria parlamentar. Temos os juízes, tribunais, temos todo o esquema montado. Este esquema é formal. Mas até que ponto se permite que esse sistema seja substancial?".
 
Saramago leva-nos a refletir sobre o papel da democracia contemporânea também debatida em duas diferentes correntes da Ciência Política: a institucionalista e a participativa. A corrente institucionalista é conhecida também como teoria democrática elitista, competitiva, procedimental ou pluralista, teoria realista ou ainda teoria democrática descritiva, ou seja, uma democracia formal.
 
Para os teóricos que defendem esta teoria, somente cabe aos cidadãos, periodicamente, referendar ou mudar as elites que fazem parte dos governos por intermédio do processo eleitoral. A vertente institucionalista (teoria política das elites) foi inaugurada por Max Weber e Schumpeter, a qual define a democracia como um arranjo institucional para chegar a decisões políticas e se constituiu, antes de tudo, numa competição entre elites. No institucionalismo, a política é estruturada pelas instituições que influenciam os indivíduos e modificam o comportamento.
 
Por outro lado, temos a corrente teórica que defende a teoria participativa. Carole Pateman e C. B. Macpherson são os principais representantes. Os participacionistas buscam multiplicar as práticas democráticas, institucionalizando-as dentro de uma maior diversidade de relações sociais, dentro de novos âmbitos e contextos: instituições educativas e culturais, serviços de saúde, agências de bem-estar e serviços sociais, centros de pesquisa científica, meios de comunicação, entidades desportivas, organizações religiosas, instituições de caridade, em síntese, na ampla gama de associações voluntárias existentes nas sociedades atuais.
 
No entendimento de Pateman, para que exista uma forma de governo democrático, é imprescindível a existência de uma sociedade participativa, isto é, uma sociedade onde todos os sistemas políticos tenham sido democratizados e a socialização possa ocorrer em todas as áreas. Para a autora, a área mais importante de participação é o seu próprio lugar de trabalho, ou seja, a indústria, pois é exatamente ali que a maioria dos indivíduos despende grande parte de suas vidas e pode propiciar uma educação na administração dos assuntos coletivos praticamente sem paralelo em outros lugares.
 
Saramago tinha bem presente estas duas correntes teóricas da democracia. Optou claramente pela segunda, a democracia participativa (substancial). Fez uma crítica ao sistema democrático formal na medida em que os cidadãos são meros expectadores, pois quem toma as decisões são as elites políticas e econômicas. Nas palavras de Saramago: "Os governos que elegemos, no fundo, são correias de transmissão das decisões e das necessidades do poder econômico (representado pelo FMI, OMC e pelo Banco Mundial), e os governos não só funcionam como correias de transmissão, mas também como os agentes que preparam as leis, como as que levam ao emprego precário".
 
Por fim, Saramago conclui: "ou a democracia transcende o poder (sai da bolha), tendo uma ação fora dela, ou vamos continuar a viver na ilusão do mundo democrático". Com a morte de Saramago o mundo certamente fica um pouco mais pobre de saber e de crítica...
 
Dejalma Cremonese é professor do Instituto de Sociologia e Política da UFPel–RS. 

Fonte: http://www.correiocidadania.com.br 
 Almas Secas: A Perpetuação do Genocídio (2)

Oh! Deus, perdoe este pobre coitado
Que de joelhos rezou um bocado
Pedindo pra chuva cair sem parar
("Súplica cearense", Gordurinha/Nelinho/Luiz Gonzaga)

Sabidamente, a desnutrição, a subalimentação e a fome são elementos de voraz impacto no corpo, seja no âmbito físico, seja nos interstícios psicológicos. A miséria é o monstruoso produto principal da concentração excludente de riquezas. Moradores de zonas de habitação precária, por exemplo, em momentos de destruição causada por desastres ambientais, são tratados como indigentes ou párias sociais. Em áreas de violência endêmica como nas favelas que margeiam os grandes centros econômicos, em nome do combate ao narcotráfico, sucedem-se cenas de assassinato de pobres pelo poder de coerção policial com a benção velada do Estado e aplausos disfarçados de segmentos da sociedade mais abastados (uma forma fascista de minimizar a pobreza: matando os pobres). 

O cataclismo da fome ainda é muito mais latente em zonas esquecidas pelo Poder Público e somente lembrado em período eleitoral, acentuadamente no Norte e Nordeste do Brasil. Aplicar indiscriminadamente políticas de renda mínima (as populares bolsas assistencialistas), sem construir um aporte de recursos que possa criar um circuito auto-sustentável de riquezas materiais e humanas, é perpetuar a endemia famélica. A fome urge e se faz necessária sua eliminação como matriz fundamental de ações do Estado. Privatizar as ações sociais, deixando-as em mãos de ONGs ou empresas similares (geralmente movidas por duvidosos interesses "humanitários"), é covardemente fugir do princípio básico do Estado, que é garantir a vida dos seus cidadãos. Pensar o desenvolvimento local é necessariamente criar um conjunto de agregados que privilegie a auto-sustentação dos ambientes de endemia famélica. Políticas de promoção ao emprego e a ampliação de cooperativas de trabalhadores sob a forma de auto-gestão poderão ser usadas como um contraponto à fábrica de espoliação e acumulação capitalista. 

Calando a veracidade dos intelectuais capitalistas, algumas experiências de cooperativas auto-gestoras mostram a viabilidade real deste sistema. 

A política de promoção do ser humano deverá enfaticamente ser sempre a meta de qualquer governo em detrimento da mediocridade atávica gerada pelos favores de campanhas políticas para o grande capital. É muito simples beijar a mão do grande empresário (às vezes, literalmente!), sorrir escancaradamente em luxuosos coquetéis para angariar "fundos de campanha" e preparar planos de governo em que a prioridade é sempre a manutenção da ordem do capital. Apesar da exaustão dos discursos, a fome nunca foi de fato um problema político a ser enfrentado, mas simplesmente é sempre deixada propositadamente de lado. Neste ínterim, Josué de Castro redige: "Mais grave ainda que a fome aguda e total, devido às suas repercussões sociais e econômicas, é o fenômeno da fome crônica ou parcial, que corrói silenciosamente inúmeras populações do mundo". A brutal desigualdade dos recursos materiais somente não é pior do que a estupidez dos que acreditam que ela é fruto tão natural quanto a fusão permanente de átomos dentro do interior do Sol. 

Uma sociedade que priva pela competição selvagem somente parirá seu subproduto maior: a cegueira da barbárie. Podemos nos amparar por várias justificativas, porém é inegável o apego à desagregação e o poder de destruição que as sociedades operam no inconsciente social. Muito mais fácil destinar bilhões de dólares à supostas usinas atômicas em nome de "energia limpa" ao invés de investir em estruturas que busquem operar para a dinâmica de trabalho e desenvolvimento local (o caso da construção de usinas nucleares nas terras fluminenses de Angra dos Reis é emblemático). Os arautos do desenvolvimentismo às cegas dirão que a energia é fundamental para a economia, que por sua vez propicia a criação de riquezas. 

A pergunta é: quem se beneficia do emprego massivo de recursos públicos destinados a operar dentro das engrenagens da iniciativa privada (seja via direta de investimentos, ou indireta da renúncia fiscal/tributária) em nome do santo rótulo do "progresso material"? Se a abundância material é a marca que se projeta do progresso capitalista, qual o motivo da persistência da miséria e da fome? Notadamente, o progresso material na ordem capitalista é profundamente excludente. 

Almas Secas: A Perpetuação do Genocídio (1)
 
Wellington Fontes Menezes é mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), bacharel e licenciado em Física pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Rede Pública do estado de São Paulo.
Contato: wfmenezes@uol.com.brEste endereço de e-mail está protegido contra spam bots, pelo que o Javascript terá de estar activado para poder visualizar o endereço de email
Blog do autor: http://www.wfmenezes.blogspot.com/

Fonte: http://www.correiocidadania.com.br


sexta-feira, 18 de junho de 2010

Almas Secas: A Perpetuação do Genocídio (1)

Estou no cansaço da vida
Estou no descanso da fé

Estou em guerra com a fome
("Terra, Vida e Esperança", Jurandir da Feira/Luiz Gonzaga)

A fome é um tema recorrente. Seja pelo desgraçado som das barrigas roncando dos famélicos, seja pelo espetáculo de sordidez hipócrita como o tema é debatido (e sempre amenizado ou esquecido). Segundo uma estimativa atual da Organização das Nações Unidas (ONU), mais de 920 milhões de pessoas sofrem de fome crônica no mundo. Sem maiores adjetivações, a fome é muito mais que uma particularidade de uma dada região endêmica, mas sobretudo uma questão profundamente inserida no modo de produção e partilha de riquezas materiais, ideológicas e culturais de uma sociedade. 180610_genocidio_wellington.jpg
 
Para quem vive nos suntuosos escritórios da Avenida Paulista, símbolo lustroso da "locomotiva" paulista, acomodando o farto glúteo em densas poltronas de couro "legítimo", entre um olho nos índices da BOVESPA e o outro olho em algum catálogo em busca da próxima garota de programa para o descontraído "happy hour", a fome seria uma coisa de pobre, preto ou nordestino (geralmente um misto destas três derivações!). Claro, a tal "fome" não passa nem de longe na cabeça de algum agiota financeiro ou um empresário "bem sucedido" no capitalismo à brasileira.
 
Não seria a ética ascética do trabalho que agracia seu crédulo com beatitude do lucro e leva para debaixo do tapete qualquer excrescência a este processo? Na limitada dimensão do mundo e no alto de imponentes edifícios, a ótica do especulador das finanças do engenho capitalista, a fome e a degradação humana são problemas do "gueto" (leia-se, "aquelas criaturas que ficam pedindo esmola nos faróis da cidade" e ponto final!). Para as classes médias e remediadas, a questão da fome oscila entre a caridade recalcada e a "punição merecida" aos lenientes ao trabalho (logo, riqueza e pobreza é uma questão meramente de "sorte para os esforçados"!). Para os burocratas formadores de políticas públicas, os chamados "policymakes", a fome precisa se enquadrar dentro dos padrões orçamentários governamentais. Já para os políticos de amplo espectro partidário, a fome é sempre um mote que angaria um bocado jocoso de votos.
 
Josué de Castro (1908-1973) se debruçou com maior afinco e destaque no estudo da fome no Brasil. Pernambucano de nascimento, médico e sociólogo, conheceu bem de perto o drama existencial do conceito de fome. A definição para as origens da fome merece o destaque das palavras de Castro: "A fome é, conforme tantas vezes tenho afirmado, a expressão biológica de males sociológicos. Está intimamente ligada com as distorções econômicas, a que dei, antes de ninguém, a designação de ‘subdesenvolvimento’".
 
É muito mais simples culpar os miseráveis pela sua própria miséria humana do que querer discutir os reais fundamentos da desequilibrada distribuição de renda entre os indivíduos vivendo numa mesma sociedade. Há ainda aqueles supostos "especialistas" que tratam do tema como se fosse praticamente "profano" a tal ponto que qualquer tentativa de debatê-lo seria em vão (sempre suscitando uma expressão semelhante ao "muito complexo" compondo a discussão da fome). Para os partidários do "complexismo da fome", deveriam perguntar aos que passam fome qual a sensação de não terem absolutamente nada para comer durante horas ou dias (certamente a resposta seria inequívoca!).
 
Naturalmente, dentro dos teares do que o economista austríaco, Karl Polanyi, batizou de "moinho satânico", está o sistema de regulação da natureza capitalista do mercado, que possui na sua gênese a ordem imperativa da desagregação social. O que causa certa perplexidade quando alguns pesquisadores buscam justificar o "ambiente caótico" do capitalismo na aproximação de teorias naturais de caos e complexidade (alguns destes "bombeiros intelectuais" têm a insensatez de adornar tais estudos com um rótulo fantástico de "Econofísica", ou seja, o que seria uma prosaica "Física da Economia"!).
 
Logo, o que sobra para amenizar os conflitos de classes e não proporcionar maiores empecilhos ao capital (por exemplo, revoltas e revoluções por parte dos excluídos do processo deste sistema)? Uma forma muito bem oportuna é patrocinar a querela cristã da piedade ou caridade. Destaca-se no "Novo Testamento" a importância da doação como oferenda divina e não como necessidade de justiça social: "O poder divino deu-nos tudo o que contribui para a vida e a piedade, fazendo-nos conhecer aquele que nos chamou por sua glória e sua virtude" (Segunda Epístola de Pedro, 1:3).
 
A piedade sob a forma de caridade é uma vil promessa de cura que apenas sustenta a linha entre a vida e a morte. Atos de caridade podem ser muito salutares como dogmas religiosos (salvação da alma avarenta em busca de bonança na Terra Prometida), porém, são um nefasto caminho para justificar a suposta amenização da fome. Tratar a questão da fome como um problema isolado e passível tão somente da assistência providencial da caridade na esfera pública é proporcionar a perpetuação latente da degradação humana. A miséria não pode ser estancada com cômodas medidas circenses de piedade contemplativa cujos resultados são paliativos ou inócuos.
 
Excetuando períodos de guerra ou profundas calamidades naturais, é permanente o desequilíbrio social em praticamente todos os países, sejam os mais desenvolvidos, em desenvolvimento ou subdesenvolvidos. O que difere tais blocos de países em diferentes condições de progresso material é o apoio logístico que o Estado concede em cada um destes países, alguns mais propensos à amenização da pobreza, enquanto outros relegam seus habitantes à própria sorte. A fome é o símbolo máximo do lento genocídio do descarte humano.
 
Wellington Fontes Menezes é mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), bacharel e licenciado em Física pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Rede Pública do estado de São Paulo.


Fonte: http://www.correiocidadania.com.br 

terça-feira, 15 de junho de 2010

 Biologia sintética: novas soluções ou problemas?

Fatima Oliveira *

Transformamos uma célula em outra. É a primeira forma de vida na Terra cujo pai é um computador”. Falou John Craig Venter sobre o feito do Instituto John Craig Venter, que substituiu o DNA natural da bactéria Mycoplasma mycoides por um artificial, criado aleatoriamente por computador, e que assumiu o comando da célula!

 

A façanha éa primeira espécie criada por cientistas e consolida a biologia sintética: biotecnologia que, usando saberes da transgenia, da genômica e outros conhecimentos da biologia, da química, da física, da matemática, da engenharia, da biotecnologia e da informática, cria organismos sob medida: com um novo código genético a partir de DNA artificial  (Science,  20.05.2010).

Quem é John Craig Venter? Geneticista norte-americano, 63 anos, fundador da Celera Genomics (1998, Rockville, Maryland, EUA), empresa privada que mapeou o genoma humano, competindo com o Programa Genoma Humano (PGH); é ex-chefe de uma das equipes do PGH, do qual se desligou alegando divergências “técnicas”, porém o centro das polêmicas era o patenteamento do genoma humano, que ele defendia.

Em 1992 esteve na Conferência Sul-Norte do Genoma Humano (Caxambu-MG), ocasião em já solicitara patentes de 3.000 genes, via Institutos Nacionais de Saúde. Declarou ao Jornal do Brasil que a pesquisa do genoma humano não era uma aventura para países pobres. Ao sair do PGH, fundou uma instituição beneficente de pesquisa, a TIGR que sequenciou o genoma do Haemophilus influenza (1995), o primeiro ser vivo sequenciado. Desde então recebeu vultosos financiamentos privados para competir com a equipe do PGH. E  levou!

Ao criar a Celera Genomics, disse que com US$ 200 milhões, e em três anos, realizaria o sequenciamento total do genoma humano. Àquela época o PGH, consumira quase US$ 1 bilhão, entre fundos governamentais e doações, e prometia a sequência completa apenas para 2005. Venter acusou a equipe do PGH de desperdiçar dinheiro público, utilizando uma técnica lenta, quando já estava disponível um processo mais rápido, criado por ele... Em 2006, saiu da Celera Genomics e fundou o Instituto John Craig Venter, agora é um dos deuses da biologia sintética.

Conforme Silvia Ribeiro, pesquisadora do Grupo ETC, “A biologia sintética é uma nova rubrica científica e industrial cujo objetivo é criar formas de vida artificiais a fim cumprir tarefas ao gosto do desenhista. Não satisfeitos com os problemas criados com os transgênicos – seres vivos nos quais se inserem genes de outras espécies –, trata-se agora de construir organismos vivos a partir do zero, desenhados à la carte, a partir da fabricação de módulos de DNA artificial, programados para serem montados uns com os outros”. (Em “Biologia sintética: a vida descartável”).

Para Charbel Niño El-Hani e Vitor Passos Rios, do Instituto de Biologia da Universidade Federal da Bahia: “A biologia sintética pode ser entendida como a criação de organismos feitos sob medida, sejam eles geneticamente modificados ou construídos a partir do zero (...) O principal objetivo da biologia sintética, bem como sua maior dificuldade, é domesticar o mecanismo de replicação e transcrição de DNA de modo a controlar seu funcionamento, do mesmo modo que um engenheiro elétrico constrói e controla um circuito. É claro que esta empreitada traz consigo toda uma série de questões éticas e sociopolíticas, que não podem ser perdidas de vista. (Em “Vida sintética: uma nova revolução?”).

            Na mesa novas soluções ou problemas?
* Médica e escritora. É do Conselho Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução e do Conselho da Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe. Indicada ao Prêmio Nobel da paz 2005.

Fonte: http://www.vermelho.org.br/coluna

As quatro grandes dívidas

Eduardo Bomfim *

 O Brasil vive uma época de crescimento acelerado em plena crise econômica internacional, quando a Europa patina e vários países da sua comunidade vivem um inferno financeiro de larga magnitude.

De tal maneira que já se chega a comentar o esfacelamento da União Europeia. O que é, acho eu, uma possibilidade remotíssima, senão praticamente nula.

De concreto mesmo é que a onda da bancarrota financeira varreu todos os continentes em uma escala só comparável à grande depressão de 1929. Em comum é que a origem tanto de uma quanto da outra se deu nos Estados Unidos da América.

Quando a atual crise atingiu o País a grande mídia hegemônica nacional, sempre catastrofista e irredutivelmente oposicionista em relação ao governo Lula, esmerou-se em anunciar a derrocada total do desenvolvimento nacional.

Na verdade é o de sempre, o inconformismo de cunho ideológico e político, pelo fato de que o Brasil cresce e, mais que crescer, desenvolve-se com acelerado processo de inclusão social de dezenas de milhões de famílias que saem da linha de pobreza relativa ou absoluta, forjando inclusive uma nova cara da classe média, mais mestiça e mais autenticamente nacional.

Em decorrência desse crescimento e dos projetos estratégicos do Estado brasileiro, coisa abominada pelos neoliberais de Fernando Henrique Cardoso, do papel decisivo do Estado nos destinos do País, o Nordeste também cresceu e avançou em grande ritmo que superou em vários aspectos as regiões mais desenvolvidas, como o Sul e o Sudeste.

No entanto, o bravo Estado de Alagoas é um dos que menos cresceu ou que não acompanhou em mesma escala os outros Estados nordestinos irmãos. E não se pode dizer que não recebeu fartos investimentos do governo federal.

O presidente Lula acaba de liberar nesta terça-feira 1,5 bilhão de reais para obras de duplicação da BR 101 em território alagoano. O que vai implicar em extraordinária injeção de capital, direto e indireto.

Mas apesar de tanto investimento ao longo dos últimos quatro anos nosso Estado encontra-se atolado em quatro grandes graves dívidas. São elas as da educação, da saúde, da insegurança e violência generalizada e das altas e persistentes taxas de desemprego.

As próximas eleições em Alagoas não podem deixar de diagnosticar e apresentar soluções para essas chagas abertas no seio da nossa população. Que são em última instância problemas estruturais fundamentais para a superação de uma realidade que todos nós alagoanos vivenciamos.

* Advogado, Secretário de Cultura de Maceió - AL
Fonte: http://www.vermelho.org.br/coluna.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Em visita ao PCdoB, PC chinês debate o Brasil e a 

América Latina

Com uma visita à sede nacional do PCdoB, em São Paulo, seis dirigentes do Partido Comunista Chinês (PCCh) iniciaram, nesta segunda-feira (14), uma intensa agenda de atividades pelo Brasil. Chefiada por Sun Gan, secretário-executivo do Conselho de Trabalho dos Órgãos subordinados diretamente ao Comitê Central do PC, a delegação chinesa saudou o PCdoB como “partido amigo” e manifestou interesse em “reforçar os laços e os investimentos” entre as duas legendas.

Sun Gan afirmou que os comunistas brasileiros têm uma “trajetória histórica muito respeitável” e demonstraram forças ao resistir a mais de 60 anos na clandestinidade. “O Partido Comunista Chinês valoriza o intercâmbio e a amizade tradicional com partidos como o PCdoB.

Segundo o dirigente chinês, seu partido baseia sua atuação em cinco pilares: ideologia, organização, métodos de trabalho, política anticorrupção e construção do sistema partidário. Também compartilha de princípios resguardados pelo PCdoB, como a combinação de firmeza nos princípios revolucionários com flexibilidade no modo de perseguir os objetivos táticos e estratégicos, além do pressuposto de que não há modelo único de socialismo.

“Cada país deve levar em conta suas peculiaridades e, ao mesmo tempo, estar sintonizada com os avanços do tempo histórico, de modo a não cair em dogmas”, declarou Sun Gan. Sobre a experiência chinesa, destacou o excepcional desempenho do país em 2009. “Apesar da crise econômica, o governo tomou medidas corretas, e a o nosso PIB cresceu 8,9%. Terminamos o ano com US$ 2,4 trilhões de reservas”, agregou o dirigente, agregando que o crescimento econômico da China volta-se, em primeiro lugar, à melhoria da vida do povo.

Informes sobre o PCdoB, o Brasil e a América Latina

Segundo o presidente nacional do PCdoB, Renato Rabelo, um dos principais temas da reunião entre os PCs foi a realidade política brasileira. “O PCCh se mostrou especialmente interessado em temas como o formato de uma disputa eleitoral no Brasil, o processo de escolha dos candidatos, as chances de vitória da pré-candidata Dilma Rousseff e a garantias de que os êxitos do governo Lula terão continuidade.”

Segundo Renato, uma eventual derrota de Dilma “exprimiria um grande retrocesso” para o processo de integração latino-americana. “Sua eleição, ao contrário, traria mais perspectivas de ascenso democrático região”. O dirigente do PCdoB enumerou ao menos quatro trunfos de Dilma na corrida à sucessão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva:

1) a capacidade política de Dilma, que representa como poucos o sucesso do governo Lula;
2) o prestígio de Lula, cuja popularidade mantém níveis recordes após sete anos e meio como presidente;
3) a ampla aliança em torno da pré-candidatura, que inclui PT, PMDB, PCdoB, PSB, PDT, entre outros partidos;
4) o respaldo popular de Dilma, que conta com o apoio das principais lideranças sociais, estudantis e sindicais do Brasil.

 
Ricardo Abreu, o Alemão, secretário de Relações Internacionais do PCdoB, destacou outros dois temas que sobressaíram nos debates: as possibilidades de maior cooperação dos Bric (grupo de países emergentes formado por Brasil, Rússia, Índia e China) e a conjuntura político-econômica na América do Sul e na América Latina. “Foi uma reunião, sobretudo, de atualização. O PC chinês aproveitou o convite do PCdoB para se reunir conosco e entender melhor os rumos tomados pelo Brasil no âmbito das relações internacionais.”


Ao comentar a liderança alcançada pelo Brasil nas negociações com o Irã, o PCdoB sublinhou a ousadia e a correção da política externa do governo Lula, que, segundo Renato Rabelo, “pressupõe valores como a paz, o diálogo e a consolidação de um mundo multipolar”. Os dirigentes chineses responderam que “estão de pleno acordo” — e que a China “tem os mesmos objetivos”.

Construção partidária

Antes do encontro com Renato, os membros do PCCh participaram de uma exposição sobre a história, os princípios e a organização dos comunistas brasileiros. Intitulada “A Construção Partidária no Nível Atual das Exigências”, a exposição foi ministrada por Walter Sorrentino, secretário de Organização do PCdoB.

“É uma grande honra manter essa boa relação entre duas grandes nações, dois povos e dois partidos. Temos um grande papel a jogar no mundo, e esse encontro eleva ainda mais os termos de nosso intercâmbio”, declarou Sorrentino.

A delegação chinesa segue no Brasil até quarta-feira. Na agenda, há reuniões com o líder do PMDB na Câmara Federal, deputado Henrique Eduardo Alves, e os presidentes do Senado, José Sarney (PMDB) e do PT, José Eduardo Dutra. Os dirigentes chineses também devem participar de uma apresentação do Ipea sobre o Estado brasileiro, suas instituições e o serviço público, além de visita a uma fazenda de alta produtividade em Goiás.

De São Paulo,
André Cintra

Fonte: http://www.vermelho.org.br

quarta-feira, 9 de junho de 2010

 Criminalização da pobreza

A polícia do Rio de Janeiro, em comparação com as suas congêneres do Brasil e do mundo, é a que mais mata e a que mais morre. Ela é ao mesmo tempo algoz e vítima de um processo vicioso que só faz agravar a espiral da violência, resultado inevitável de uma política de segurança da qual o governo se vangloria, apesar da sua comprovada ineficácia.
 
Toda vez que se publicam relatórios e dados sobre a questão da violência e os direitos humanos, o cidadão fluminense se vê diante do doloroso dever de constatar a permanência de tão trágica realidade. Exemplo? Basta ver o informe da Human Rights Watch (HRW), publicado com destaque nos jornais desta quarta-feira. Os números são estarrecedores e não foram desmentidos pelas autoridades.
 
Em 2008, os policiais do Rio cometeram 1.137 homicídios durante o expediente ou fora dele. O tamanho do absurdo se mede pela comparação com outros estados e até países. No estado de São Paulo, foram 397 as mortes cometidas por policiais no mesmo período. Na África do Sul e nos Estados Unidos, considerado o país inteiro em ambos os casos, os números foram 468 e 371, respectivamente. A relação entre o número de mortos e número de prisões efetuadas é outro dado altamente revelador. No Rio, para cada suspeito morto por policiais, estes conseguiram efetuar 23 prisões; em São Paulo, 1/348; e nos EUA 1/37.751. Outra dimensão do mesmo descalabro são os dados que medem a relação entre mortes cometidas por policiais para cada óbito de policial. Nos EUA 9,05; em São Paulo, 18,05; e no Rio são 43,73 mortos para cada óbito policial.
 
Toda comparação, claro, padece de problemas e carece de ser relativizada. Mas, no caso, trata-se de uma questão específica, analisada com base em dados oficiais, em regiões assemelhadas. Em todas elas, a violência se concentra nas megalópoles atravessadas pelos problemas típicos do capitalismo pós-moderno. Sendo assim, descartado o castigo de Deus como hipótese, deve haver uma explicação para os números que conferem ao Rio de Janeiro uma distinção tão macabra. Para os estudiosos mais acurados do assunto, a política de segurança adotada pelo governo Cabral é a causa maior do descalabro.
 
Ancorada na lógica do confronto bruto, tal política opera na base da aceitação tácita do uso ilegal da força letal. Há muito que se denuncia, sem que se consiga estancar a sangria literal que daí decorre, os chamados "autos de resistência". São utilizados como forma de justificar os homicídios cometidos e funcionam, na prática, como uma licença para matar. Ao comparar a recente derrubada de um helicóptero policial com a queda das Torres Gêmeas, o secretário de Segurança forneceu justificativa para a espiral de violência. No espírito da vendeta, bandido e polícia se igualam no exercício descontrolado da força e na produção da insegurança coletiva.
 
A brutalidade policial cumpre também uma função política. A reprodução das relações sociais marcadas pela desigualdade e pela injustiça não se faz sem certo grau de violência segregacionista contra os mais pobres. Como escreveu, em artigo recente, Chico Alencar, deputado federal do PSOL/RJ: "uma política de segurança que mira invariavelmente os de baixo, jogando sobre eles toda culpa sobre os malfeitos de uma sociedade desigual, tem nome e sobrenome: criminalização da pobreza".
 
Léo Lince é sociólogo. 
Fonte: http://www.correiocidadania.com.br
 Espetáculo obsceno

O tempo passa, o tempo voa, a bolsa sobe e desce, a crise finge sumir e reaparece, mas a lucratividade dos banqueiros continua numa boa. Na alta ou na baixa, no sujo ou no limpo e até no mal lavado, eles ganham sempre. Mandam e desmandam nos governos, regulam os que deviam regulá-los, seguem soberanos na fortaleza inexpugnável da tirania financeira que avassala o mundo.
 
Em todo e qualquer lugar, seja no Império Americano hipotecado, na tragédia grega ou nos pólos avançados da velha Europa, os protocolos da supremacia absoluta do capital financeiro continuam a girar as roletas do cassino. Por toda a parte, com a voracidade das matilhas, eles atacam sem dó nem piedade.
 
Aqui no Brasil, então, nem se fala. A cada trimestre os balancetes dos bancos registram recordes cuja superação parecia impossível. A regra, que se repete de maneira cronometrada, foi confirmada na safra atual. O lucro líquido declarado pelos maiores bancos privados brasileiros nos três primeiros meses deste ano alcançou um padrão estratosférico. Nunca, em tempo algum, o Itaú, o Bradesco e Santander ganharam tanto dinheiro.
 
Para evitar a sensaboria dos números, vamos nos limitar ao caso do Itaú Unibanco. É, por enquanto, o maior banco privado e declarou, para o trimestre, um lucro líquido de R$ 3,23 bilhões. Um aumento brutal, de cerca de 60%, em relação ao mesmo período do ano passado. Lucratividade espantosa: é o maior valor já registrado para um trimestre ao longo de toda a história do setor.
 
Uma conta simples, dando de lambuja os domingos e feriados, define o montante do lucro líquido diário: R$ 35,9 milhões. Logo, para efeito de comparação, um trabalhador de salário mínimo levaria quase seis séculos para amealhar uma quantia semelhante. Como Brasil foi "descoberto" em 1500, para equiparar ao que o Itaú lucra num dia, o nosso trabalhador hipotético teria que ter começado sua poupança na era pré-colombiana.
 
Uma disparidade absurda. Um retrato cruel do abismo que separa as classes sociais no Brasil de hoje. Não há ou, melhor dizendo, não deveria haver qualquer possibilidade de convívio sereno entre a consciência digna da cidadania e semelhante absurdo. No entanto, no torpor gerado pela morfina-dinheiro, o absurdo é tratado como parte integrante da paisagem. Natural como a explosão de um vulcão.
 
A roleta financeira que gira sem freios é a imagem mais precisa do horror econômico que nos governa. A propriedade que tem o dinheiro - de existir como valor separado de qualquer substância - está na base desta vertigem da pecúnia sem limites. A violenta concentração de poder materializado no dinheiro, hermafrodita que se reproduz na relação consigo mesmo (D-D’), explica muita coisa. A dívida pública, um Himalaia de juros sobre juros. A prevalência do financiamento privado de campanhas eleitorais cada vez mais caras. O tal superávit primário, que sacrifica direitos sociais e sucateia serviços públicos essenciais para garantir o pagamento religioso dos juros.
 
Montaigne, no célebre ensaio "Dos Canibais", relata a presença de índios trazidos do "Novo Mundo" recém descoberto para visitar a reluzente corte francesa. Ao invés de se embasbacarem com tanto luxo e riqueza, eles se espantaram foi com a desigualdade. Para eles, a brutal disparidade entre o palácio e as ruas não era natural. O sentimento igualitário do passado imemorial há de retornar no futuro utópico. Por enquanto, quando os bancos publicarem balancetes, por favor, tirem as crianças da sala para evitar o espetáculo obsceno.
 
Léo Lince é sociólogo. 
Fonte: http://www.correiocidadania.com.br/
 
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O tempo está doido!
Escrito por Gabriel Perissé   

Tenho ouvido várias vezes, e eu mesmo tenho repetido sem pensar, uma frase cheia de perplexidade: - É, o tempo está doido!
Doido tempo porque simplesmente não quer obedecer à nossa lógica. Ficamos espantados se chove demais, se o sol vem e vai embora sem avisar, sem pedir licença.
Ficamos escandalizados se faz calor no inverno, se faz frio no verão. Queremos, talvez, abrir um processo contra o tempo quando ele, doido, não obedece às nossas previsões.
Mas doido o tempo não é. O tempo nunca foi sensato. Não se pode fazer terapia com o tempo. Nem esperar que ele se comporte como nós, seres tão sensatos que somos. O tempo e seus temporais não são surtos da natureza. Não são manifestações hormonais. São, apenas, naturais.
Que idéia doida a nossa, querer que o tempo seja um rapaz cordato, uma senhora recatada, um cidadão responsável, um funcionário pontual, honesto, sem gestos bruscos, sem palavras intempestivas, um moço ajuizado, de temperamento tranqüilo, uma moça com a cabeça no lugar. O tempo não é gente, minha gente!
Dizem, e digo eu, que o tempo enlouqueceu, que o tempo está maluco. Devemos então interná-lo num manicômio? Devemos prendê-lo em camisa de força? Devemos ministrar remédios que o deixem calmo, sereno, sem tremores, sem lágrimas, sem febres, falando em voz baixa, chuvisco em nosso ouvido?
O tempo, com o passar do tempo, poderá ficar ainda mais louco. Se não tomarmos providências imediatas, o tempo vai amanhecer cada vez mais desgovernado. Poderá tornar-se um problema insolúvel.
Já é tempo de dizer ao tempo que ele administre melhor suas emoções, peça conselhos, leia algum tipo de auto-ajuda. Não é fácil, deve ele admitir, vivermos sob tamanho despautério, não é justo que nós, tão prudentes, sejamos vítimas dessa loucura do tempo, de suas enchentes, suas ventanias, manias.
Tempo lelé, tempo aloprado que ele é. Tempo biruta, demente, capaz de matar a gente num acesso de fúria. Tempo que me desatina, tempo destrambelhado, desvairado. Tempo mentecapto. Tempo pancada, batendo até altas horas o seu tambor. Tempo pinel.
Saio de casa sem saber o que o tempo vai aprontar. Levo guarda-chuva, roupa de inverno, desconfio das nuvens, não me impressiono com a brandura do sol.
E, à noite, o tempo não dorme. Fica acordado, tempo lunático, sua insônia me deixa agitado. Também não consigo dormir.
Gabriel Perissé é doutor em Educação pela USP e escritor. 

Website: http://www.perisse.com.br/
Fonte: http://www.correiocidadania.com.br 


Uso e abuso dos professores

Escrito por Gabriel Perissé

Li na Folha de S. Paulo, no dia 23 de janeiro de 2010, matéria assim intitulada: "SP admite ter de usar professor reprovado".
O verbo "usar" entra pelos olhos, assalta as mentes, espanca o coração, cai torto no estômago e nos faz mal.
O verbo "usar", bem conhecemos. Eu, você, todos nós usamos o verbo "usar". Usamos e abusamos. Faço uso desse verbo porque muitas coisas eu aprendi a usar.
Uso roupa, uso computador, uso escada para subir, uso papel para escrever, uso dinheiro para comprar, uso carro para me transportar, uso de tudo que é lícito para viver humanamente.
Usar não é errado quando uso e manipulo o que é usável e manipulável: objetos a meu dispor, simples ou complexos, caros ou baratos, de qualidade ou vagabundos.
Mas usar pessoas, isso não; isso é demais da conta. Usar pessoas, jamais! Usar alguém para escalar. Usar alguém para ganhar. Usar alguém para gozar. Usar alguém para vencer. Usar alguém é coisa que ninguém deveria fazer. Usar alguém não é do bem. Usar alguém faz mal, e faz mal aos dois: a quem é usado, e também àquele que usa!
Dirão, talvez, que entendi mal. Que o título da matéria não tem maldade. Que "usar" é assim mesmo, usamos sem pensar. Que temos aí um modo de escrever inofensivo. Que estou exagerando a força da palavra. Que estou usando mal a minha capacidade de ler o jornal. Que estou vendo coisas.
Contudo, lá está, a matéria diz: os professores reprovados serão usados. Usados, concluo, porque foram reprovados. E foram reprovados porque sempre foram usados. Porque têm sido objeto de uso e abuso.
O professor fez a prova e foi reprovado. O que será que essa prova provará? Será essa prova eliminatória ou "humilhatória"? O governo de São Paulo garante que o professor, mesmo reprovado, será usado. E ele, o professor, que já se habituou a ser usado faz tanto tempo, voltará a ser temporário. Por quanto tempo?
Usado e mal pago, de manhã, à tarde e à noite, o professor se sente manipulado como uma coisa. Sem aplauso, excluso, mero parafuso, o professor aceita ser usado.
E aqueles que, useiros e vezeiros em usar os professores, humilham o docente, provam, na verdade, que não sabem servir a sociedade. E se não vivem para servir, para que servem?
Gabriel Perissé é Doutor em Educação pela USP e escritor.
Livraria como lugar de terapia 


Entrar numa livraria é, em si mesmo, um ato terapêutico. Tudo ali converge para a cura do tédio e outras doenças: livros que querem gente e gente que gosta de livros, gente que trabalha com livros e gente buscando livros, cheiro de livro, livros em exposição, suas capas, a sensação incontestável de que o mundo é feito de papel e palavras.
Pelo menos uma vez por semana, saia da cama com a idéia fixa: entrar numa livraria. Fique ali durante meia hora, ou mais. Toque os livros e se deixe observar por eles.
Escolha um, leia algumas páginas ao acaso. Visite autores conhecidos. Conheça novos autores. Não pisque, não hesite, arrisque, molhe os pés nas águas frias de algum livro.
Não é preciso comprar nenhum livro no dia em que estiver na livraria. Basta ficar ali dentro, experimentando o clima livral, como se o mundo fosse aquilo só, aquela fosse a paisagem em que nos coube viver.
Escolha um dia qualquer, entre na livraria, para ouvir a respiração dos livros, seus sussurros, seus chamados silenciosos, sentir no ar a aflição dos livros — porque eles querem sair dali para conhecer a realidade aqui fora.
Se algum livro conquistar você, compre-o então, tire-o dali, daquela prisão, daquela redoma, daquele orfanato, daquele abismo. Leve-o para fora, prometa-lhe a leitura mais intensa, as descobertas mais empolgantes, os delírios de quem lê. Leve-o para fora dali. Para dentro da sua vida.
O livro comprado e levado é mais do que uma nova companhia. É compromisso para sempre, na euforia e na depressão, na miséria e na abundância, sem possibilidade de empréstimos, pois bem sabemos que livro não se empresta... Nem se devolve.
Ao chegar em casa, deixe o livro descansar um pouco, não tenha pressa. Deixe que ele se sinta à vontade. Mais tarde, quando enfim vocês dois estiverem juntos e puderem conversar em paz, esqueça-se de tudo, para lembrar o essencial.
Contudo, muitos outros livros estão ainda na livraria, sem destino, correndo o risco do encalhe, abandonados à própria sorte, ameaçados pelo esquecimento, pela morte. É preciso, portanto, voltar até lá, mergulhar outra vez na livraria.
Entre na livraria qualquer dia desses. Lá estão eles, os livros. Não queira saber se são caros ou baratos, famosos ou modestos, compreensíveis ou obscuros. Entre lá. Eles estão esperando por você, ansiosamente.




Gabriel Perissé é doutor em Educação pela USP e escritor. 

Website: http://www.perisse.com.br/ 
Escrito por Gabriel Perissé - 22-Mar-2010

“Os Homens Que Não Amavam as Mulheres”

Sexo, violência, corrupção, antisemitismo, família e religião são os ingredientes usados pelo diretor sueco Niels Arden Oplev para fazer, a partir do romance “Millennium 1”, do escritor Stieg Larsson (1954/2004), um filme que mantém o espectador acesso. Não que os filmes atuais já não tenham saturado o espectador com histórias de igual conteúdo. Só que neste “Os Homens Que Não Amavam as Mulheres”, eles assumem um caráter multifacetado.


Da mesma moeda

Filme do diretor sueco Niels Arden Oplev faz espectador trafegar pelas trilhas obscuras do ódio e da vingança abertas por uma serial killer nazista



Oplev e seus co-roteiristas Rasmus Hersterberg e Nicolai Arcel dotam as sequências em que o sexo predomina de uma brutalidade que o destitui de qualquer erotismo. Torna-se bestial, voltado para prazeres doentios, que revelam a capacidade de o ser humano sentir prazer ao provocar dor no outro.

Mesmo quando a detetive particular Lisbeth Salander (Noomi Rapace) se sente atraída pelo jornalista Mikael Blomkvist (Michael Nyqvist), ela o usa mecanicamente. É como se ela, Lisbeth, temesse extravasar seus sentimentos. Apenas quando sofre abuso sexual, eles se manifestam. E, embora tanto ela quanto seu tutor e algoz sintam prazer em causar dor um no outro, ela sempre racionaliza o sofrimento.

Em duas sequências, ela responde à violência a que foi submetida com uma ferocidade que o surpreende. Sodomia, fetichismo, estupro, vão e voltam, por ação de um e outro. Sua aparente fragilidade é compensada pela rapidez e engenhosidade com que excuta sua ação. O fato de ser mulher pouco importa: ela não se furta a mergulhar no mal absoluto. Só então, seu algoz se retrai por sabê-la capaz de provocar-lhe dores e humilhação insuspeitas.

Em meio ao mal absoluto

Lisbeth Salander acaba tornando-se personagem emblemático deste início de Terceiro Milênio. Dark, andrógina, punk, ela avança pelos espaços disposta a responder a qualquer provocação. Não faz a mulher frágil, desprotegida, ela tem seus instantes de rancor, de vingança. Cerebral, meticulosa, inclemente, ela tem um senso de justiça, ética e moral muito particular. Tornam-se, assim, ferramentas para seus fins. Nada mais.

Diferente dela, Mikael segue a cartilha do politicamente correto. Suas denúncias das falcatruas praticadas por um magnata financeiro publicadas na revista Millennium onde trabalha lhe custam caro. Só o salva, aparentemente, o convite feito pelo bilionário Henrik Vender (Sven-Bertil Taube) para investigar o desaparecimento de sua sobrinha Harriet. Aos poucos, ele percebe que na família Vender reina o ódio entre os irmãos e o temor do passado, marcado pela adesão ao nazismo, antisemitismo, desaparecimentos e mortes misteriosas. E todos procuram se isolar para que nada abale o conglomerado empresarial que dirigem.

Mikael então dependerá de Lisbeth para desvendar esta intrincada teia familiar, cheia de intrigas, incestos e golpes baixos. Ela o ajuda por querer, no fundo, compensá-lo por algo que ele desconhece. E ela própria tem um passado nebuloso contra o qual se debate. Desta forma se completam; se atraem e se repelem. Portanto, uma dupla disfuncional. Daquelas que têm uma química perfeita, mas cujos interesses são dispares, ditados pelas circunstâncias que os fazem lutar juntos.

Trama às vezes é inverossímil

Stieg Larsson e Oplev os obrigam decifrar diversos quebracabeças. Principalmente citações bíblicas plantadas pelo serial killer para despistar sua psicopatia antisemita. São pistas que embaralham a investigação impedindo-os ligá-las a fatos reais. A ponto de assemelhar-se a uma trama urdida por Robert Ludlun (“Círculo Matarese”): nebulosa, inverossímil, cheia de citações que remetem a “Seven” e “Código DaVinci”, sem vinculá-las ao assassino em série, cuja ira descarrega em mulheres judias.

Comportamento que atesta a decadência dos Vender, que tudo fazem para não ter suas ações desmascaradas. Martin, sobrinho de Henrik, revela-se possuidor dos traços malignos do pai, com uma frieza digna de Lisbeth. Esta, no instante em que com ele se defronta, joga sobre ele todo o ódio acumulado em suas relações com os homens que a fizeram sofrer. Inclemente, ela faz da “Lei do Talião”, olho por olho, dente por dente, algo menor: uma cena de arrepiar.

Embora, a narrativa conduzida por Oplev torne o filme instigante, sua trama não deixa de ser nebulosa. Ele tenta torná-la assimilável com uma encenação grandiosa, montagem gráfica, tomadas panorâmicas, ambientes sombrios. Mas tem dificuldade para encontrar o fechamento certo. Usa dois prólogos, dominados pelo emocional, que reduzem o impacto do filme. Descamba para o dramalhão, a necessidade de ter um fecho otimista, numa obra pontuada pelo realismo frio, ditado pela brancura da neve. Puro cinemão, ainda que bem estruturado e cheio de reviravoltas.

“Os Homens Que Não Amavam as Mulheres”. (“Man Sim Hatar Kvinnor”). Aventura. Suécia/Dinamarca/Alemanha. 2009. 152 minutos. Roteiro: Niels Arden Oplev/Rasmus Hersterberg/ Nicolai Arcel, baseado no romance “Millennium 1”, de Stieg larsson. Direção: Niels Arden Oplev. Elenco:Michael Nyqvist, Noomi Rapace e Sven-Bertil Taube.



Cloves Geraldo * * Jornalista e cineasta, dirigiu os documentários "TerraMãe", "O Mestre do Cidadão" e "Paulão, lider popular". Escreveu novelas infantis,  "Os Grilos" e "Também os Galos não Cantam".

Fonte: Publicado dia 21 de Maio de 2010 - 0h08
Portal: http://www.vermelho.org.br/coluna 

Não silencio sobre direitos e cidadania para não ser cúmplice

Sobrevivesse ou não, deveria “entrar na Justiça”

O que dizer a um marido que dirige 120 quilômetros com a mulher em coma, 13 dias após o parto, e não encontrou socorro no caminho, embora tenha tentado num hospital em Pará de Minas? Disse-lhe que desconhecer os riscos dá coragem para atos como o dele.


Raramente algo me surpreende num pronto-socorro, depois de tantos anos pelejando. Mas às 6h30 da matina, após quase 24 horas de plantão, ver o enfermeiro levando uma mulher jovem, aparentemente em coma, para a sala de emergência, e saber que ela veio no carro da família, de um lugar a 120 km da capital, é estranho. Pois Minas é o Estado que mais possui ambulâncias e tem enraizada, desde priscas eras, a ideia da ambulância como, em si, um serviço de saúde. Candidato dono de ambulância não perde eleições nas Gerais.

Doente atendida, ânimos serenados e saindo do plantão, fui à portaria. Lá, uma família desolada: o marido, o filho de uns 8 anos, a mãe e uma irmã da mulher com um bebê de 13 dias nos braços. Uma cena chocante. Procurei chão ao saber que todos vieram no mesmo carro! Sem saber o que dizer, mas, como sou prática, pedi a uma enfermeira que providenciasse um pediatra para examinar o bebê e orientar a família sobre a sua alimentação. O que foi feito.

Meu mal-estar era profundo. De que adiantam as minhas lágrimas? De nada! Então, eu as engoli. Disse ao marido que tudo o que a medicina sabia fazer seria feito, porém estávamos recebendo a mulher em estado gravíssimo; e, se ela sobrevivesse ou não, em nome da dignidade e da memória dela, ele deveria “entrar na Justiça” para que os responsáveis fossem punidos exemplarmente. É uma história que não pode receber o selo da impunidade. Urge que as “autoridades competentes” demonstrem competência, saindo do imobilismo e tomando alguma providência. Morbimortalidade materna tem responsáveis, sempre!

O casal, ela com 37 anos, reside em Conceição do Pará (MG). No dia 11 de maio, ela fez uma cesariana em Pitangui (MG). Obteve alta no dia seguinte. No dia 19, apresentou forte dor de cabeça. Foi ao médico. Mesmo medicada, na sexta-feira à noite, a dor se tornou insuportável. Pediu ao marido que a levasse a Pará de Minas, um lugar de “mais recursos”. Não foi atendida. A mãe declarou que pedia para que não deixassem a sua filha morrer e implorou por uma ambulância. E nada! Sem nenhum médico ter se dignado a vê-la, da porta do hospital, a família pegou a estrada para Beagá.

Era sábado, 22 de maio. Amanhecia. No mesmo dia foi para o CTI, num pós-operatório neurocirúrgico (hemorragia subaracnoidea). Era uma paciente que precisava vir para Beagá, pois em sua cidade e naquela onde não foi acolhida eram parcos os recursos para a doença dela. Todavia, faria uma enorme diferença para ela ter sido atendida antes e transportada adequadamente. São cenas chocantes de descasos assim que dão todo sentido ao 28 de maio - Dia Internacional de Ação pela Saúde da Mulher, e no Brasil, desde 1994, Dia Nacional de Redução da Mortalidade Materna.

“Morte materna é a morte de uma mulher durante a gestação, ou dentro de um período de 42 dias após o parto, independentemente da duração ou localização da gravidez ou por medidas tomadas em relação a ela”. O 28 de maio é uma vitrine da história do feminismo e de todos espaços de resistência da luta mundial das mulheres pelo direito à saúde, em especial o sagrado direito de não morrer antes do tempo por causas preveníveis e evitáveis, e nem cruel, como a morte materna.
Fatima Oliveira  * Médica e escritora. É do Conselho Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução e do Conselho da Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe. Indicada ao Prêmio Nobel da paz 2005.

Fonte: Publicada 26 de Maio de 2010
Portal:  http://www.vermelho.org.br/coluna

Cuidado com as filhas de Obama

Quem advertiu foi o próprio presidente. Malia e Sasha são duas bonitas meninas que completam 11 e 9 anos. Elas têm em Michelle e em Barack um duplo arsenal genético para serem no futuro muito elegantes. Mas, parece que ainda são duas diabinhas, a julgar pela bricadeira que Obama fez, num jantar público, para alguém que se aproximava de suas filhas: "Tenho duas palavras para vocês: zangões predadores".


Foto: Julilanne Showalter (Reuters)  
 
Era uma referência à mais nova arma de extermínio do império que ele governa: o veículo aéreo não tripulado, os aviões zangões da CIA, que vêm realizando operações de assassinato no Afeganistão e no Paquistão. Também já foram usados no Iêmen e na Somália, segundo reportagem especial da Reuters¹, publicada no Huffington Post, sob o sugestivo título de "Como a Casa Branca aprendeu a amar o programa de aviões zangões da CIA".

Mais que uma banalização dos assassinatos, a permanente exibição desses zangões representam a velha arrogância da cultura do poder nos EUA, daquelas que os caubóis de Hollywood materializavam em suas pistolas e botas cravejadas de prata, diante do povoado assustado. A mesma arrogância das ameaças de autoridades da Casa Branca, mostrada no Estadão² desta terça-feira: “O Brasil está desperdiçando toda a boa vontade dos EUA... Se o acordo for usado por outros países para adiar as sanções, isso vai prejudicar Brasil e a Turquia nos EUA”.

 “O acordo não muda as medidas que estamos adotando para que o Irã cumpra suas obrigações, incluindo sanções”, disse o porta-voz da Casa Branca, Robert Gibbs. Uma arrogância que bate de frente com a receptividade do Financial Times³, que em editorial apoiou o acordo como uma saída para o impasse com o Irã. Ou com a observação do Council on Foreign Relations4, de NY, a instituição mais influente sobre a política externa dos EUA, para quem o acordo “põe EUA e seus parceiros europeus em situação difícil”, mas “afinal, receber bem a troca de combustível anunciada pode ser a escolha certa para os EUA”.

O analista David Rothkopf, da Foreign Policy5, avalia que o acordo pode ter derrubado anos de decisão bilateral entre EUA e União Soviética e depois EUA e a “comunidade internacional”, no conflito para definir os rumos da região. O acordo Brasil/Turquia/Irã também foi reconhecido por setores brasileiros que costumam ser críticos à nossa política externa, como a Folha de S Paulo6, em editorial nesta terça-feira. Como o ex-ministro Rubens Ricupero, em entrevista ao portal Terra Magazine7, e como o jornalista Jânio de Freitas8, para quem “Já se pode considerar que Lula e a sua equipe de relações externas fizeram no Irã um trabalho positivo para o Brasil”.

Em editorial nesta terça-feira The Guardian9 também caminha na contramão da arrogância de EUA e “comunidade internacional”. O sóbrio jornal britânico disse que o rascunho de sanções preparado contra o Irã “pode ser visto como um tapa das grandes potências nos esforços de negociação de outros países”. E aconselhou: “porém, neste mundo multipolar, Obama não pode se permitir tal coisa”. O jornal também elogiou Turquia e Brasil e lembrou o Japão: “juntas, essas nações assumiram o papel de negociador honesto abandonado por Inglaterra, França e Alemanha”, disse The Guardian.

Na mesma contramão, Roger Cohen, do New York Times10, lamenta que Brasil e Turquia tenha sido esnobados depois de “responderam ao chamado de Obama por uma nova era de responsabilidades compartilhada”. Para Cohen, os EUA não conseguem mais "impor soluções" às crises globais e sua reação ao acordo em Teerã "não fez nenhum sentido". Também o francês Le Monde11, em editorial desta quinta-feira, destaca as atuações de Brasil e Turquia que, depois de sucessos nos temas ambiental e comercial, marcaram uma nova etapa. “Os livros de história vão guardar esta data, 17 de maio, quando o Brasil e a Turquia propuseram à ONU o acordo negociado com Teerã”.

Se os zangões predadores de Obama deixarem.

(1) http://www.reuters.com/article/idUSTRE64H5SL20100518

(2) http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100518/not_imp553182,0.php

(3) http://www.ft.com/cms/s/0/9304584a-61e2-11df-998c-00144feab49a.html

(4) http://www.cfr.org/publication/22144/irans_sketchy_uranium_deal.html

(5) http://rothkopf.foreignpolicy.com/posts/2010/05/17/the_return_of_plan_b_emerging_power_diplomacy_in_the_middle_east

(6) http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1905201001.htm

(7) http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI4435512-EI6578,00-Lula+merece+aplausos+opina+Ricupero+sobre+acordo+com+Ira.html

(8) http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1805201005.htm

(9) http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2010/may/19/iran-nuclear-processing-un-sanctions

(10) http://www.nytimes.com/2010/05/21/opinion/21iht-edcohen.html

(11) http://www.lemonde.fr/opinions/article/2010/05/19/nucleaire-iranien-le-sud-emergent-veut-sa-place-dans-la-negociation_1353888_3232.html

Sidnei Liberal  * Médico, membro da Direção do PCdoB – DF

Fonte: Publicada 26 de Maio de 2010 - 0h02
http://www.vermelho.org.br/coluna