Espetáculo obsceno
O tempo passa, o tempo voa, a bolsa sobe e desce, a crise finge sumir e
reaparece, mas a lucratividade dos banqueiros continua numa boa. Na
alta ou na baixa, no sujo ou no limpo e até no mal lavado, eles ganham
sempre. Mandam e desmandam nos governos, regulam os que deviam
regulá-los, seguem soberanos na fortaleza inexpugnável da tirania
financeira que avassala o mundo.
Em todo e qualquer lugar, seja no Império Americano hipotecado, na
tragédia grega ou nos pólos avançados da velha Europa, os protocolos da
supremacia absoluta do capital financeiro continuam a girar as roletas
do cassino. Por toda a parte, com a voracidade das matilhas, eles
atacam sem dó nem piedade.
Aqui no Brasil, então, nem se fala. A cada trimestre os balancetes dos
bancos registram recordes cuja superação parecia impossível. A regra,
que se repete de maneira cronometrada, foi confirmada na safra atual. O
lucro líquido declarado pelos maiores bancos privados brasileiros nos
três primeiros meses deste ano alcançou um padrão estratosférico.
Nunca, em tempo algum, o Itaú, o Bradesco e Santander ganharam tanto
dinheiro.
Para evitar a sensaboria dos números, vamos nos limitar ao caso do Itaú
Unibanco. É, por enquanto, o maior banco privado e declarou, para o
trimestre, um lucro líquido de R$ 3,23 bilhões. Um aumento brutal, de
cerca de 60%, em relação ao mesmo período do ano passado. Lucratividade
espantosa: é o maior valor já registrado para um trimestre ao longo de
toda a história do setor.
Uma conta simples, dando de lambuja os domingos e feriados, define o
montante do lucro líquido diário: R$ 35,9 milhões. Logo, para efeito de
comparação, um trabalhador de salário mínimo levaria quase seis séculos
para amealhar uma quantia semelhante. Como Brasil foi "descoberto" em
1500, para equiparar ao que o Itaú lucra num dia, o nosso trabalhador
hipotético teria que ter começado sua poupança na era pré-colombiana.
Uma disparidade absurda. Um retrato cruel do abismo que separa as
classes sociais no Brasil de hoje. Não há ou, melhor dizendo, não
deveria haver qualquer possibilidade de convívio sereno entre a
consciência digna da cidadania e semelhante absurdo. No entanto, no
torpor gerado pela morfina-dinheiro, o absurdo é tratado como parte
integrante da paisagem. Natural como a explosão de um vulcão.
A roleta financeira que gira sem freios é a imagem mais precisa do
horror econômico que nos governa. A propriedade que tem o dinheiro - de
existir como valor separado de qualquer substância - está na base desta
vertigem da pecúnia sem limites. A violenta concentração de poder
materializado no dinheiro, hermafrodita que se reproduz na relação
consigo mesmo (D-D’), explica muita coisa. A dívida pública, um
Himalaia de juros sobre juros. A prevalência do financiamento privado
de campanhas eleitorais cada vez mais caras. O tal superávit primário,
que sacrifica direitos sociais e sucateia serviços públicos essenciais
para garantir o pagamento religioso dos juros.
Montaigne, no célebre ensaio "Dos Canibais", relata a presença de
índios trazidos do "Novo Mundo" recém descoberto para visitar a
reluzente corte francesa. Ao invés de se embasbacarem com tanto luxo e
riqueza, eles se espantaram foi com a desigualdade. Para eles, a brutal
disparidade entre o palácio e as ruas não era natural. O sentimento
igualitário do passado imemorial há de retornar no futuro utópico. Por
enquanto, quando os bancos publicarem balancetes, por favor, tirem as
crianças da sala para evitar o espetáculo obsceno.
Léo Lince é sociólogo.
Fonte: http://www.correiocidadania.com.br/