Saramago: um crítico da democracia formal
Morre José Saramago (1922-2010), um dos maiores romancistas da língua
portuguesa (prêmio Nobel de Literatura de 1998). Além de escritor,
Saramago foi conhecido também como um crítico da humanidade
contemporânea (por andar sem racionalidade) e do sistema de governo
democrático vigente no mundo. Nas palavras do escritor: "Todos estamos
de acordo que vivemos em um sistema democrático; portanto, somos
cidadãos, somos eleitores, há eleições, votamos, forma-se um parlamento
e, a partir desse parlamento, forma-se uma maioria parlamentar. Temos os
juízes, tribunais, temos todo o esquema montado. Este esquema é formal.
Mas até que ponto se permite que esse sistema seja substancial?".
Saramago leva-nos a refletir sobre o papel da democracia contemporânea
também debatida em duas diferentes correntes da Ciência Política: a
institucionalista e a participativa. A corrente institucionalista é
conhecida também como teoria democrática elitista, competitiva,
procedimental ou pluralista, teoria realista ou ainda teoria democrática
descritiva, ou seja, uma democracia formal.
Para os teóricos que defendem esta teoria, somente cabe aos cidadãos,
periodicamente, referendar ou mudar as elites que fazem parte dos
governos por intermédio do processo eleitoral. A vertente
institucionalista (teoria política das elites) foi inaugurada por Max
Weber e Schumpeter, a qual define a democracia como um arranjo
institucional para chegar a decisões políticas e se constituiu, antes de
tudo, numa competição entre elites. No institucionalismo, a política é
estruturada pelas instituições que influenciam os indivíduos e modificam
o comportamento.
Por outro lado, temos a corrente teórica que defende a teoria
participativa. Carole Pateman e C. B. Macpherson são os principais
representantes. Os participacionistas buscam multiplicar as práticas
democráticas, institucionalizando-as dentro de uma maior diversidade de
relações sociais, dentro de novos âmbitos e contextos: instituições
educativas e culturais, serviços de saúde, agências de bem-estar e
serviços sociais, centros de pesquisa científica, meios de comunicação,
entidades desportivas, organizações religiosas, instituições de
caridade, em síntese, na ampla gama de associações voluntárias
existentes nas sociedades atuais.
No entendimento de Pateman, para que exista uma forma de governo
democrático, é imprescindível a existência de uma sociedade
participativa, isto é, uma sociedade onde todos os sistemas políticos
tenham sido democratizados e a socialização possa ocorrer em todas as
áreas. Para a autora, a área mais importante de participação é o seu
próprio lugar de trabalho, ou seja, a indústria, pois é exatamente ali
que a maioria dos indivíduos despende grande parte de suas vidas e pode
propiciar uma educação na administração dos assuntos coletivos
praticamente sem paralelo em outros lugares.
Saramago tinha bem presente estas duas correntes teóricas da democracia.
Optou claramente pela segunda, a democracia participativa
(substancial). Fez uma crítica ao sistema democrático formal na medida
em que os cidadãos são meros expectadores, pois quem toma as decisões
são as elites políticas e econômicas. Nas palavras de Saramago: "Os
governos que elegemos, no fundo, são correias de transmissão das
decisões e das necessidades do poder econômico (representado pelo FMI,
OMC e pelo Banco Mundial), e os governos não só funcionam como correias
de transmissão, mas também como os agentes que preparam as leis, como as
que levam ao emprego precário".
Por fim, Saramago conclui: "ou a democracia transcende o poder (sai da
bolha), tendo uma ação fora dela, ou vamos continuar a viver na ilusão
do mundo democrático". Com a morte de Saramago o mundo certamente fica
um pouco mais pobre de saber e de crítica...
Dejalma Cremonese é professor do Instituto de Sociologia e Política da UFPel–RS.
Fonte: http://www.correiocidadania.com.br