sexta-feira, 28 de maio de 2021

Viveremos para contar as lágrimas?

Por Neuri A. Alves

''Fomos arrancados de nós mesmos, para uma 'coisificação final. Desabilitados do sentir, incapacitados de dividir as dores do mundo.''

 

O pensador vienense Sigmund Freud (1856/1939) disse: ‘’Não há, e certamente nunca haverá, um remédio capaz de acalentar a dor da perda, a experiência de morte’’. Será? – A interrogação é fruto deste tempo – que o assombro revela, denuncia: perdemos parte (ou a total) sensibilidade. Há uma naturalização da vida findada como comorbidade, ou como ordem natural das coisas, do inevitável. Uma explicita desatenção aos sofrimentos, transformados em gélida estatística. – Como contar as lágrimas deste tempo?

Nos congelamos em alguma esquina desta era, – e a odisseia do sapiens não revela nada igual. A pandemia desnudou o que há de pior na espécie. Aguçou o senso da individualidade, acentuou a perversidade de nossas contradições. Da negação dos perigos existentes, a contemplação natural dos infindáveis sofrimentos do outro. – porque não, de nós mesmos. Fez da vontade de abraçar uma anomalia, ante a insensibilidade do cuidado com o outro – e um pântano ideológico nos acalenta: ‘’o inferno são os outros’’. – Aqui não se contam as lágrimas, se contam justificativas. No lameamos na semântica expressiva: ‘primeiro as pessoas’’ - mas sem ser capaz de dizer quais pessoas?

Estamos só! Nós, em nossa imensa solidão, no inferno do mundo conectado. Adormecemos e despertamos sob números de partidas sem despedidas. Dores desidratadas de sensibilidade. Solenemente abrimos o nosso dia com as senhas do burocratismo, do pragmatismo produtivista, desumano. E findamos como códigos de barra do consumismo. Não mais estamos, apenas somos - sem SER. Fomos arrancados de nós mesmos, para uma 'coisificação final. Desabilitados do sentir, incapacitados de dividir as dores do mundo. - Quanto vale este sequestro?

Ah se pudéssemos nos resetar, reprogramarmos para além das receitas prontas oferecidas nas feiras de espiritualidades charlatãs, se ver livre dos líderes religiosos abusadores, das ideologias negacionistas e civismos barbarizados. Sentar à beira do caminho com a liberdade dos que ainda sorriem com as peraltices que reconectam aos dias felizes. Pois, quando viver se torna inapreensível, esvaziam-se horizontes, abrem-se abismos, olhamos para ele, que olha para nós e nos convida a entrar.

São tempos difíceis, basta somar nacionalismo do cagaço, fanatismo ignorante, fascismo ‘acalentador’ e temos a etapa que antecede a barbárie. Empunhe a cruz ao contrário e terás a espada, o dedo em riste e terás o rifle, a língua afiada de insensatez e teremos: a estupidez, o sangue, lágrimas e o inferno. - Conseguiremos escapar? – Vivos talvez sim. Porém humanos, as barbáries dificultam saber. Mas uma certeza nos reposiciona ao que já dissera Pascal: ‘Que quimera é o homem! Que confuso, que caos. Que misto de contradições. Juiz de todas as coisas, verme, imbecil, depositário de verdades e incertezas! Glória e nojo do universo – quem deslindará esta embrulhada?’ – Não sei vocês, mas quanto a mim, coleciono as bolhas de interrogação.


Prof. Neuri Adilio Alves - Filósofo pesquisador sobre Vazios no Campo, Trabalha com Educação Popular, com Assessoria de Organizações Sociais do Campo

quinta-feira, 27 de maio de 2021

Vazios e Silêncios na Agricultura Familiar


Por, Neuri A. Alves - 27 de maio 2021

''Não temos apenas latifúndios de terra, temos latifúndios de silêncios, de vazios existenciais, sociais, territoriais e sentidos para a vida na área rural''


Estudar vazios é parte de meu trabalho há duas décadas. E o ponto de partida é o sentido da vida, as crises existenciais do século XX e 
início deste milênio. O cenário é assustador, pensar a vida a partir da segunda metade do século passado é uma mescla de assombro e ilusão – pois é reveladora às mudanças no tecido social e as desoladoras esperanças que nos foram servidas como receitas de viver. Assombro, porque descobrimo-nos mais frágeis, limitados, embora o orgulho permanente – ilusão, porque sabemos que parte de tudo o que fizermos é mero adiar-se. E que todo nosso esforço parece esfacelar-se nos interesses mundanos e materiais de outros, e muito pouco para nós – não tem a ver com interdependência, é dependência mesmo de um sistema de governança maior que nós mesmo. O Campo vive esse drama profundamente, embora o vibracionismo de economistas e escribas do agronegócio.

Embora as barbáries, os conflitos ceifando vidas, campos de extermínio revelando nossa insensibilidade em relação a vida. Costumo dizer que lembrar Hiroshima e Nagasaki não é apenas o findar de um conflito. Não é apenas uma memória da perversidade do ego, da mente humana com duas bombas atômicas devastando territórios, dizimando milhares de vida, comprometendo a saúde de gerações, inviabilizando sonhos, abrindo uma ferida que nunca deixou de sangrar e condenando uma geração inteira as consequências físicas, materiais e existenciais – a ‘Rosa de Hiroshima’: hereditária, sem perfume, radioativa, estúpida e inválida’ nunca mais fechou.

É preciso olhar para estes fatos da história como mudanças de paradigmas no ocidente. Até ali tínhamos uma frágil certeza que morreríamos como indivíduos, mas aqueles dois artefatos nucleares mudaram a leitura antropológica da história, não apenas revelaram ao mundo a capacidade de destruição e imposição de poder. As bombas desnudaram-nos para a compreensão, ali pariu a certeza que podemos desaparecer como espécie de um instante para outro. A partir de então, passamos conviver com a angustia diária de incertezas, embora pouco compreendida pela narcísica cultura ocidental. Seja por disputas no campo das relações diplomáticas da geopolítica ou pela intencionalidade de um maluco qualquer, neste mundo de pouca sanidade.

O século XX e sua lógica urbanista, narcísica e consumista nos dessacralizou de valores fundamentais, nos coisificou como engrenagem da produção, consumo e falsos sentidos. Nos secularizou como máquinas com prazo de validade e esvaziou-nos para o sentido da vida. Não há registro de outros momentos na história humana em que se desenvolveu, produziu-se tantas coisas para tornar nossas vidas mais cômodas, tranquila e supostamente mais feliz. De outro modo, isso revelou-se insuficiente, desnecessário e aporte de insatisfação. Pois, nunca antes na história os indivíduos experimentaram aos milhões o vazio existencial, as angustias de buscas não compreendidas, a ausência de um sentido e significado para a vida e o suicídio como fuga das dores existenciais – e então, assombrosamente compreendemos o que é morrer por dentro. Mas aí, a insensibilidade falsamente nos blindou, congelou-nos até o ponto de derretimento por nossas contradições e as brutalidades de nosso ser irracional – embora a racionalidade exacerbada seja parte deste todo!

Mas tal experiência, que parecia mais uma realidade vivida pelo sujeito urbano, exposto a lógica de um desenvolvimento de caráter moderno a reboque de processo pós-moderno, revelou-se antropológica e sociologicamente teia de expansão também a vida no campo. E esta, tecida diariamente, expandida conforme a insaciável perversidade do sistema que nos individualizou, codificando-nos como número da produção e nos ‘coisificando’ como códigos de barras de valores e interesses transitórios, descartáveis na lógica perversa da produção. Ou seja, perdeu o valor ou capacidade de produzir se descarta – avançaria ainda mais.

E este que parecia um paradigma somente da vida urbana moderna, chega ao campo no Brasil a partir da programática agenda e pacote da Revolução Verde. E neste pacote da lógica produtivista de larga escala para circuitos longos, o homem do campo, em hegemônica maioria dos que não foram vítimas da expulsão (sim expulsão) via êxodo rural, passaram a ser desconstruídos, como sujeitos de vida comunitária, social, cultura e existencial, para serem transformados em mera engrenagem da estatística produtivista na balança comercial.

Ao menos, meio século depois aqui estou, primeiro como observador, segundo como provocador de releituras para o campo e por último, ensaísta e curioso pesquisador dos ‘Vazios Existenciais’ na agricultura familiar – ou seja, sei que não temos apenas latifúndios de terra neste país. Passamos ter latifúndios de silêncios, de vazios existenciais e sentidos para a vida na área rural também. Há milhares de agricultores e agricultoras morrendo de silêncio enquanto ensaio escrever este artigo – mas como diz a letra da música ‘Notícia de Jornal’ cantada por Chico Buarque: ‘’A dor da gente não sai no jornal’’ – e complemento dizendo: as dores existenciais menos ainda.

É preciso ouvir este silêncio que grita, provindo do seio das propriedades. Pois, os camponeses que até então cotados a desaparecer, não desapareceram, em virtude da produção subsistente e diversificada - quase uma subversão a monocultura. Estes agora passam viver com a angustia de uma vida vazia de sentido e significado. Uma existência pulverizada de angustias, stress, depressão, silêncio nas relações comunitárias, sociais, e a pior das realidades – conviver com o suicídio como remédio as ansiedades de uma vida imersa na lógica da produção e o consumo como batismo e salvação social e existencial.

Nas andanças por aí, conhecendo a angústia dos agricultores e agricultoras, fica explicito a necessidade urgente de devolver não só a liberdade ao homem do campo expropriada pela lógica impositiva de produzir, não o que se quer, mas o que o sistema determina. É preciso devolver-lhes o espaço da propriedade como direito de decidir sobre o que é seu. Lhes devolver a cuia de chimarrão, da celebração da vida, da convivência que lhe foi tirada como instrumento da confraternização. Devolver-lhes o direito de sentar-se à sombra quando o corpo estiver cansado, o direito de visitar os vizinhos mais próximos sem se sentir controlado, prisioneiro dos pacotes tecnológicos.

É preciso devolver o direito ao convívio da vida comunitária, o direito de dormir sem o peso das preocupações com o banco que lhes ameaça pelo crédito acessado. É preciso preencher os vazios de infelicidades com a dignidade que lhes foi expropriada – e acima de tudo, ressignificar o sentido da vida com as sensibilidades saqueadas de sua relação simbiótica com a terra, a propriedade. É preciso diferenciar a beleza que os intelectuais veem na capacidade de produzir, da dureza de quem põe a mão na terra e não na caneta e teclado eletrônico. Mais que dignidade, sustentabilidade é preciso felicidade no campo. Sem isso, não haverá colheitas significativas!

Prof. Neuri Adilio Alves - Filósofo pesquisador sobre Vazios no Campo, Trabalha com Educação Popular, com Assessoria de Organizações Sociais do Campo

quarta-feira, 26 de maio de 2021

Na distância do dizer e fazer faltam gerânios


''Quando apenas se olha, discursa e pouco faz, o jardim da luta é terra prometida, terra vazia ou terra arrasada. A retórica segue bonita, mas o jardim, a rua, o horizonte vazio e triste'' (Prof. Neuri a2)


A palavra ‘longe’ pode ser mero advérbio relativo de lugar, a depender de quem o diz, quem ouve, a que referência. Dos gregos a nós, a dimensão ou noção de espaço, tempo e lugar, do dizer e fazer, pode ser descrito, conceituado, mas não findado como determinismo. Dizer isso é importante, quando queremos aferir dimensão daquilo que não só se vê, se vocifera, mas acima de tudo, se faz. Pois, entre o dizer e o fazer, por vezes, se abrem abismos difícil de atravessar, a não ser por palavras, quando as pernas se recusam enfrentar.


A luta deveria ter um pouco dos girassóis (estratégicos na luz do sol, práticos no escuro da noite (na espera do amanhecer) mas nem sempre, ou quase nunca, é. Quando muito, a transformamos em jardim exótico de: rosas com espinhos, bonitas de ver, mas temerosas por espinhar. Como dama da noite, tímida com a luz do dia e desinibida ao anoitecer – embora pouca presença para a ver. No otimismo, até a imaginamos como rosa do deserto, resiliente, teimosa e resistente, apenas para os fortes, no pessimismo é Rosa de Hiroshima, estúpida, sorrateira e inválida, típica dos covardes, que usam das piores ações para justificar a condição.

Mas quando a luta se faz jardim que encanta por dentro e regado por fora com prática transformadora, ela redimensiona a realidade, mexe no espirito, preenche de coragem, provoca mobilidade e transformação na realidade. E aqui lembro dos dirigentes, militantes que pouco falam e muito fazem – e muitas vezes, sem precisar de diretivas. Estes, assemelham-se a história ‘A rua triste dos Gerânios’ descrita pelo escritor Paulo Coelho há quase uma década, nesta, o escritor relata:

‘’Numa rua cinzenta e triste de um bairro operário de Liverpool, uma mulher colocou um vaso de gerânios na janela. Dois dias depois, sua vizinha da frente por inveja, ou porque notou que os gerânios eram bonitos colocou dois vasos de flores. Alguns trabalhadores, voltando para casa, notaram duas janelas diferentes. Suas mulheres, vaidosas, resolveram também comprar flores. Um mês depois, todas as janelas da rua tinham pequenos jardins. Alguém pintou a fachada do lugar onde morava, já que a beleza das flores realçava a feiura do resto. O exemplo foi imitado. Um ano depois, a cinzenta e triste Rua de Liverpool se transformou num referencial de urbanização. Hoje, cinco anos depois, o bairro inteiro está sendo modificado, com apoio da prefeitura. - Tudo porque, um belo dia, alguém colocou um vaso de gerânios na janela.’’

Porque descrevo isso? Porque a luta exige sensibilidade para ver, iniciativa, estratégia, proatividade, e esta, é carregada de uma palavrinha mágica e provocativa chamada convicção, que se traduz em sei o que faço, porque faço e assumo os desafios e responsabilidades sobre aquilo que preciso ver e fazer. Pois, quando apenas se olha, discursa e pouco faz, o jardim da luta é terra prometida, terra vazia ou terra arrasada. - A retórica segue bonita, mas o jardim, a rua, o horizonte vazio e triste.

Ver-pensar-fazer é mais fecundo que falar-justificar-acomodar. Por ora, se ainda não conseguimos enxergar os ‘gerânios’ na janela, que possamos aprender com os girassóis durante os dias de luz e o escurecer das noites. Na luta, quem não consegue ver e agir na luz do sol, muito menos enfrentará as noites escuras que tem. - Por mais ‘gerânios’ na janela!!!


Prof. Neuri A. Alves 

domingo, 21 de junho de 2020

O DIREITO UNIVERSAL DE RESPIRAR


Achille Mbembe – Filósofo Camaronês

''Somos capazes de redescobrir que cada um de nós pertence à mesma espécie, que temos um vínculo indivisível com toda a vida?'' 

Algumas pessoas já estão falando sobre "pós-COVID-19". E por que não deveriam? Mesmo que, para a maioria de nós, especialmente aqueles em partes do mundo onde os sistemas de saúde tenham sido devastados por anos de negligência organizada, o pior ainda esteja por vir. Sem leitos hospitalares, sem respiradores, sem testes de massa, sem máscaras, desinfetantes ou arranjos para colocar aqueles que estão infectados em quarentena, infelizmente, muitos não passarão pelo olho da agulha.

Uma coisa é se preocupar com a morte de outros em uma terra distante e outra é tomar consciência subitamente da própria putrescência, ser forçado a viver intimamente com a própria morte, contemplando-a como uma possibilidade real. Tal é, para muitos, o terror desencadeado pelo confinamento: ter que finalmente responder pela própria vida, pelo próprio nome.

Devemos responder aqui e agora por nossa vida na Terra com outras pessoas (incluindo vírus) e nosso destino compartilhado. Essa é a liminar que esse período patogênico trata da humanidade. É patogênico, mas também o período catabólico por excelência , com a decomposição dos corpos, a triagem e expulsão de todos os tipos de resíduos humanos - a “grande separação” e o grande confinamento causado pela impressionante expansão do vírus - e junto com ele , a digitalização generalizada do mundo.

Por mais que tentemos nos livrar disso, no final, tudo nos leva de volta ao corpo. Tentamos enxertá-lo em outras mídias, transformá-lo em corpo de objeto, corpo de máquina, corpo digital, corpo ontopânico. Agora ele volta para nós como uma horrível mandíbula gigante, um veículo para contaminação, um vetor para pólen, esporos e mofo.

Saber que não enfrentamos essa provação sozinhos, que muitos não vão escapar dela, é um conforto vã. Pois nunca aprendemos a conviver com todas as espécies vivas, nunca nos preocupamos realmente com os danos que nós, humanos, causamos nos pulmões da terra e em seu corpo. Assim, nunca aprendemos a morrer. Com o advento do Novo Mundo e, vários séculos depois, o surgimento das “raças industrializadas”, escolhemos essencialmente delegar nossa morte a outras pessoas, para fazer uma grande reformulação sacrificial da própria existência através de uma espécie de vicariato ontológico.

Em breve, não será mais possível delegar a morte de alguém a outros. Não será mais possível que essa pessoa morra em nosso lugar. Não apenas seremos condenados a assumir nossa própria morte, sem mediação, mas as despedidas serão poucas e distantes entre si. Chegou a hora da autofagia e, com ela, a morte da comunidade, pois não existe uma comunidade digna de seu nome em que se torna impossível dizer a última despedida , ou seja, relembrar os vivos no momento da morte.

A comunidade - ou melhor, o comum - não se baseia apenas na possibilidade de dizer adeus , isto é, de ter um encontro único com outras pessoas e honrar essa reunião repetidamente. O comum é baseado também na possibilidade de compartilhar incondicionalmente, cada vez que extrai dele algo absolutamente intrínseco, algo incontável, incalculável, inestimável .

Não há dúvida de que os céus estão se aproximando. Presa no domínio da injustiça e da desigualdade, grande parte da humanidade é ameaçada por um grande estrangulamento, pois a sensação de que nosso mundo está em um estado de alívio se espalha por toda parte.

Se, nessas circunstâncias, um dia depois vier, não poderá ocorrer às custas de alguns, sempre os mesmos, como na Ancienne Économie - a economia que precedeu essa revolução. Deve necessariamente ser um dia para todos os habitantes da Terra, sem distinção de espécie, raça, sexo, cidadania, religião ou outro marcador de diferenciação. Em outras palavras, um dia depois chegará, mas apenas com uma ruptura gigante, resultado da imaginação radical.

Papel sobre as rachaduras simplesmente não serve. No fundo desta cratera, literalmente tudo deve ser reinventado, começando pelo social. Depois de trabalhar, fazer compras, acompanhar as notícias e manter contato, nutrir e preservar conexões, conversar entre si e compartilhar, beber juntos, adorar e organizar funerais, começa a ocorrer apenas na interface das telas, é hora de reconhecer que por todos os lados estamos cercados por anéis de fogo. Em grande parte, o digital é o novo buraco que está explodindo a Terra. Simultaneamente, uma trincheira, um túnel, uma paisagem lunar, é o bunker onde homens e mulheres são convidados a se esconder, isolados.

Eles dizem que, através do digital, o corpo de carne e ossos, o corpo físico e mortal, serão liberados de seu peso e inércia. Ao final dessa transfiguração, ele poderá se mover através do espelho, se afastar da corrupção biológica e restituir a um universo sintético de fluxo. Mas isso é uma ilusão, pois, assim como não há humanidade sem corpos , da mesma forma, a humanidade nunca conhecerá a liberdade sozinha, fora da sociedade e da comunidade, e a liberdade nunca poderá custar à biosfera.

Temos que começar de novo. Para sobreviver, precisamos retornar a todos os seres vivos - incluindo a biosfera - ao espaço e energia de que precisam. Em seu ventre úmido, a modernidade tem sido uma guerra interminável contra a vida. E está longe de terminar. Um dos principais modos desta guerra, levando diretamente ao empobrecimento do mundo e à dessecação de áreas inteiras do planeta, é a sujeição ao digital.

Após essa calamidade, existe o perigo de que, em vez de oferecer santuário a todas as espécies vivas, infelizmente o mundo entrará em um novo período de tensão e brutalidade . Em termos de geopolítica, a lógica do poder e do poder continuará a dominar. Por falta de uma infraestrutura comum, uma divisão viciosa do globo se intensificará e as linhas divisórias se tornarão ainda mais arraigadas. Muitos estados procurarão fortalecer suas fronteiras na esperança de se protegerem do exterior. Eles também procurarão ocultar a violência constitutiva que continuam a direcionar habitualmente para os mais vulneráveis. A vida atrás das telas e em condomínios fechados se tornará a norma.

Especialmente na África, mas em muitos lugares do Sul Global, a extração intensiva em energia, a expansão agrícola, as vendas predatórias de terras e a destruição de florestas continuarão inabaláveis. A alimentação e o resfriamento de chips e supercomputadores de computador depende disso. O fornecimento e fornecimento dos recursos e energia necessários para a infraestrutura de computação global exigirão mais restrições à mobilidade humana. Manter o mundo à distância se tornará a norma para manter riscos de todos os tipos do lado de fora. Mas, por não abordar nossa precariedade ecológica, essa visão catabólica do mundo, inspirada em teorias de imunização e contágio, pouco faz para romper o impasse planetário em que nos encontramos.

Todas essas guerras na vida começam tirando o fôlego. Da mesma forma, como impede a respiração e bloqueia a ressuscitação de corpos e tecidos humanos, o COVID-19 compartilha essa mesma tendência. Afinal, qual é o objetivo da respiração, se não a absorção de oxigênio e a liberação de dióxido de carbono em uma troca dinâmica entre sangue e tecidos? Mas no ritmo que a vida na Terra está acontecendo, e dado o que resta da riqueza do planeta, a que distância estamos realmente do momento em que haverá mais dióxido de carbono do que oxigênio para respirar?

Antes deste vírus, a humanidade já estava ameaçada de asfixia. Se deve haver guerra, não pode ser tanto contra um vírus específico como contra tudo o que condena a maioria da humanidade a uma interrupção prematura da respiração, tudo o que ataca fundamentalmente o trato respiratório, tudo o que, no longo reinado do capitalismo, tem restringiu segmentos inteiros da população mundial, raças inteiras, a uma respiração difícil e ofegante e à vida de opressão. Vir através dessa constrição significaria que concebemos a respiração além de seu aspecto puramente biológico, e sim como aquilo que mantemos em comum, aquilo que, por definição, ilude todo cálculo. Com o que quero dizer, o direito universal de respirar.

Como aquilo que não é aterrado e é comum, o direito universal de respirar não é quantificável e não pode ser apropriado. De uma perspectiva universal, não é apenas o direito de todo membro da humanidade, mas de toda a vida. Portanto, deve ser entendido como um direito fundamental à existência. Consequentemente, não pode ser confiscado e, assim, ilude toda a soberania, simbolizando o princípio do soberano por excelência . Além disso, é um direito originário de viver na Terra, um direito que pertence à comunidade universal de habitantes terrestres, humanos e outros.

Ocaso já foi pressionado mil vezes. Recitamos as acusações de olhos fechados. Seja a destruição da biosfera, a tomada da mente pela tecnociência, a criminalização da resistência, ataques repetidos à razão, cretinização generalizada ou a ascensão de determinismos (genéticos, neuronais, biológicos, ambientais), os perigos enfrentados pela humanidade são cada vez mais existenciais.

De todos esses perigos, o maior é que todas as formas de vida serão tornadas impossíveis. Entre aqueles que sonham em carregar nossa consciência em máquinas e aqueles que têm certeza de que a próxima mutação de nossa espécie está em nos libertar de nossa casca biológica, há pouca diferença. A tentação eugenista não se dissipou. Longe disso, de fato, uma vez que está na raiz dos recentes avanços na ciência e na tecnologia.

Nesse momento, chega a súbita prisão, uma interrupção não da história, mas de algo que ainda escapa ao nosso alcance. Uma vez que nos foi imposta, essa cessação não deriva de nossa vontade. Em muitos aspectos, é simultaneamente imprevisível e imprevisível. No entanto, precisamos de uma cessação voluntária, uma interrupção consciente e totalmente consensual . Sem o qual não haverá amanhã. Sem o qual nada existirá, a não ser uma série interminável de eventos imprevistos.

Se, de fato, COVID-19 é a expressão espetacular do impasse planetário em que a humanidade se encontra hoje, é uma questão de reconstruir uma Terra habitável para dar a todos nós o fôlego da vida. Temos de recuperar os pulmões do nosso mundo, a fim de criar novos caminhos. A humanidade e a biosfera são uma. Sozinho, a humanidade não tem futuro. Somos capazes de redescobrir que cada um de nós pertence à mesma espécie, que temos um vínculo indivisível com toda a vida? Talvez seja essa a pergunta - a última - antes de darmos nosso último suspiro de morte.

Joseph-Achille Mbembe, é um filósofo, teórico político, historiador, intelectual e professor universitário camaronês.

Fonte: https://africasacountry.com/2020/06/the-universal-right-to-breathe

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Entre os 1300 mortos, perdi o grande mestre


Prof. Dr Cleverson Leite Bastos 
Talvez pudesse me conformar que a morte é uma invenção da vida – eu disse talvez. Mas o dia terminou mais triste, não perdi (e entre colegas perdemos) apenas um professor de filosofia que teria cruzado os corredores de uma sala de aula em minha vida. Perdi o grande mestre Professor Cleverson Leite Bastos. Perdi, quem aguçou-me a curiosidade para mergulhar em grandes obras, a curiosidade por estudar sem me apegar apenas por escolas filosóficas, porque filosofia é mais do que escolas, é totalidade. Dele, os incentivos ao mergulho na complexidade, na grande bolha interrogativa deste mundo – estudar, estudar, estudar.  

Difícil esquecer suas aulas de metafisica, ética, estética, filosofia da ciência, cosmologia e lógica – aliás, meu grande terror os estudos da lógica, uma de suas grandes paixões e reconhecido escritor e pesquisador. Quem não lembra dos temerosos dias de prova, em meio a seus risos, sarcasmos de uma mente perturbada, genial, de quem produziu uma tese de doutorado com quase mil página, (dez com louvor na banca na UFSCAR/SP) discutindo os paradoxos de Zenão de Eleia, o ‘Infinito dentro do Finito’ – monstruoso. Aquele excêntrico professor que aplicava a prova de Lógica I, II ou III no início da manhã, então pegava suas coisas e ia embora, voltando perto do meio dia para recolher. – Colar o que? E de quem? Que nota tirar? – Que terror!!!  

Partiu vítima do infortúnio deste momento (COVID19), encontrou-se com o limite do tempo, retornando à diluição cósmica, causa de tantas discussões em suas peripatéticas aulas de metafisica. Difícil esquecer aquele epistêmico e amargo conformismo em Filosofia da ciência: ‘da entropia ninguém escapa’, em Cosmologia: ‘tudo neste universo é só perda’, na aula de Metafisica: ‘tudo é ente, tudo existe’. E a dureza de afirmações do tipo: ‘a morte é a prova de que não somos necessários neste mundo’. - Difícil esquecer os momentos que vivi em suas aulas no Instituto Vicentino de Filosofia e também na Pontifícia Universidade Católica em Curitiba (PUCPR).

Se a genialidade o diferenciava, o vício do cigarro o denunciava quase como um sarcasmo a inteligência, uma dose de demência perdoada. Partiu vítima de um vírus, algo que emerge de suas afirmações: ‘contra a natureza não se luta’, e por uma ironia do destino ou não, a criatura invisível o levou, aproveitando-se da única brecha de estupidez, manifesta em um pulmão fragilizado pelo vício. Costumava dizer que o filósofo é uma espécie de poeta frustrado com cientista inacabado, de inteligência exacerbada e demências oportunizadas – Ele foi um pouco deste todo. 

Foi poeta da vida contando versos de amor a canoagem, das aventuras ajudando o pai pescador em alto mar, foi cientista dedicado nos estudos da ‘filosofia da mente’ ‘matrimoniando’ duas paixões: neurociência e psicanálise. Se não fosse pelos milhares de alunos, de suas quase três décadas na PUC/PR partiria no anonimato, sem o espetáculo da filosofia show dos grandes palcos aplaudidas neste país – aliás, que tanto odiava. Deixa um legado de grandes histórias, reconhecidas publicações no campo da Lógica, turbilhão de belas lembranças e exemplo de dedicação a filosofia. Sim, talvez vai cedo demais, mas como ele mesmo diria: 'tudo aqui é só perda'. 

– O vírus que o levou neste dia entre os 1300 mortos, já levou outros 39.797 especiais também, vítimas da ‘gripinha’ mais cruel do século. De tudo, fica a lição necessária de cuidarmo-nos com um brinde amargo no licor de Sigmund Freud: ‘a morte é a única dor que não se encontrou e se encontrará remédio algum’. – Carpe Diem, et memento mori!

Aqui uma pequena oportunidade de ouvir sua reflexão sobre o 'Livre Arbitrio'

Prof. Neuri A. Alves – Filósofo Pesquisador em Antropologia Filosófica Existencial e Assessor de Formação e Elaboração na Fetraf Santa Catarina

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Ufanismos e Paradoxos do ‘Agro Pop’

Problematizar sucessos é incorrer no risco de ousadia, excesso de preciosismo, quando oportuno e cômodo seria apontar o dedo aos limites, fracassos de um agroprodutivismo, respaldado meramente por balança comercial. No entanto, nem todo sucesso é sinônimo de bilharete. Por vezes, revela cicatrizes profundas, sob o tecido corolário do êxito, que encobre dolorosas feridas, que sangram ao custo de acúmulos degradantes – e como a terra não mente ou esconde suas dores, ela se revela como ferida hemorrágica.                                                     
De retirante família camponesa, fomos empurrados ao mundo urbano na década de 1970, nunca deixei de pisar no solo onde foi enterrado meu umbigo de nascituro doméstico pelas mãos de minha avó parteira. E assim passei a infância visitando o lugar de minha ancestralidade. Ali, com a alegria de um urbanoide pobre (em férias de escola) para além das peraltices, conheci propriamente os desafios enfrentados nas pequenas propriedades de trabalho braçal e produção artesanal destinada ao consumo familiar.
► O que vi na década de 1980
Nas idas e vindas deste período, em meados dos anos 80, ouvi as primeiras conversas sobre o cultivo de uma semente ‘lucrativa’ que mais tarde compreendi tratar-se da soja. Porém, diziam que tal cultivar não era para a pequena propriedade (talvez nem as grandes), embora cooperativas do agronegócio regional incentivassem os pequenos (alguns miseráveis) agricultores a plantar. Mesmo que permanecesse aproximadamente 150 dias (quase meio ano) ocupando o solo e inviabilizando o cultivo de alimentos básico as famílias – o que nos oportunizava chamá-la também de ‘grão da fome’ em propriedades de até 7 hectares!
Neste espaço de tempo, conheci também a suinicultura e avicultura em grandes alojamentos, com placas identitárias na entrada das propriedades sinalizando um processo de organização produtiva que não era para as famílias. Era sim, para abastecer grandes mercados, circuitos longos ao custo da mais valia da terra, degradação ambiental, subordinação da saúde e condicionante da força de trabalho do agricultor. Ciclo vicioso que se consolida agora no confinamento para produção de leite, fortalecendo uma hegemonia de controle do tempo, espaço, domínio, posse das propriedades e exclusão dos pequenos agricultores. 
 O que observamos nas andanças
Assessorando entidades da agricultura familiar, entendi que a nominada Revolução Verde havia feito de alguns afortunados do lucro, outros meras engrenagens da produção, da terra uma vítima ambiental, e a uma hegemônica maioria escravos do produtivíssimo: sem lucro, saúde, terra, propriedade, tempo, voz, vez e identidade. Mas com a possibilidade de se chamar empreendedor rural. – Um processo a desconstruir o sujeito comunitário do campo, consolidando a ferramenta perversa neoliberal do individualizar para fragilizar. O que responde parte dos desafios colocados ao sindicalismo e todas as organizações da categoria social.
Mas a suposta grandeza de um projeto para balança comercial tão propalado pelo capital e porque não dizer também, por muitos ‘numerologistas’ de commodities do campo progressista, não objetiva levar em consideração os impactos que estão por trás do modo de produção no agronegócio. Um sistema que além de impactar violentamente no meio ambiente, destruir a base cultural de uma categorial social, ameaça nossa permanência como espécie por aqui. Seja esta última, pela produção para escala global abandonando a soberania local ampliando a mesa da fome e miséria, seja pelo uso indiscriminado de agroquímicos e uma nanociência para sementes que não garante a saúde humana, esteriliza a autonomia dos agricultores e ameaçam a soberania dos povos.
 Modelo agro pop e as ameaças veladas
Não bastasse, o momento oportuniza dizer que o agronegócio é um sistema pandêmico de zoonoses. Problema tão grave, que uma parcela significativa de doenças infecciosas que acometem espécies animais inteiras no planeta, assim como, são potenciais contaminantes humanos. – O que se revela no momento a possível origem da COVID19. – Some-se a isso, as endemias e pandemias no agronegócio planetário como: ‘Peste Suína Africana’, a ‘Gripe Aviária’, a Síndrome Respiratória do Oriente Médio, (ou MERS) uma doença provocada por outra variante dos Coronavírus (o MERS-CoV), a Encefalopatia Espongiforme Bovina (Mal da Vaca Louca). Se não suficiente, junte a este pacote mortal as conhecidas bactérias da toxoplasmose, hidatidose, equinococose, teníase, cisticercose, brucelose e salmonelas.
Sei que nem toda provocação resulta reflexão, mas não fazer, é padecer incólume ante ao óbvio – e não podemos sucumbir a armadilha da inércia, que legitima o lucro-pelo-lucro se usando da mais valia da terra e a esterilização do planeta via concentração destrutiva e capital improdutivo. – Quem está preocupado com as grandes ameaças endêmicas ou pandêmicas do agronegócio? Não será o capital improdutivo do agronegócio, que neste momento cozinha no caldeirão da ganância o prato de nossa soberania alimentar e nutricional. Pois, somente o quarteto ABCD (ADM, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus) dominam o comércio planetário de commodities agrícolas. Acrescente a esta bomba relógio os pacotes ‘milagrosos’ da Bayer/Monsanto.
 Na resteva das colheitas sobra provocações
O que nos resta além de número da balança comercial? – Resta o ônus do violento impacto ambiental, a destruição física, mental, social e espiritual do agricultor. A desconstrução do sujeito do campo e as ameaças permanentes de um vírus ou bactéria do desenfreado capitalismo agrícola periférico ou central, colocar o planeta em xeque mate, mas diferente de agora, sem salvação. Em última instância, resta a pedagogia deste momento. Que nos sirva de limiar para uma nova esperança, com mudanças profundas de consciência a uma nova ética planetária do cuidado, respeito a vida, solidariedade, resiliência e sororidade entre os seres. Do contrário, pela inteligência esterilizada e nossa consciência falida, nos consumiremos em autofagia até o colapso final.
Não há mais tempo, a decisão de ontem é produzir e consumir para viver, ou insistir no modelo convencional para morrer. Diferenças entre agricultura familiar, camponesa e agronegócio não é simplismo de nomenclatura, masturbação mental da semântica ou conceito de planilha para economistas de escritório, as diferenças no modo de ser, viver e produzir são abissais. O que por si só suscita profundas reflexões, começando pelo paradoxo do suposto sucesso produtivo de um modelo pop, mas que revela 1 bilhão de famintos no planeta e nos oferece uma ‘pequena’ mas singela verdade: agroecologia não é autofagia, portanto, a escolha sobre modelo e o que queremos consumir nos pertence Ic et nunc, (aqui, agora). Do contrário, vamos providenciar nossos flutuantes temporários, o barco vai afundar e não haverá resgate!  
Prof. Neuri A. Alves – Filósofo Pesquisador em Antropologia Filosófica Existencial e Assessor de Formação e Elaboração na Fetraf Santa Catarina