Pancadaria literária: a guerra anunciada entre João Ubaldo e FHC
Guardei, por 12 anos, em meio à minha papelada imunda de recortes de jornais e revistas velhas, numa caixa de papelão em frangalhos, um artigo de João Ubaldo Ribeiro datado de 25 de outubro de 1998, porque esperava justamente esse momento: a hora em que Fernando Henrique Cardoso, alijado da política e na iminência de cair no esquecimento público, se candidatasse a uma vaga na Academia Brasileira de Letras.
Por Leandro Fortes, no blog Brasília, eu Vi
O artigo, intitulado “Senhor
Presidente”, foi escrito logo depois da vitória de FHC, no primeiro
turno das eleições de 1998, graças ao Plano Real e à aprovação, no
Congresso Nacional, da Emenda Constitucional da reeleição, conseguida à
custa de um escandaloso esquema de compra de votos. O texto é pau puro
e, surpreendentemente, foi escrito numa época em que a mídia nacional
era, praticamente, uma assessoria de imprensa do consórcio PSDB/PFL.
Não por outra razão, foi inicialmente censurado em O Estado de S. Paulo, para onde o cronista escrevia, embora o jornal tenha sido obrigado a publicá-lo, uma semana depois, para evitar se envolver em um escândalo de censura justo com um dos mais respeitados escritores do país. Num tempo de internet incipiente, a repercussão do artigo foi mínima, ficando restrita às redações e ao meio intelectual, de resto, também acovardado pela força do pensamento único imposto à sociedade pela imprensa e pelo governo de então.
Esse retalho jornalístico ficou comigo tanto tempo porque, no fundo, eu tinha certeza que a vaidade intelectual de FHC iria levá-lo, em algum momento, a pleitear uma vaga na ABL, como agora se noticia em notas discretas de colunas de jornal, certo de que se trata de uma confraria historicamente vulnerável a influências políticas, quando não à bajulação pura e simples, como qualquer um pode constatar, embora abrigue grandes escritores, como o próprio João Ubaldo Ribeiro.
Contudo, lá também estão escribas do calibre de José Sarney e do cirurgião plástico Ivo Pitanguy. No passado, também circulavam entre os imortais o general Aurélio de Lira Tavares (codinome “Adelita), eleito em 1970, com o apoio do ditador Emílio Médici, e Roberto Marinho, das Organizações Globo. A presença de FHC, que pelo menos escreveu uns livros de sociologia não seria, portanto, um escândalo em si. O problema é o artigo de João Ubaldo.
Fogueira de brasas
No texto, o escritor baiano, entre outras considerações, refere-se assim a Fernando Henrique Cardoso: “(…) o senhor é um sociólogo medíocre, cujo livro O Modelo Político Brasileiro me pareceu um amontoado de obviedades que não fizeram, nem fazem, falta ao nosso pensamento sociológico”.
Mais adiante, relembra um dos piores momentos da vida de FHC: “(…) o senhor, que já passou pelo ridículo de sentar-se na cadeira do prefeito de São Paulo, na convicção de que já estava eleito, hoje pensa que é um político competente e, possivelmente, tem Maquiavel na cabeceira da cama. O senhor não é uma coisa nem outra, o buraco é bem mais embaixo”.
E por aí vai, até se lembrar, a certa altura do texto, que FHC, em algum momento da vida, poderia se interessar pela vida imortal da ABL. João Ubaldo, então, cospe uma fogueira de brasas para cima de Fernando Henrique: “(…) E, falando na Academia, me ocorre agora que o senhor venha a querer coroar sua carreira de glórias entrando para ela. Sou um pouco mais mocinho do que o senhor e não tenho nenhum poder, a não ser afetivo, sobre meus queridos confrades. Mas, se na ocasião eu tiver algum outro poder, o senhor só entra lá na minha vaga, com direito a meu lugar no mausoléu dos imortais”.
Eu posso estar errado, já se passou mais de uma década, a ira de João Ubaldo pode ter se perdido na poeira do tempo, mas a julgar pelo teor do imortal artigo do escritor e jornalista baiano, FHC vai ter que pensar duas vezes antes de se candidatar a uma vaga na ABL. Ou considerar o fato de que só vai entrar lá por cima do cadáver de João Ubaldo Ribeiro. A conferir.
Abaixo, o artigo completo, para quem quiser se deleitar:
Não por outra razão, foi inicialmente censurado em O Estado de S. Paulo, para onde o cronista escrevia, embora o jornal tenha sido obrigado a publicá-lo, uma semana depois, para evitar se envolver em um escândalo de censura justo com um dos mais respeitados escritores do país. Num tempo de internet incipiente, a repercussão do artigo foi mínima, ficando restrita às redações e ao meio intelectual, de resto, também acovardado pela força do pensamento único imposto à sociedade pela imprensa e pelo governo de então.
Esse retalho jornalístico ficou comigo tanto tempo porque, no fundo, eu tinha certeza que a vaidade intelectual de FHC iria levá-lo, em algum momento, a pleitear uma vaga na ABL, como agora se noticia em notas discretas de colunas de jornal, certo de que se trata de uma confraria historicamente vulnerável a influências políticas, quando não à bajulação pura e simples, como qualquer um pode constatar, embora abrigue grandes escritores, como o próprio João Ubaldo Ribeiro.
Contudo, lá também estão escribas do calibre de José Sarney e do cirurgião plástico Ivo Pitanguy. No passado, também circulavam entre os imortais o general Aurélio de Lira Tavares (codinome “Adelita), eleito em 1970, com o apoio do ditador Emílio Médici, e Roberto Marinho, das Organizações Globo. A presença de FHC, que pelo menos escreveu uns livros de sociologia não seria, portanto, um escândalo em si. O problema é o artigo de João Ubaldo.
Fogueira de brasas
No texto, o escritor baiano, entre outras considerações, refere-se assim a Fernando Henrique Cardoso: “(…) o senhor é um sociólogo medíocre, cujo livro O Modelo Político Brasileiro me pareceu um amontoado de obviedades que não fizeram, nem fazem, falta ao nosso pensamento sociológico”.
Mais adiante, relembra um dos piores momentos da vida de FHC: “(…) o senhor, que já passou pelo ridículo de sentar-se na cadeira do prefeito de São Paulo, na convicção de que já estava eleito, hoje pensa que é um político competente e, possivelmente, tem Maquiavel na cabeceira da cama. O senhor não é uma coisa nem outra, o buraco é bem mais embaixo”.
E por aí vai, até se lembrar, a certa altura do texto, que FHC, em algum momento da vida, poderia se interessar pela vida imortal da ABL. João Ubaldo, então, cospe uma fogueira de brasas para cima de Fernando Henrique: “(…) E, falando na Academia, me ocorre agora que o senhor venha a querer coroar sua carreira de glórias entrando para ela. Sou um pouco mais mocinho do que o senhor e não tenho nenhum poder, a não ser afetivo, sobre meus queridos confrades. Mas, se na ocasião eu tiver algum outro poder, o senhor só entra lá na minha vaga, com direito a meu lugar no mausoléu dos imortais”.
Eu posso estar errado, já se passou mais de uma década, a ira de João Ubaldo pode ter se perdido na poeira do tempo, mas a julgar pelo teor do imortal artigo do escritor e jornalista baiano, FHC vai ter que pensar duas vezes antes de se candidatar a uma vaga na ABL. Ou considerar o fato de que só vai entrar lá por cima do cadáver de João Ubaldo Ribeiro. A conferir.
Abaixo, o artigo completo, para quem quiser se deleitar:
Senhor Presidente
Por João Ubaldo Ribeiro (25 de outubro de 1998)
Senhor Presidente,
Antes de mais nada, quero tornar a parabenizá-lo pela sua vitória
estrondosa nas urnas. Eu não gostei do resultado, como, aliás, não gosto
do senhor, embora afirme isto com respeito. Explicito este meu respeito
em dois motivos, por ordem de importância. O primeiro deles é que, como
qualquer semelhante nosso, inclusive os milhões de miseráveis que o
senhor volta a presidir, o senhor merece intrinsecamente o meu respeito.
O segundo motivo é que o senhor incorpora uma instituição basilar de
nosso sistema político, que é a Presidência da República, e eu devo
respeito a essa instituição e jamais a insultaria, fosse o senhor ou
qualquer outro seu ocupante legítimo. Talvez o senhor nem leia o que
agora escrevo e, certamente, estará se lixando para um besta de um assim
chamado intelectual, mero autor de uns pares de livros e de uns
milhares de crônicas que jamais lhe causarão mossa. Mas eu quero dar meu
recadinho.
Respeito também o senhor porque sei que meu respeito, ainda que talvez
seja relutante privadamente, me é retribuído e não o faria abdicar de
alguns compromissos com que, justiça seja feita, o senhor há mantido em
sua vida pública – o mais importante dos quais é com a liberdade de
expressão e opinião. O senhor, contudo, em quem antes votei, me traiu,
assim como traiu muitos outros como eu. Ainda que obscuramente, sou do
mesmo ramo profissional que o senhor, pois ensinei ciência política em
universidades da Bahia e sei que o senhor é um sociólogo medíocre, cujo
livro O Modelo Político Brasileiro me pareceu um amontoado de obviedades
que não fizeram, nem fazem, falta ao nosso pensamento sociológico. Mas,
como dizia antigo personagem de Jô Soares, eu acreditei.
O senhor entrou para a História não só como nosso presidente, como o
primeiro a ser reeleito. Parabéns, outra vez, mas o senhor nos traiu. O
senhor era admirado por gente como eu, em função de uma postura ética e
política que o levou ao exílio e ao sofrimento em nome de causas em que
acreditávamos, ou pelo menos nós pensávamos que o senhor acreditava, da
mesma forma que hoje acha mais conveniente professar crença em Deus do
que negá-la, como antes. Em determinados momentos de seu governo, o
senhor chegou a fazer críticas, às vezes acirradas, a seu próprio
governo, como se não fosse o senhor seu mandatário principal. O senhor,
que já passou pelo ridículo de sentar-se na cadeira do prefeito de São
Paulo, na convicção de que já estava eleito, hoje pensa que é um
político competente e, possivelmente, tem Maquiavel na cabeceira da
cama. O senhor não é uma coisa nem outra, o buraco é bem mais embaixo.
Político competente é Antônio Carlos Magalhães, que manda no Brasil e,
como já disse aqui, se ele fosse candidato, votaria nele e lhe
continuaria a fazer oposição, mas pelo menos ele seria um presidente bem
mais macho que o senhor.
Não gosto do senhor, mas não tenho ódio, é apenas uma divergência
histórico-glandular. O senhor assumiu o governo em cima de um plano
financeiro que o senhor sabe que não é seu, até porque lhe falta
competência até para entendê-lo em sua inteireza e hoje, levado em
grande parte por esse plano, nos governa novamente. Como já disse na
semana passada, não lhe quero mal, desejo até grande sucesso para o
senhor em sua próxima gestão, não, claro, por sua causa, mas por causa
do povo brasileiro, pelo qual tenho tanto amor que agora mesmo, enquanto
escrevo, estou chorando.
Eu ouso lembrar ao senhor, que tanto brilha, ao falar francês ou
espanhol (inglês eu falo melhor, pode crer) em suas idas e vindas pelo
mundo, à nossa custa, que o senhor é o presidente de um povo miserável,
com umas das mais iníquas distribuições de renda do planeta. Ouso
lembrar que um dos feitos mais memoráveis de seu governo, que ora se
passa para que outro se inicie, foi o socorro, igualmente a nossa custa,
a bancos ladrões, cujos responsáveis permanecem e permanecerão impunes.
Ouso dizer que o senhor não fez nada que o engrandeça junto aos
corações de muitos compatriotas, como eu. Ouso recordar que o senhor,
numa demonstração inacreditável de insensibilidade, aconselhou a todos
os brasileiros que fizessem check-ups médicos regulares. Ouso rememorar o
senhor chamando os aposentados brasileiros de vagabundos. Claro, o
senhor foi consagrado nas urnas pelo povo e não serei eu que terei a
arrogância de dizer que estou certo e o povo está errado. Como já pedi
na semana passada, Deus o assista, presidente. Paradoxal como pareça, eu
torço pelo senhor, porque torço pelo povo de famintos, esfarrapados,
humilhados, injustiçados e desgraçados, com o qual o senhor, em seu
palácio, não convive, mas eu, que inclusive sou nordestino, conheço
muito bem. E ouso recear que, depois de novamente empossado, o senhor
minta outra vez e traga tantas ou mais desditas à classe média do que
seu antecessor que hoje vive em Miami.
Já trocamos duas ou três palavras, quando nos vimos em solenidades da
Academia Brasileira de Letras. Se o senhor, ao por acaso estar lá outra
vez, dignar-se a me estender a mão, eu a apertarei deferentemente, pois
não desacato o presidente de meu país. Mas não é necessário que o senhor
passe por esse constrangimento, pois, do mesmo jeito que o senhor pode
fingir que não me vê, a mesma coisa posso eu fazer. E, falando na
Academia, me ocorre agora que o senhor venha a querer coroar sua
carreira de glórias entrando para ela. Sou um pouco mais mocinho do que o
senhor e não tenho nenhum poder, a não ser afetivo, sobre meus queridos
confrades. Mas, se na ocasião eu tiver algum outro poder, o senhor só
entra lá na minha vaga, com direito a meu lugar no mausoléu dos
imortais.
Fonte: http://www.vermelho.org.br/noticia