sexta-feira, 23 de abril de 2010

A imanência e a transcendência das coisas e da vida no sertão

Fatima Oliveira *

É, como dizem os rosiólogos, uma paisagem mental perene

De vez em quando, indagam se as crônicas que escrevo são memórias ou ficção. São memórias. Jamais escrevi ficção em qualquer das 419 crônicas publicadas em O TEMPO, incluindo a de hoje. A pergunta tem o poder de me fazer refletir sobre o ofício prazeroso de escrever. Como surge uma crônica? Não sei. Costumo anotar e guardar quando vem à minha mente algo interessante. O assunto aparece, germina, brota e amadurece. Às vezes, demora; às vezes, "encroa" e não sai nada; outras, de uma sentada jorra uma crônica inteirinha. É um processo inexplicável. E assim a vida de escrevinhadora corre.

Adoro escrever sobre a minha meninice. Guardo lembranças calientes. Tive uma infância e adolescência felizes, idílicas até. Tendo sido uma criança venerada, por ser primogênita e primeira neta, nascida de filha única, afilhada dos avós maternos, fui muito mimada, mas educada para ter autonomia. Achava a "Carta de ABC" fascinante e pedi para ir para a escola! Desabrochei muito estudiosa e adorava ler, ler e ler... Foi a sede de saber que fez com que, aos dez anos, fosse "mandada" estudar longe de casa, "lá no Padre Macedo" (Colinas, Maranhão). Não havia mais o que estudar em Graça Aranha. Era 1964.

Desde então, o convívio presencial com a minha família foi apenas nas férias escolares. Saí de casa aos dez anos e nunca mais voltei. Deve haver algo extremamente forte, construído nos dez primeiros anos de minha vida, e suficientemente sólido, que se mantém no campo dos valores morais, do apego à gente e às coisas do sertão, que evidencia que ter vivido ali nos marca para sempre. Costumo dizer que o sertão que conforta e acaricia o meu viver é, como dizem os rosiólogos, uma paisagem mental perene, que nutre a minha vida e a minha produção literária. Há algo de imanente ao sertão que não nos larga nunca e nos acompanha o tempo todo.

Quando fui a Nova York a primeira vez, era 2005, com mil e uma coisas para ver, eu quis ir à Body Shop, de Anita Roddick, só para mirar os sabonetes de óleo de coco de babaçu, lá do Maranhão, pois sei o que é ser uma quebradeira de coco! E, à beira do lago Michigan, em Chicago, enquanto minha filha Débora fotografava aquele mundão de água, a imagem que me veio foi do açude de minha terra e das mulheres lavando roupa...

É pra rir, não é? Eu também ri, e muito, só de pensar que, se tivesse me afogado ali, não estava contando a história. Quando tinha oito anos, fui levar almoço para mamãe, que estava lavando roupa no açude. Aproveitando que ela estava distraída no maior papão, eu "tibum!" no açude! E fui nadando rápido, pretendendo chegar a um toco de palmeira, de onde as pessoas adultas davam saltos mortais e "tomavam pé"... Não sabendo nadar direito, e nem era acostumada a nadar ali, comecei a beber água: subindo e descendo, subindo e descendo... Fui salva por uma das lavadeiras.

Recordo-me de mamãe com um chicotinho de fedegoso me batendo, e eu vomitando até as tripas, enquanto dizia: "Pega tua bicicleta e chispa pra casa, menina atentada!" Ah, isso eu era! Mamãe nunca mais lavou roupa no açude. Foi proibida. Papai dizia que ela não precisava, já que tinha lavadeira. Anos depois, perguntei por que ela gostava de lavar roupa no açude. Respondeu que "era um divertimento". O açude era um ponto de encontro das mulheres, até daquelas que, de vez em quando, usavam a desculpa de lavar roupa só pelo prazer da muvuca. Bonito, não é? Mas lembrar disso à beira do lago Michigan tem dimensão transcendental.

Publicado em: 06/04/2010
www.otempo.com.br/otempo/colunas/?IdColunaEdicao=11317


* Médica e escritora. É do Conselho Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução e do Conselho da Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe. Indicada ao Prêmio Nobel da paz 2005.

Fonte: http://www.vermelho.org.br/coluna