quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Enfrentar a lógica perversa do modelo de produção



Um dos urgentes desafios planetário é enfrentar a lógica perversa da exclusão e destruição imposta pelo produtivismo desenfreado no campo. Que pelo caráter irresponsável, vilipendiador da vida planetária exige mudança. E mudar, não é mera necessidade de povos, culturas e nações, mas condição ‘sine qua non’ para nossa permanecia territorial, social e cultural, na ‘casa mãe’ (Planeta Terra). 

Ou seja, trata-se de desafio central colocado aos brasileiros também, mais que nunca neste momento, com um governo que presa pela banalização do cuidado responsável aos recursos naturais. - Isso deveria provocar questionamentos em cada cidadão, um interrogar-se do tipo: O que tenho feito? E embora transpareça uma pergunta aberta a processar respostas é preciso ser feita, ou então, basta assumir que estamos longe de apresentar ações objetivas para enfrentar a situação colocada. 

De outro modo, temos ações concretas provindas de muitos lugares. Do movimento global de adolescentes puxado pela sueca Greta E. Thunberg lutando pelo direito a ter um futuro melhor no planeta, até as pautas locais de entidades em diversos continentes. Pautas que vão, do encontro para repensar a lógica da produção de alimentos, a exploração responsáveis dos recursos naturais. Um exemplo destas iniciativas vem da ONG Belga Wervel (um movimento pela agricultura sustentável) - Sediada em Bruxelas, além da luta em defesa da agricultura na Bélgica, encampa a causa em defesa do Bioma Cerrado, uma savana pouca conhecida na Europa e parcamente cuidada no Brasil).

Como organização que trabalha para uma agricultura socialmente responsável e economicamente justa, em 2019 Wervel apresentou um instigante memorando sobre uso da terra, que apesar de ser uma ferramenta propositiva para enfrentar a realidade no pequeno país europeu, muitos pontos se encaixam na realidade brasileira: da revolução verde, do AgroPop/PopAgro, governo dos agrotóxicos, destruidor de políticas públicas para agricultura sustentável e promotor da lógica produtivista irresponsável. 

Por fim, ou enfrentamos a lógica colocada, ou o tempo findara tristemente como um fim de feira – com o dinheiro do financeirismo acumulado irresponsavelmente (sem valor ou sentido de compra), num grande armagedon da insensatez. Que as boas ideias nos sirvam para alguma coisa, senão para mudar nosso agir, ao menos para o tardio ranger de dentes por arrependimento. Sirvamo-nos a seguir das proposições da Wervel!







- Segue o documento:


MEMORANDO DE WERVEL PARA UMA AGRICULTURA COM FUTURO

1. O solo: um meio básico de produção

- Proteção das terras agrícolas contra a especulação fundiária e a expansão desordenada para fins não agrícolas. Implementação efetiva do princípio de adensamento no planejamento urbano.

- Fixação do teto para o preço de terras agrícolas, tanto para venda quanto para arrendamento.

- Um banco de terras baseado no modelo francês (“Sociétés d'Aménagement Foncier et d'Etablissement Rural, SAFER”) poderia ser um instrumento para uma política fundiária eficaz, limitando o valor comercial das terras agrícolas ao seu valor agrícola (intrínseco).

- O aumento da pensão mínima legal para um nível aceitável de bem-estar poderia evitar que esta medida seja conflitante com os interesses dos agricultores que estão se aposentando e não têm um sucessor.

A especulação fundiária em geral reduz os meios de produção comuns a objeto para obtenção de lucro privado e deve ser proibida. A venda ou alienação de terras agrícolas pelo próprio governo, por exemplo, a venda de propriedades do OCMW [Centros públicos de assistência social] a particulares, também é inaceitável.

2. Agricultura: uma profissão com futuro

- Distribuição justa das margens dentro dos diferentes elos da cadeia alimentar, com atenção especial para os preços e rendimentos do agricultor e do consumidor. Autoridade efetiva das consultas dentro da cadeia sobre esse tema, com base nas observações feitas pelo observatório dos preços.

- O direito das organizações de produtores de negociar acordos setoriais sobre preços e volumes de produtos agrícolas com o comércio, a indústria e a distribuição.

3. Agricultura moderna baseada em agroecologia

- Desenvolver boas práticas em agroecologia em combinação com a agricultura orgânica, em função das regiões agrícolas e das culturas agrícolas. Reforço do papel da pesquisa e desenvolvimento do governo nessa área.

- Visar a pecuária vinculada a terra, em função da área forrageira disponível. Visar empreendimentos agrícolas mistos ou de cooperações complementares entre empresas de lavoura e empresas pecuárias.

- Investir no cultivo de espécies forrageiras e alimentícias ricas em proteínas, bem como em espécies com múltiplas aplicações como o cânhamo.

- Desenvolver e divulgar técnicas, culturas e métodos agrícolas, incluindo sistemas agro-florestais, a fim de elevar progressivamente o teor de húmus e a fixação de carbono no solo.

- Integração da agroecologia com a gestão da água e com a preservação e aumento da biodiversidade.

- Restauração e preservação do solo nas suas funções de organismo purificador, de reservatório de águas subterrâneas e de tampão no escoamento de águas superficiais.

- Restauração e preservação do solo como suporte e alimento para os organismos que vivem no subsolo e acima do solo, na maior coesão (simbiótica) e diversidade possíveis.

4. Alimentos saudáveis e acessíveis

- Funcionamento eficiente e transparente da Agência Alimentar da Bélgica. Aumentar o número de inspeções nas empresas que apresentam os maiores riscos. Ênfase na orientação e não na penalização, para empresas e cooperativas menores.

- Buscar um bom equilíbrio na alimentação, utilizando mais proteínas vegetais e menos proteínas animais. Menos publicidade para e menos uso de açúcares e gorduras. O menor número possível de produtos alimentares refinados. Em cozinhas de serviços públicos, escolas e empresas, preferência para produtos locais e da estação, provenientes de propriedades agrícolas que aplicam práticas sustentáveis.

- Limitação dos preços dos alimentos básicos, aplicando a redução nas maiores margens de lucro da cadeia de comercialização do agricultor até o consumidor.

5. Apoio à agricultura local, visando a soberania alimentar

- Apoio às cadeias curtas, reconhecimento do papel do agricultor na transformação e comercialização de alimentos, como parceiro igualitário ao lado da agroindústria e da distribuição atacadista.

- Desenvolvimento de zonas ou cinturões em torno das cidades, onde os alimentos são cultivados visando o abastecimento alimentar dessas cidades.

- Criação de mercados atacadistas regionais e intermunicipais, abastecidos por produtores locais a preços que cubram os custos.

Afinal, no atual sistema de mercado, os leilões aplicam o princípio da ‘oferta e procura’, enquanto o fornecimento pelos mercados atacadistas à preços de equilíbrio respeitam o interesse do produtor. A condição básica para isso é que seja aplicado o princípio da regulação da oferta (controle de produção).


6. Reforma profunda da PAC [Política Agrícola Comum da União Europeia]

- Proteção da produção agrícola interna baseada em um modelo agrícola e alimentar saudável, sustentável e socialmente justo. Exclusão dos acordos de comércio internacional que não cumpram estes requisitos. Nenhum comércio sem normas equivalentes ou sem base em necessidades reais.

Em termos concretos, isto significa que o comércio só pode ser considerado ‘justo’ se não houver substituição devido a uma diferença nos custos de produção (por exemplo, mão-de-obra mal remunerada, admissão de agrotóxicos nocivos no país importador, ...) ou devido a apoio do poder público (por exemplo, apoio a excedentes de mercado ou apoio à produção). Os custos ecológicos também devem ser levados em conta nos custos de transporte.

O comércio em prol do desenvolvimento não pode ser um fim em si mesmo. Alternativamente, poderia ser desenvolvido em conjunto um intercâmbio internacional e assistência ao investimento em tecnologia, em conexão com o desenvolvimento de cooperativas de produção agroecológica de alimentos.

- Regulação dos mercados dos principais produtos agrícolas com base em quotas fundamentadas na demanda interna, de acordo com a especificidade de cada país e de cada região.

- O sistema de prêmios ao rendimento (auxílio por hectare) deve ser mais equilibrado e, sobretudo, mais justo. Incorporar critérios como atividade agrícola e emprego reais, bem como um impacto positivo adicional no nível dos prêmios pela prestação de serviços à sociedade (por exemplo, medidas em benefício da biodiversidade e da fixação do carbono). Discriminação positiva (concessão de prêmios mais elevados) de pequenas empresas e das várias formas de cooperação.

- Garantir rendimentos justos aos agricultores. Para controlar a produção e a oferta, visando preços agrícolas estáveis e suficientes, também deve ser possível lançar mão de garantia de preço mínimo e de armazéns pública.


Wervel, Bruxelas.


Prof. Neuri A. Alves
Assessor de Formação e Elaboração na Fetraf Santa Catarina
Membro Honorário e Voluntário da entidade no Brasil para causa do Cerrado e Agricultura Sustentável

quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Feliz Ano Novo aos inesquecíveis

''Não sei brindar falsas alegrias, sigo ocupado com minhas utopias'' 


Feliz novo ano aos inesquecíveis deste tempo, que pelo pouco esforço da consciência, excessos de arrogâncias conseguiram fazer de 2019 uns dos piores anos dos últimos cinco séculos. 

Novo ano a você professor que votou neste governo e viu seus direitos ameaçados, avanços da educação apagados na lousa de sua arrogância no ano que ficou, mas com estragos para décadas;

Novo ano a você funcionário de atendimento na saúde e usuário do SUS. Você que votou no fascismo porque iria melhorar o atendimento no sistema púbico e agora pode ficar sem emprego e saúde publica;

Novo ano a você caminhoneiro que votou no mito da recuperação de rodovias/carreiros/estradas, redução no preço do diesel, melhor valor dos fretes, mas passou o ano velho pagando o preço da sua escolha, furada indignação e pavimentando dias de vergonha;

Novo ano para você colega pesquisador da universidade, institutos federais que atirou pedras nos tempos antanhos de vacas gordas no CNPq e passou o último ano pastando nas bolsas da insensatez;

Novo ano a você familiar de estudante de instituições privadas que militaram para derrubar a 'corrupta' Dilma e agora trancaram matriculas nas universidades porque não tem bolsas de estudos, dinheiro para pagar mensalidades e nem crédito para financiar;

Novo ano para você agricultor que votou no mito da mudança porque queria derrubar uma pequena área de APP ou comprar uma espingarda taquari. Mas agora não tem créditos para sementes, moedas para a pólvora, sem esperanças do que fazer e para onde ir;

Novo ano para você operário que votou para derrubar os 'comunistas do PT, os corruptos do poder e viu este 'ano velho' de "governo novo" com pilantragens e pilhagem de direitos trabalhistas, sociais e passou a virada de ano faltando dinheiro para comprar o gás;

Novo ano a você velho Homem das promiscuas promessas na noite que finda o ano, dos pedidos sem esforço e excessiva pressa. Das preces farisaicas, das bondades espetacularizadas, da ética 'panes et circus' chauvinista de viradas;

Novo a você que divide as angustias desafiantes deste tempo comigo, obrigado pela coragem de seguir fazendo o que assumimos como convicção de vida e compromisso de mundo. Seguiremos nossos caminhos, sem os engodos que arrastam os que pouco pensam, bobagem fazem e a tudo destroem.

Feliz Ano Novo a todos! Queria bater palmas, mas minhas mãos se ocupam do escrever, meus pés se negam fazer o que não sabem, estes ouvidos a curtir descompasso e meus olhos desviar do foco. Não sei brindar falsas alegrias, sigo ocupado com minhas utopias!!!

Prof. Neuri A. Alves

Formação para novas Utopias

''Eu acredito, mas não quero e posso acreditar sozinho''

Há tempos deixei de ser o ‘chato’ que só falava da necessidade de estudar. Entre as razões: o isolamento por parte de alguns, o não bem quisto por parte de outros, o doutrinador pelos oponentes ideológicos, o chato pelos preguiçosos e inimigos da
leitura, o filósofo negador do lattes por que aqueles que veem neste a ferramenta de um orgulho vazio. E por último, apontado como o ‘teórico’ pelos revolucionários da ortodoxia de um fragmento ‘clichê’ da obra de Marx: ‘’o que havia para pensar foi pensado, o que interessa é a transformação do mundo’’.

O ponto de partida, emerge deste último, porque ‘’meus iguais’’ de utopias de outrora e revolucionários de uma falsa e frágil autossuficiência (e ainda agora) fracassaram em partes – deixaram de pensar e fraquejaram na transformação desta realidade. O comodismo fez-se revolução deste tempo - o que suscita novas provocações. Sim, a prática é o critério da verdade como dissera o mestre Marx, mas a prática sem a compreensão da teoria como filha ‘cativa’ da ação é um negar-se a possibilidade de afeiçoar e aperfeiçoar processos, esterilizando assim potenciais avanços. Ou seja, é fundamental que possamos mergulhar nos acúmulos teóricos, de concepções, por serem estes resultados da ação, compreensão e de algum modo, formação do sujeito histórico e todo tecido social.

Compreender a realidade a qual estamos inseridos requer aprofundar-se, inteirar-se, problematizar para apresentar viés de mudanças – do contrário, permanecemos no campo dos achismos, naquela metáfora da lagoa de sapos, onde todo mundo ‘coacha’ alguma coisa. Digo isso, porque trabalhando assessoria de formação, palestras há muitos anos, compreendo algumas questões como centrais, provocativas e necessárias as entidades, organizações, de modo especial, as sindicais, onde tenho pisado o terreno com mais solidez e posso dizer: – É preciso estudar mais!

Não estudar por estudar, para cumprir o mote do ‘tarefismo’ que tomou conta de nossos espaços. Estudar para compreender estes novos tempos e agir sobre a realidade com mais conhecimento de causa e menos desperdícios de energias, com poucos ou nenhum resultado. Porém, submeter-se a isso não exige o que muitos equivocadamente chamam de sacrifícios. Exige sim, adesão, sentimento de necessidade, pertença do sapiens, postura de humildade para dispor-se a relação de crescimento mutuo. - A transformação só pode emergir de um tecido social fortalecido, do contrário se rasgará nas fragilidades de uma composição pouco coesa.

As organizações sociais precisam repensar suas agendas de formação, metodologias (convencionais ou da educação popular), mesmo aquelas que sempre deram certas, pois não significam que ainda possam responder as questões de nosso complexo momento. Já ouvi em alguns lugares que oficinas com tarjetas são formas ‘moderninhas’ de educação popular com pouco resultado. Confesso, me assusta ouvir isso de quem trabalha na organização pedagógico de centros de referências na educação popular e movimentos, como ouvi este ano. Para mim, é o típico pensar de quem reproduz a lógica corporativista do escolasticismo acadêmico. Nada contra a academia, mas não é dela que precisamos essencialmente neste momento, e não trato aqui de teoria em quilos/toneladas - trato da justa medida, aquela que leva formação de massa - quadros é outra coisa e diga-se: não foge da nossa necessidade.

O filósofo Francis Bacon disse: ‘Saber é poder’ – e é sim! - Tanto é, que aqueles que acusam lideranças importantes deste país de ‘burros’, ‘analfabetos’, ou então, que ainda consideram o agricultor o ‘jeca tatu’. Ou na mais ousada negação do poder da sabedoria, chamam Paulo Freire de idiota por um lado, e por outro, militam no elitismo da estupidez para acabar com qualquer processo de educação popular que vise uma formação para consciência de classe – cite-se aqui, a mentalidade do governo federal sobre escolas, universidades e institutos federais. Se eles visam esterilizar, é porque veem resultado, o que por si só, tem que servir-nos de compreensão e convencimento. De ser os espaços de formação das entidades fundamentais para um novo ciclo de processos metodológicos, visando o fortalecimento de nossas lutas, a renovação de lideranças, reoxigenação dos processos, renovar de utopias e iluminar os dias que virão.

Findo este ano convicto do quanto aprendi nas andanças de centenas, milhares de quilômetros percorridos, e quanto ainda precisamos avançar. - Eu acredito, mas não quero e posso acreditar sozinho. - Que o ano novo nos coloque primeiro no compromisso de dizer o que queremos, não apenas para nós. E junto a este, quanto de energia, tempo e necessidade ofereceremos na construção daquela sociedade – mais humana e equitativa que desejamos e precisamos. Do contrário não haverá Natal, ao menos, não o dá justiça que almejamos e muito menos, aquele Natal do ‘menino Deus’ que vem ao mundo para enfrentar os poderosos!


Prof. Neuri Adilio Alves
Fonte: Publicado no Site Fetraf SC

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

TRABALHO DE BASE É UM REENCONTRAR O CAMINHO DE ORIGEM

Publicado na Página da Fetraf-SC - 03 de dezembro 2019


É preciso voltar... reencontrar o caminho de onde viemos. Ainda é tempo de rememorar nossos espíritos, visitar a pia de nosso batismo na luta, de beber nas palavras do poeta Thiago de Mello: ‘’Faz escuro, mas eu canto, porque a manhã vai chegar. Vem ver comigo, companheiro, a cor do mundo mudar. Vale a pena não dormir para esperar a cor do mundo mudar’’. - Urge-nos levantar: com olhos no mundo, no local, sem pontualidades dispersas e com transversalidades correlatas. É preciso entender que não há outra alternativa, é imprescindível reencontrar o caminho de nossas origens, guardado no tempo sob o nome de Trabalho de Base.

Faz-se necessário reencontrar o velho ‘corpo a corpo’, estender às mãos, olhar nos olhos, oferecer o ouvido, oportunizar a fala, queixas e as contradições – de outro modo, desapareceremos como silêncio, diluídos como categorias. É preciso reagrupar, promover um novo batismo de reinserção, nos reconverter ao caminho e identidade de classe trabalhadora, levantar das cinzas como uma Fênix subjugada pelo neoliberalismo, que ao nos individualizar, congelou-nos, imobilizando como energia da luta e organização. Novamente recorro ao poeta: ‘’Não importa que doa: é tempo de avançar de mão dada com quem vai no mesmo rumo... É tempo sobretudo de deixar de ser apenas a solitária vanguarda de nós mesmos. Se trata de ir ao encontro. Se trata de abrir o rumo. Os que virão, serão povo, e saber serão, lutando’’.

E porque deste apelo? – Porque assessorando a Fetraf Santa Catarina nos últimos anos, falar de organização e trabalho de base (para além da linda história) não é novidade. Fizemos pesquisa e diagnóstico na base para entender os desafios. Com os dados coletados passamos realizar atividades de formação, fomentamos processos de multiplicadores, planejamentos de ações em sindicatos, materiais de publicidade, curso para intervenções via diálogo, atividades de contato (corpo a corpo), momentos de troca de saberes com o mestre Ranulfo. Alguns resultados dizem onde e quem fez a experiência. O que reafirma a máxima: ‘A prática é o critério da verdade e a reflexão implica a ação’ – ou seja, embora no caminho, falta muito ainda. Principalmente, na compreensão da necessidade de livrar-se do burocratismo e comodismo que muitos dirigentes se prenderam. É preciso sair para encontrar a base, não esperar contribuições/dinheiro que não vão chegar se não associar o trabalhador.

Sempre que convidado para atividades de debate, reflexão, planejamento e proposição nos últimos anos, tenho por compromisso dizer que se não renovarmos, não só a mentalidade na linha de frente de parte do movimento sindical, extirpar vícios enraizado e aquele ‘profissionalismo’ de carreira incrustado nas entidades, veremos consolidada o que o filósofo Jean Baudrillard dizia: ‘’A imagem do homem sentado, contemplando num dia de greve geral sua tela de televisão vazia, constituirá no futuro uma das mais deprimentes imagens da antropologia de nosso século’’. – A não consolidação e naturalização desta realidade só é possível com um novo tempo de partida, de reencontro com a base de trabalhadores, oportunizando a participação, formação e reinserção na luta de classe – o sujeito de luta é o objeto da ação.

Mas não sair por sair, precisamos estudar a realidade, ler mais para nos inteirar, nos renovar, revigorar e ser capaz de admitir esta necessidade. Não se trata de revisionismo, e sim, de capacidade de recolocar-se no processo, ciente que em algum momento no caminho dos últimos anos nos perdemos. Que os trabalhadores tiveram suas vidas privatizadas, sua força de trabalho, sua hora de amar e seu direito de pensar como dissera Bertold Brecht. Reconquistar parte deste terreno perdido pelo avanço do capital, pela despolitização, diluição do sentido de classe exige esforço, tempo de reflexão e atitude para ações ousadas, sacrifícios, doação, compromisso e acima de tudo, humildade para reconhecer que certos limites não cabem na luta de classe – e aqui se necessário, abrir caminho para quem está disposto a assumir a linha de frente. Do contrário, não passaremos de multidões famintas e desorientadas em êxodo, massas despolitizadas, boiada sem rumo, praças vazias, meras pipetas do capital, matéria orgânica na diluição cósmica, memórias passageiras e vazias.

Um começo neste processo, passa pelo dirigente disposto a visitar referenciais como o roteiro de textos organizado pelo CEPIS e proposto no livro ‘Trabalho de Base’ compilados por Ranulfo Peloso para ‘Expressão Popular’ (na Fetraf tem exemplares a venda). Já trabalhei este roteiro em atividades de formação em muitos sindicatos e o referencio como bíblia de cabeceira de todo sindicalista comprometido, como instrumento importante de orientação para a organização e luta no movimento sindical. Não tenha medo de ler, pois um livro tem que ser machado a quebrar os gelos presentes em nós. Acima de tudo, é necessário rememorar que somos processo continuo de transformação e Karl Marx disse: ‘a prática é o único critério da verdade’. Ou seja, não há receita mágica para o trabalho de base, o melhor modo de fazer é fazendo – abra o livro, se encontre, se identifique, se sinta caminho e protagonismo.

E não esqueçamos: se Cuba que já fez uma revolução há mais de meio século segue fazendo formação sobre organização e trabalho de base, talvez isso nos sirva, senão de lição, como orientação. Do contrário, não é difícil acreditar no fim da história, do sujeito político e primazia da coisificação: eu, você, o mundo, reduzido a meras coisas.

Prof. Neuri Adilio Alves - Assessor de formação e elaboração na Fetraf-SC

terça-feira, 5 de março de 2019

A ARTE SERVE PARA IMPACTAR


Quando não basta o falar, escrever e desenhar, que ao menos a arte nos provoque a refletir. E que bom se o desfile temático da escola Gaviões da Fiel tenha sido ponto impactante nesta era gélida do sapiens pensante. Principalmente sobre aqueles fervorosos que dizem não assistir, frequentar, curtir espaços de profanação e que ao seu modo entendem como vilipêndio ao sagrado, pois em certa medida a escola faz um retrato da sociedade atual. Geralmente, a negação mais ampla é feita por aqueles que veem seus negócios da fé ameaçados, ou por aqueles que falta a luz da compreensão mais ampla. Esta, muitas vezes aprisionada por estúpidas pregações em espaços doutrinários por aqueles que fazem da mentira a arte do convencimento através do medo, fracassos da vida cotidiana, ignorância assumida ou circunstancial, e mesmo na/por fragilidade da fé de outrem – em parte, a alma do lucrativo negócio. 

Um dos horrores deste tempo é a sapiência aprisionada, roubada por coletores de dízimo e suas verdades deturpadas, tão presente no Brasil atual. Realidade desconcertante que destrói estruturas democráticas do Estado e divide classes de miseráveis e miserandos. Enquanto isso, ‘satanás’ imponente brinda champanhe no alto poder político, em altares com cofrinho de donativos e suas segmentadas centopeias bebem o sangue de cativos doutrinados como se fossem seus desiguais. E aí, ao sentirem-se ameaçados pela arte que os desnuda, reagem com o clichê da mera profanação - não é a verdade que dói, mas a resistência e ameaça que ela causa. Isso me faz lembrar de um ponto na história recente, quando o filósofo Nietzsche escandalizou o mundo cristão com o aforismo: 'Deus está morto' – e não era uma questão de petulância, era sim, provocação sobre o mundo real - ou na síntese do coloquial por aí: o filósofo 'lacrou' – mas a grande maioria não o entendeu ou preferiu não entender-lhes, pois seria mais fácil e lucrativo lhes acusar de um arrogante ateu em delírio! 

De igual modo, também o enredo ‘lacrou’ e restando dúvidas, substitua a imagem cênica do personagem ao solo (derrotado) por imagens deste Brasil real: uma vereadora fuzilada ainda sem justiça. Milhares de mulheres assassinadas, agredidas, violentadas diariamente; Negros, índios, homossexuais enxovalhados, exilados e mortos; Milhares de Marias, Josés e Jesus sem teto perambulam pelas ruas; Juízes em apologia pública a injustiças; Socialites, juristas e pequenos instruídos comemorando a morte de uma criança de 7 anos (sem importar-se com o vinde a mim as criancinhas – embora seu mantra ‘Deus acima de todos’) e aplausos ao Barrabás. Some-se a isso, a mentira como patrimônio de verdade aos que negam a justiça e o bem maior, em prol de promíscuos interesses pessoais, grupos, setores, mesmo sem explicação e compreensão a si mesmos - não é o fim, mas chegamos na barbárie! 

É este o mundo que Jesus defendeu e queria aos seus? Se não é, então ao invés de comoções midiáticas com a metáfora do derrotado é preciso ser capaz de defender o seu igual como grande preceito constante na máxima: 'no seu semelhante à minha imagem'. – Ou seja, atacar seu semelhante é atacar o seu ente sagrado e superior. Por fim, que ao menos o profano nos devolva a capacidade de refletir, nos impactar e libertar. Pois, se ao filósofo e ao enredo há um ente superior vitimado, é sinal que a sua imagem e semelhança neste mundo está doente - o bem não é este propalado bem maior e muito menos o mal a justa medida servida como bem no Brasil atual. 

Por Neuri Adilio Alves




segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

O MISTERIOSO DESTINO DE CADA UM

Publicado em 13/01/2019 (em sua página)

''Qual é o meu destino? Não sei. Tomei como lema que era do meu pai que o vivia:”quem não vive para servir, não serve para viver”. A Deus a última palavra.''

Cada um de nós tem a idade do universo que é de 13,7 bilhões de anos. Todos estávamos virtualmente juntos naquele pontozinho, menor que a cabeça de um alfinete, mas repleto de energia e de matéria. Ocorreu a grande explosão e gerou as enormes estrelas vermelhas dentro das quais se formaram todos os elementos físico-químicos que compõem todos os seres do universo e também o nosso. Somos filhos e filhas das estrelas e do pó cósmico. Somos também a porção da Terra viva que chegou a sentir, a pensar, a amar e a venerar. Por nós a Terra e o universo sentem que formam um grande Todo. E nós podemos desenvolver a consciência desse pertencimento.

Qual é o nosso lugar dentro desse Todo? Mais imediatamente, dentro do processo de evolução? Dentro da Mãe Terra? Dentro da história humana? Não nos é dado saber ainda. Talvez será a grande revelação quando fizermos a passagem alquímica deste para o outro lado da vida. Ai, espero, tudo fica claro e nos surpreenderemos porque todos somos umbilicalmente inter-relacionados, formando a imensa cadeia dos seres e a teia da vida. Cairemos, assim creio, nos braços de Deus-Pai–e-Mãe de infinita misericórdia para quem precisa dela por causa de suas maldades e um abraço amoroso eterno para os que se orientaram pelo bem e pelo amor. Depois de passarem pela clínica de Deus-misericórdia, os outros também virão.

Eu de criança de poucos meses estava condenado a morrer. Conta minha mãe e as tias sempre o repetiam, que eu tinha “o macaquinho”, expressão popular para anemia profunda. Tudo que ingeria, vomitava. Todos diziam em dialeto vêneto: ”poareto, va morir”: “pobrezinho, vai morrer”.

Minha mãe, desesperada e escondida de meu pai que não acreditava em benzimentos, foi à benzedeira, à velha Campanhola. Ela fez as suas rezas e lhe disse: “dê um banho com essas ervas; depois de fazer o pão no forno, espere até ficar morno e coloque seu filhinho lá dentro”. Foi o que fez minha mãe Regina. Sobre a pá de retirar o pão cozido, me colocou lá dentro. Deixou-me, aí por um bom tempo.

Eis que ocorreu uma transformação. Ao me retirar do forno, comecei a chorar, diziam, e a procurar logo o seio para sugar o leite materno. Depois, minha mãe, mastigava em sua boca as comidinhas mais fortes e me dava. Comecei a comer e a me fortalecer. Sobrevivi. Estou aqui oficialmente velho com 80 anos. Há aí algum destino? Só o Supremo o sabe.

Passei por vários riscos que poderiam ter custado minha vida: um avião DC-10 em chamas rumo a Nova York; um acidente de carro contra um cavalo morto na pista que me quebrou todo; um enorme prego que caiu na minha frente, quando estudava em Munique e poderia ter-me matado se tivesse caído sobre a minha cabeça; Nos Alpes, a queda num vale profundo coberto de neve e camponeses bávaros, me vendo com o hábito escuro, me afundando cada vez mais, me retiraram com uma corda. E outros.

Norberto Bobbio me concedeu o doutor honoris causa em política pela Universidade de Turim. Entendeu que a teologia da libertação dera uma contribuição importante ao afirmar a força histórica dos pobres. É insuficiente o assistencialismo clássico ou a mera solidariedade mantendo os pobres sempre dependentes. Eles podem ser sujeitos de sua libertação, quando conscientizados e organizados. Superamos o para os pobres, insistimos no caminhar com os pobres, sendo eles os protagonistas e quem puder e tiver esse carisma, viver como os pobres como tantos fizeram, como Dom Pedro Casaldáliga.

Lembro-me que comecei meu discurso de agradecimento ao título, concedido por essa notável figura que é Norberto Bobbio: “venho da pedra lascada, do fundo da história, quando mal e mal tínhamos meios para a sobrevivência. Meus avós italianos e minha família, desbravaram uma região desabitada e coberta de pinheirais, Concórdia nos confins de Santa Catarina. Eles tiveram que lutar para sobreviver. Muitos morreram por falta de médicos. Depois fui subindo na escala da evolução: os 11 irmãos estudaram, fizeram a universidade, eu pude me formar na Alemanha. Agora estou aqui nessa famosa universidade”.

A pedido de Bobbio, fiz um resumo dos propósitos da Teologia da Libertação que tem como eixo central, a opção pelos pobres contra a pobreza e a favor da justiça social. Dei muitos cursos por esse mundo afora, escrevi bastante, enxuguei lágrimas e mantive forte esperança de militantes que se frustravam com os rumos de nosso país.

Qual é o meu destino? Não sei. Tomei como lema que era do meu pai que o vivia:”quem não vive para servir, não serve para viver”. A Deus a última palavra.

Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escreveu por seus 80 anos: “Reflexões de um velho teólogo e pensador”, Vozes 2019.

terça-feira, 16 de outubro de 2018

ERA DIA DOS PROFESSORES

Iniciei aquela manhã pensando, que para além de uma data lembrada em contraditórias gentilezas por alunos e saudações a tantos professores que não merecem ser lembrados, que a luz da razão nos salve desta heresia temporal. Mais que um dia de pequenos ufanismos e frágeis nostalgias, porque não um tempo de reflexão pela realidade a qual estamos inseridos. 

Mas, sem esquecer do merecido afago aos mestres que fazem diferença no modo como trabalham, estudam, se renovam continuamente, fazendo desta opção uma paixão, algo que vai além de mera profissão remuneratória com estabilidade meritocrata/correlata e planos pedagógicos pré-cambriano. 

Outro afago aos educadores populares, que fazem a diferença neste mundo de aparências por titulações, institucionalidades, posturas imorais e decadência no modo de ver-julgar-agir-transformar. Que todo academicismo improdutivo seja devorado pelo mofo e pelas traças da incompatibilidade com o real. 

E que a verdadeira formação possa levantar-se das cinzas onde jazia vitimada pelos 'Latos' e 'Strictos Sensus', quando tantos achavam/acreditam que as havia qualificado, mas que narciso quebrou o espelho ficando sem livro para ler e legiões de pseudos instruídos sem olhos para ver. Como uma autocritica por parte de meus iguais, só por hoje não quero levantar a cabeça. Sim, as Escolas estão 'cheias' de alunos perigosos, mas de professores também. Axé aos verdadeiros mestres - Sigamos!!!

Neuri Adilio Alves