quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Enfrentar a lógica perversa do modelo de produção



Um dos urgentes desafios planetário é enfrentar a lógica perversa da exclusão e destruição imposta pelo produtivismo desenfreado no campo. Que pelo caráter irresponsável, vilipendiador da vida planetária exige mudança. E mudar, não é mera necessidade de povos, culturas e nações, mas condição ‘sine qua non’ para nossa permanecia territorial, social e cultural, na ‘casa mãe’ (Planeta Terra). 

Ou seja, trata-se de desafio central colocado aos brasileiros também, mais que nunca neste momento, com um governo que presa pela banalização do cuidado responsável aos recursos naturais. - Isso deveria provocar questionamentos em cada cidadão, um interrogar-se do tipo: O que tenho feito? E embora transpareça uma pergunta aberta a processar respostas é preciso ser feita, ou então, basta assumir que estamos longe de apresentar ações objetivas para enfrentar a situação colocada. 

De outro modo, temos ações concretas provindas de muitos lugares. Do movimento global de adolescentes puxado pela sueca Greta E. Thunberg lutando pelo direito a ter um futuro melhor no planeta, até as pautas locais de entidades em diversos continentes. Pautas que vão, do encontro para repensar a lógica da produção de alimentos, a exploração responsáveis dos recursos naturais. Um exemplo destas iniciativas vem da ONG Belga Wervel (um movimento pela agricultura sustentável) - Sediada em Bruxelas, além da luta em defesa da agricultura na Bélgica, encampa a causa em defesa do Bioma Cerrado, uma savana pouca conhecida na Europa e parcamente cuidada no Brasil).

Como organização que trabalha para uma agricultura socialmente responsável e economicamente justa, em 2019 Wervel apresentou um instigante memorando sobre uso da terra, que apesar de ser uma ferramenta propositiva para enfrentar a realidade no pequeno país europeu, muitos pontos se encaixam na realidade brasileira: da revolução verde, do AgroPop/PopAgro, governo dos agrotóxicos, destruidor de políticas públicas para agricultura sustentável e promotor da lógica produtivista irresponsável. 

Por fim, ou enfrentamos a lógica colocada, ou o tempo findara tristemente como um fim de feira – com o dinheiro do financeirismo acumulado irresponsavelmente (sem valor ou sentido de compra), num grande armagedon da insensatez. Que as boas ideias nos sirvam para alguma coisa, senão para mudar nosso agir, ao menos para o tardio ranger de dentes por arrependimento. Sirvamo-nos a seguir das proposições da Wervel!







- Segue o documento:


MEMORANDO DE WERVEL PARA UMA AGRICULTURA COM FUTURO

1. O solo: um meio básico de produção

- Proteção das terras agrícolas contra a especulação fundiária e a expansão desordenada para fins não agrícolas. Implementação efetiva do princípio de adensamento no planejamento urbano.

- Fixação do teto para o preço de terras agrícolas, tanto para venda quanto para arrendamento.

- Um banco de terras baseado no modelo francês (“Sociétés d'Aménagement Foncier et d'Etablissement Rural, SAFER”) poderia ser um instrumento para uma política fundiária eficaz, limitando o valor comercial das terras agrícolas ao seu valor agrícola (intrínseco).

- O aumento da pensão mínima legal para um nível aceitável de bem-estar poderia evitar que esta medida seja conflitante com os interesses dos agricultores que estão se aposentando e não têm um sucessor.

A especulação fundiária em geral reduz os meios de produção comuns a objeto para obtenção de lucro privado e deve ser proibida. A venda ou alienação de terras agrícolas pelo próprio governo, por exemplo, a venda de propriedades do OCMW [Centros públicos de assistência social] a particulares, também é inaceitável.

2. Agricultura: uma profissão com futuro

- Distribuição justa das margens dentro dos diferentes elos da cadeia alimentar, com atenção especial para os preços e rendimentos do agricultor e do consumidor. Autoridade efetiva das consultas dentro da cadeia sobre esse tema, com base nas observações feitas pelo observatório dos preços.

- O direito das organizações de produtores de negociar acordos setoriais sobre preços e volumes de produtos agrícolas com o comércio, a indústria e a distribuição.

3. Agricultura moderna baseada em agroecologia

- Desenvolver boas práticas em agroecologia em combinação com a agricultura orgânica, em função das regiões agrícolas e das culturas agrícolas. Reforço do papel da pesquisa e desenvolvimento do governo nessa área.

- Visar a pecuária vinculada a terra, em função da área forrageira disponível. Visar empreendimentos agrícolas mistos ou de cooperações complementares entre empresas de lavoura e empresas pecuárias.

- Investir no cultivo de espécies forrageiras e alimentícias ricas em proteínas, bem como em espécies com múltiplas aplicações como o cânhamo.

- Desenvolver e divulgar técnicas, culturas e métodos agrícolas, incluindo sistemas agro-florestais, a fim de elevar progressivamente o teor de húmus e a fixação de carbono no solo.

- Integração da agroecologia com a gestão da água e com a preservação e aumento da biodiversidade.

- Restauração e preservação do solo nas suas funções de organismo purificador, de reservatório de águas subterrâneas e de tampão no escoamento de águas superficiais.

- Restauração e preservação do solo como suporte e alimento para os organismos que vivem no subsolo e acima do solo, na maior coesão (simbiótica) e diversidade possíveis.

4. Alimentos saudáveis e acessíveis

- Funcionamento eficiente e transparente da Agência Alimentar da Bélgica. Aumentar o número de inspeções nas empresas que apresentam os maiores riscos. Ênfase na orientação e não na penalização, para empresas e cooperativas menores.

- Buscar um bom equilíbrio na alimentação, utilizando mais proteínas vegetais e menos proteínas animais. Menos publicidade para e menos uso de açúcares e gorduras. O menor número possível de produtos alimentares refinados. Em cozinhas de serviços públicos, escolas e empresas, preferência para produtos locais e da estação, provenientes de propriedades agrícolas que aplicam práticas sustentáveis.

- Limitação dos preços dos alimentos básicos, aplicando a redução nas maiores margens de lucro da cadeia de comercialização do agricultor até o consumidor.

5. Apoio à agricultura local, visando a soberania alimentar

- Apoio às cadeias curtas, reconhecimento do papel do agricultor na transformação e comercialização de alimentos, como parceiro igualitário ao lado da agroindústria e da distribuição atacadista.

- Desenvolvimento de zonas ou cinturões em torno das cidades, onde os alimentos são cultivados visando o abastecimento alimentar dessas cidades.

- Criação de mercados atacadistas regionais e intermunicipais, abastecidos por produtores locais a preços que cubram os custos.

Afinal, no atual sistema de mercado, os leilões aplicam o princípio da ‘oferta e procura’, enquanto o fornecimento pelos mercados atacadistas à preços de equilíbrio respeitam o interesse do produtor. A condição básica para isso é que seja aplicado o princípio da regulação da oferta (controle de produção).


6. Reforma profunda da PAC [Política Agrícola Comum da União Europeia]

- Proteção da produção agrícola interna baseada em um modelo agrícola e alimentar saudável, sustentável e socialmente justo. Exclusão dos acordos de comércio internacional que não cumpram estes requisitos. Nenhum comércio sem normas equivalentes ou sem base em necessidades reais.

Em termos concretos, isto significa que o comércio só pode ser considerado ‘justo’ se não houver substituição devido a uma diferença nos custos de produção (por exemplo, mão-de-obra mal remunerada, admissão de agrotóxicos nocivos no país importador, ...) ou devido a apoio do poder público (por exemplo, apoio a excedentes de mercado ou apoio à produção). Os custos ecológicos também devem ser levados em conta nos custos de transporte.

O comércio em prol do desenvolvimento não pode ser um fim em si mesmo. Alternativamente, poderia ser desenvolvido em conjunto um intercâmbio internacional e assistência ao investimento em tecnologia, em conexão com o desenvolvimento de cooperativas de produção agroecológica de alimentos.

- Regulação dos mercados dos principais produtos agrícolas com base em quotas fundamentadas na demanda interna, de acordo com a especificidade de cada país e de cada região.

- O sistema de prêmios ao rendimento (auxílio por hectare) deve ser mais equilibrado e, sobretudo, mais justo. Incorporar critérios como atividade agrícola e emprego reais, bem como um impacto positivo adicional no nível dos prêmios pela prestação de serviços à sociedade (por exemplo, medidas em benefício da biodiversidade e da fixação do carbono). Discriminação positiva (concessão de prêmios mais elevados) de pequenas empresas e das várias formas de cooperação.

- Garantir rendimentos justos aos agricultores. Para controlar a produção e a oferta, visando preços agrícolas estáveis e suficientes, também deve ser possível lançar mão de garantia de preço mínimo e de armazéns pública.


Wervel, Bruxelas.


Prof. Neuri A. Alves
Assessor de Formação e Elaboração na Fetraf Santa Catarina
Membro Honorário e Voluntário da entidade no Brasil para causa do Cerrado e Agricultura Sustentável