Tiradentes e a atualidade da Questão Nacional
Liberdade – essa palavra,
que o sonho humano alimenta:
que não há ninguém que explique,
e ninguém que não entenda!
Cecília Meireles, em O Romanceiro da Inconfidência
A atualidade de Joaquim José da
Silva Xavier deve ser celebrada no 218º aniversário de sua imolação como
símbolo de um movimento de autonomia nacional que ainda hoje está por
se completar na formação social brasileira. A Conjuração Mineira foi um
daqueles sonhos a que os homens se entregam por intuírem o caminho da
História antes de a História lhes oferecer as condições determinantes
para a materialização do sonho. Assim ocorreu com a Comuna de Paris, em
1871, definida por Karl Marx como uma tentativa de tomar o céu de
assalto. Como já tive oportunidade de observar, também aos
revolucionários de Vila Rica a História não recusou a razão, mas lhes
negou a oportunidade.
O projeto político de conquistar a Independência e proclamar a República
do Brasil foi muito além da troça que certos centros de pensamento
querem lhe atribuir, apontando os conjurados como mais interessados em
não pagar impostos à Coroa portuguesa do que em fundar uma nação.
Joaquim José da Silva Xavier foi líder visionário, não um fantoche
manipulado pela elite de Vila Rica, que, afinal, se era elite
interessada na Independência do Brasil, constituía o povo da época. Como
na memorável luta contra os holandeses no Nordeste, no século anterior,
em Minas também se reuniam pela causa nacional os reinóis, os mazombos,
os mestiços. Todos foram punidos, uns com a morte na cadeia, outros com
o degredo e Tiradentes com a forca. Os banidos para a África e que lá
morreram só voltariam à pátria por ordem do presidente Getúlio Vargas,
que em 1942 mandou buscar um a um os heróis falecidos no desterro.
Inspirados por versos de Virgílio [Libertas quae sera tamen],
reivindicavam liberdade ainda que tarde, e tinham como fonte os
filósofos do Século das Luzes que refletiam a crise do Absolutismo e do
Colonialismo no século XVIII e forjavam novas idéias e poliam os homens
que iriam lutar e morrer por elas. Os conjurados de Minas Gerais miravam
as nuvens que a Ilustração espalhara no céu da democracia, do que foram
exemplos mais eloqüentes a Independência dos Estados Unidos da América,
que nasciam como república, e a gloriosa Revolução Francesa. Nações em
formação no Novo Mundo, como a americana e a brasileira, e as Colômbias
de Simon Bolívar, já eram grandes demais para caber no apertado gibão da
Europa feudal em transição para o capitalismo.
O sonho dos conjurados era implantar fábricas de tecidos e siderurgias
na colônia que queriam tornar país. Tiradentes desenvolveu sua
consciência política patrulhando o Caminho Novo, que ligava Minas ao
Rio, por onde via passar as riquezas das jazidas auríferas do Brasil
desviadas para Portugal, na quota de 100 arrobas de ouro por ano,
aumentada em 1762 para oito mil quilos a título de dívida fiscal
atrasada. O esbulho levava o nome de derrama.
Preterido nas promoções da Cavalaria, nunca tendo passado do posto de
alferes, estabeleceu-se no Rio, levando a vida como qualquer do povo,
trabalhando de mascate, tropeiro, boticário e dentista. Não era um homem
sem luzes: órfão, sem nunca ter feito estudos regulares, projetou a
canalização dos rios Andaraí e Maracanã para melhorar o abastecimento de
água da sede do vice-reino. Há notícias de que admirava o progresso
industrial da Inglaterra, guardava um exemplar da Constituição dos
Estados Unidos e citava a figura do presidente da República em oposição a
um rei distante.
Depois de enforcado, em 21 de abril de 1792, no Largo de Lampadosa,
atual Praça de Tiradentes, no Rio de Janeiro, teve os restos mortais
espalhados na estrada que patrulhara e onde tecera seu sonho de
Independência política, econômica e cultural do Brasil. Seus algozes o
queriam maldito e esquecido, mas cada parte de seu corpo esquartejado
parece ter servido de semente para a árvore da liberdade que germinou no
Brasil e ornamentou os versos de Cecília Meireles. O povo do Rio de
Janeiro logo mandou celebrar missas na intenção da alma do herói, e,
pelo repúdio público, fez com que o traidor Joaquim Silvério dos Reis
mudasse o nome para Montenegro e o domicílio para o Maranhão.
A atualidade de Tiradentes é a mesma da Questão Nacional que ele
antecipou antes da expressão. Seu vulto histórico nos repõe a
importância e urgência de um projeto de autonomia nacional com vistas à
consolidação de um País forte, soberano, próspero, que produza e
distribua riquezas suficientes para assegurar o bem-estar material e
espiritual desta civilização única que erguemos nos tópicos.
Desde a infância da Nação esta tem sido uma empreitada difícil. A mesma
rainha louca Maria I que mandou esquartejar Tiradentes, promulgou um
alvará proibindo fábricas no Brasil e mandou destruir até os teares em
que as mulheres fiavam a roupa dos filhos. Quase um século depois, os
próceres da República, empenhados em industrializar o Brasil, eram
dissuadidos pela casa bancária inglesa dos Rotschild, que nos
recomendava exportar café e deles comprar linha, agulhas e botões. Foi
na construção da identidade nacional que a República resgatou o heroísmo
de Tiradentes.
As lutas do passado continuam, por outros meios e caminhos, no presente.
Os embates que o Brasil trava contra o protecionismo das grandes
potências, as pressões para a liberalização comercial que nos engoliria
como país produtor de riquezas, e tantas outras ofensivas, fortalecem a
convicção de que a Questão Nacional está viva, e aponta para a
necessidade de mantermos a soberania nacional como atributo essencial do
Estado.
Nos dias de hoje, sofremos um tipo novo de intervenção que nos limita a
autonomia de dispormos de nosso território e recursos naturais em
benefício do desenvolvimento e do bem-estar do povo. A abertura de
estradas, construção de hidrelétricas, vivificação das zonas de
fronteira, modernização de leis para ampliação da agricultura e
democratização da propriedade da terra são boicotadas por governos
estrangeiros e suas cabeças de ponte chamadas ONGs do meio ambiente. O
exemplo histórico de Tiradentes é um alento para continuarmos a luta
pela autonomia de um projeto nacional e soberania do Brasil.
*Aldo Rebelo é jornalista, escritor e deputado federal (PCdoB-SP).
Recebeu em 10 de novembro de 2003 a Medalha Tiradentes, da Assembléia
Legislativa do Estado do Rio de Janeiro.
Aldo Rebelo*
Fonte:http://www.vermelho.org.br/noticia