1962: a vitória dos princípios
De
pé, João Amazonas comemora com outros dirigentes os 40 anos do partido
em 1962, logo após a cisão que marcou a história do comunismo no Brasil.
“Recordar
o 18 de fevereiro de 1962 é, do ponto de vista revolucionário, dele
extrair ensinamentos cuja permanência possa iluminar os caminhos da
atualidade”. Assim o jornalista Luiz Manfredini* define e data,
comemorada nesta quinta-feira, em artigo inédito que o Partido Vivo
publica a seguir.
“(...) um partido que mantém sua identidade comunista,
seu caráter de classe de partido dos trabalhadores,
portador de uma base teórica sólida, o socialismo científico...”.
Tese consagrada no XII Congresso do PCdoB (dezembro, 2009)
A reorganização do Partido Comunista do Brasil, em fevereiro de 1962, é
dos fatos mais marcantes da história do PCdoB, talvez o mais
significativo depois da sua fundação, em 25 de março de 1922. João
Amazonas, que liderou a reorganização e tornou-se o principal
construtor e ideólogo do partido, diria, 25 anos depois, que a “data
assinalou a defesa da antiga organização revolucionária do proletariado
que lutava pelo socialismo, ameaçada de liquidação pelos oportunistas e
registrava, ao mesmo tempo, o início de uma nova etapa na vida do
Partido”.
Algumas dezenas – não muitas – de quadros e militantes comunistas de
São Paulo, Guanabara (Rio de Janeiro), Espírito Santo e Rio Grande do
Sul instalaram, em 18 de fevereiro de 1962, em São Paulo, a V
Conferência Nacional Extraordinária do PCdoB. A dimensão do encontro
está em que marcou a completa ruptura do grupo de comunistas liderado,
entre outros, por João Amazonas, Pedro Pomar, Maurício Grabois, Carlos
Danieli, Ângelo Arroyo e Lincoln Oest, com a ala majoritária
capitaneada por Luiz Carlos Prestes. No ano anterior, a corrente
prestista tomara a decisão – exclusiva de um congresso – de alterar o
nome do partido (de Partido Comunista do Brasil para Partido Comunista
Brasileiro) e subtrair de seu programa questões essenciais de modo a
facilitar a legalização e o registro na Justiça Eleitoral.
A conferência aprovou um manifesto-programa que traçava nova linha política para o partido, decidiu reeditar o jornal A Classe Operária,
antigo órgão central que tivera sua publicação suspensa, e elegeu um
novo Comitê Central. Estava coroado um longo, muitas vezes penoso
processo de luta ideológica iniciado cinco anos antes, a partir das
repercussões do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética
(PCUS) e da ascensão de Nikita Kruchov à liderança da URSS.
A pretexto de criticar o culto à personalidade de J. Stálin (que, de
fato, houve), Kruchov e seu grupo formularam um corpo de ideias avesso
ao essencial do marxismo-leninismo, um programa de fundo reformista e
conciliador que, entre outras teses, propugnava, em plena guerra fria,
pela amistosa cooperação com os Estados Unidos (em óbvia deformação do
conceito leninista de coexistência pacífica entre diferentes regimes
sociais), pela transição sem rupturas do capitalismo ao socialismo e
pela descaracterização da natureza de classe do partido revolucionário
e do estado socialista. Em outras palavras: disseminava ilusões e, com
isso, deixava o proletariado e seus aliados de mãos atadas em sua luta
libertadora. O chamado kruchovismo alastrou-se pelo movimento comunista
mundial, incluindo o Partido Comunista do Brasil, então hegemonizado
por Luiz Carlos Prestes.
Nova orientação
Em março de 1958, pouco mais de seis meses após o XX Congresso do PCUS,
o Comitê Central do PCB (sigla do Partido Comunista do Brasil desde sua
fundação), sob hegemonia prestista, aprovou nova orientação política,
que ficou conhecida como a Declaração de Março de 1958. Ali estavam
registradas as ideias centrais que alimentariam intensa e extensa luta
ideológica nas fileiras partidárias e provocariam a reorganização do
partido quatro anos depois. Uma “linha oportunista de direita”,
escreveria Maurício Grabois num artigo que se tornou emblemático: Duas concepções, duas orientações políticas.
Segundo Grabois, a Declaração idealizava a burguesia, julgando-a capaz
de defender consequentemente os interesses da Nação e, desse modo,
subordinava a ela o proletariado e seus aliados na perspectiva de uma
revolução essencialmente nacional, em detrimento de objetivos sociais e
democráticos e de uma perspectiva verdadeiramente revolucionária rumo
ao socialismo.
Para Grabois, a Declaração considerava a democracia como inerente ao
capitalismo e, a bordo de uma “tática gradualista, evolucionista”,
imaginava a chegada ao poder das forças revolucionárias “através da
acumulação de reformas profundas e consequentes na estrutura econômica
e nas instituições políticas”. Tais concepções, garantia o histórico
dirigente, levavam à “negação da luta revolucionária”.
O V Congresso, em 1960, não obstante a enxurrada de críticas
proveniente das bases e das direções intermediárias do partido, que
condenavam a inclinação reformista, ratificou a Declaração de Março de
1958. E mais: excluiu do Comitê Central 12 dos seus 25 membros efetivos
e vários suplentes, todos críticos da nova orientação. Mas o conflito
interno entre reformistas e revolucionários atingiu seu ponto de
fervura no ano seguinte. Na edição de 11 de agosto de 1961 do semanário
Novos Rumos, são publicados o programa e os estatutos do partido, agora
denominado Partido Comunista Brasileiro, mantendo a sigla história do
Partido Comunista do Brasil, PCB. A reação dos revolucionários foi
salvar o histórico partido de 1922, herdeiro do marxismo-leninismo,
fiel ao proletariado e ao socialismo. A reorganização ocorreria exatos
seis meses depois, com a realização da V Conferência Nacional
Extraordinária do PCB. A sigla PCdoB surgiria um pouco mais tarde para
melhor vincar as diferenças com o partido reformista.
Memória e identidade
A evocação da data – não só desta, mas de outras datas emblemáticas da
trajetória do partido – não se prende a alguma obrigação protocolar ou
a um apego ou lembrança saudosa do passado, tampouco à ruminação de
mágoas eventuais, mas à necessidade do permanente, sistemático e
irrenunciável fortalecimento da identidade comunista. Identidade sem a
qual a coesão interna se corrói e o rumo se desvanece, e para a qual
não basta a adesão coletiva a um projeto político em curso (embora isso
seja decisivo). Identidade que se alimenta e se robustece com o que a
memória é capaz de fornecer, a memória que repassa o percurso do
pensamento e da ação partidários, suas vitórias e derrotas e as lições
que oferecem, o colossal patrimônio simbólico de um partido, como o
PCdoB, cuja existência influente na história política do Brasil cobre
quase todo o século XX.
Recordar o 18 de fevereiro de 1962 é, do ponto de vista revolucionário,
dele extrair ensinamentos cuja permanência possa iluminar os caminhos
da atualidade. Em fevereiro de 1987, ao lembrar os 25 anos da
reorganização, João Amazonas indagava: “Por que o partido venceu?”. Ele
próprio respondia:
“Antes de tudo pela justeza de sua orientação política e pela
fidelidade ao marxismo-leninismo, (...) por saber interpretar, em
diferentes momentos, o sentimento das grandes massas populares,
traduzir em termos políticos o que pensava a maioria do povo, (...)
porque esteve sempre em ação, buscando o contato com as massas e com as
diversas correntes políticas, visando a luta e a mobilização popular,
(...) porque pôs em prática os ensinamentos leninistas de que na luta
concreta é necessário ter sempre um aliado de massas, (...) por
compreender que outras forças revolucionárias poderiam emergir de
organizações não-comunistas, atraídas e somadas ao partido da classe
operária (...) e o partido venceu (...) [também] por haver contado com
o apoio do movimento comunista internacional (..)”.
Princípios, sempre
Da mesma forma que em 1962, 30 anos depois o partido também navegou sob
outra tempestade, a da derrota socialista no Leste europeu, do fim da
União Soviética e da posterior ofensiva do capital em todo o mundo. Não
mudou de nome, cor e símbolos, não renunciou aos princípios, não
capitulou. Ao contrário, realizou – ou melhor, iniciou – ampla,
profunda e corajosa reflexão crítica sobre os erros e acertos das
experiências socialistas pioneiras do século XX. Tudo para requalificar
o projeto socialista, não para renegá-lo.
A contemporaneidade coloca o partido diante de novas circunstâncias do
desenvolvimento do capitalismo, da revolução, da construção socialista
e da permanente (e dialética) atualização do marxismo-leninismo. Há
sendas novas a considerar na trajetória transformadora dos
trabalhadores e do povo.
Recordo-me aqui – e reproduzo – trecho da minha intervenção no recente XII Congresso do Partido:
“O informe do camarada Renato Rabelo alentadoramente nos indica que o
Partido enfrentará os desafios da luta pelo socialismo no Brasil
consciente dos riscos de uma caminhada singular, mas também – e,
sobretudo – de suas potencialidades revolucionárias. E disposto a
fazê-lo como partido comunista, marxista-leninista, revolucionário,
formulador e implementador de um programa político ajustado ao objetivo
estrutural e estratégico da classe operária e dos trabalhadores do
Brasil, ou seja, o socialismo científico com fisionomia brasileira”.
E concluía:
“Assim, não nos perderemos no lusco-fusco das sombras e luzes – mais
sombras que luzes que marcam – nas proféticas palavras de João Amazonas
– os primeiros tempos do século presente”.
Como na corajosa luta de reorganização partidária iniciada em 18 de fevereiro de 1962.
*Luiz Manfredini é jornalista e escritor, autor de As moças de Minas, representante da Fundação Maurício Grabois no Paraná e membro da Comissão Política do PCdoB no Estado.
fonte: http://www.pcdob.org.b