A professora de antropologia Lilia
Schwarcz faz uma comparação entre as trajetórias de Luiz Gama e do
escritor Lima Barreto, que também superou adversidades que pareciam
intransponíveis, para se transformar num dos maiores escritores
brasileiros. “É duro não ser branco no Brasil. A capacidade mental dos
negros é discutida a priori e a dos brancos a posteriori”, disse Lima
Barreto dando uma definição clara do racismo brasileiro.
Como explica Schwarcz Gama “escancarou faces da discriminação” e usou de
todas as armas de que dispunha para libertar escravos, como advogado,
jornalista e escritor. Ambos se afirmaram como negros e denunciaram as
mazelas do racismo.
Ela adverte ser muito difícil biografar Luiz Gama pela carência de
fontes. O principal documento para sua contar a sua vida foi uma carta
que escreveu para o amigo Lúcio de Mendonça, que, diz o seu biógrafo
Luiz Carlos Santos, “embora seja, em última instância, uma carta de um
amigo para outro, ganhou dimensão de epopéia por ter sido escrita dois
anos antes da morte de Gama e oito antes da abolição, e por relatar
fatos que só o autor poderia constatar.”
Polêmicas a parte, os dois livros trazem à tona a importância desse
homem que dedicou seus 52 anos de vida a causa da liberdade, da
igualdade e da fraternidade. Venceu o racismo, a escravidão, a
perseguição política e tornou-se “o negro mais importante do século
XIX”, nas palavras de Miguel Reale Júnior.
Os livros
Recentemente foram lançados dois livros sobre a vida deste lutador. O
Advogado dos Escravos: Luiz Gama, de Nelson Câmara, apresenta petições
de Gama para libertação dos negros com base nas leis existentes contra o
tráfico de escravos e a luta incessante para que o maior número
possível de escravos conseguisse juntar dinheiro para comprar sua carta
de alforria, por mais paradoxal que possa parecer o escravo comprar a
sua liberdade.
O livro “traz o travo amargo da memória de nossa terra injusta, mas ao
mesmo tempo reconforta pelo exemplo edificante do biografado, cujas
petições podem ser lidas para auferir ânimo na luta contra todas as
injustiças que ainda nos assolam”, afirma Reale Júnior.
O livro Luiz Gama, de Luiz Carlos Santos, valoriza a trajetória do
“precursor do Abolicionismo” à sua atuação como abolicionista e
intelectual importante para a formação do pensamento libertário e de
lutas dos movimentos negros futuros. “Enxergando além de seu tempo, Gama
não separou o social do racial e combateu tanto a escravidão quanto a
monarquia”, afirma Santos, como “defensor dos ideais republicanos, não
os separava de sua obstinada luta contra escravatura”, diz.
Nelson Câmara explicita que “suas intervenções nos encontros políticos
sempre procuravam articular a luta pela emancipação política do Brasil e
a imediata abolição do trabalho escravo”. Luiz Gama foi voz incessante
“pelo fim imediato da escravidão e da própria monarquia, sem nenhuma
concessão de prazo para a propalada transição do trabalho servil para o
trabalho livre”, conclui Santos.
A vida
Nascido em 21 de junho de 1830, Luiz Gonzaga Pinto da Gama era filho da
revolucionária ex-escrava Luiza Mahin e de um fidalgo português. Sua Mãe
participou da Revolta dos Malês em 1835 e da Sabinada em 1937,
movimentos importantes de insurreição contra a escravidão, na Bahia.
Luiza Mahin “era revolucionária natural, sempre com o objetivo de
libertar sua raça dos grilhões da escravidão”, acentua Câmara e
complementa “foi um destacado elemento de conspiração entre os negros
oprimidos. Sua casa na Bahia tornou-se um dos fortes redutos de chefes
de chefes da revolta de 1835. Ninguém sabe que fim levou e seu nome
permaneceu na história e na lenda como um grande símbolo do valor da
mulher negra no Brasil.”
Como advogado, sem diploma, Gama libertou mais de 500 escravos,
gratuitamente. Também foi um “jornalista nato, de grandes recursos
intelectuais, pena vibrante, estilo combativo e satírico, destemido,
sempre fiel ao fato e à notícia como convém ao verdadeiro profissional
de imprensa”, diz Câmara, “mas sem deixar de ministrar sua opinião
política e filosófica”, explica. O advogado utilizava como expediente
publicar anúncios em jornais de seu trabalho para quem desejasse ser
livre e não tivesse como pagar por isso.
Como poeta, Gama deixou em suas Primeiras Trovas Burlescas poesias com
temas sociais e de maneira irônica mostrava as mazelas dos poderosos da
época. No poema Quem Sou Eu? A veia do advogado falou mais alto: “Não
tolero o magistrado,/Que do bico descuidado,/Vende a lei, trai a
justiça/- Faz a todos injustiça -/Com rigor deprime o pobre,/Presta
abrigo ao rico, ao nobre,/E só acha horrendo crime/No mendigo, que
deprime.”
Paulo Fanchetti afirma que “a obra poética de Luiz Gama é pequena, e o
que há nela de melhor são os poemas que satirizam os costumes, as modas
e, principalmente, os vícios de classe”.
Vendido como escravo pelo próprio pai para pagar dívida de jogo aos 10
anos de idade, Luiz Gama resistiu e foi fundo na sua vontade de viver e
derrotar o que submetia a si e à sua classe, defendendo a libertação dos
escravos e a República como possibilidades de superação da tragédia do
escravismo e do atraso do Império.
Aos 17 conseguiu libertar-se, fugindo da escravidão e alfabetizando-se
para tonar-se voz fundamental na história dos negros brasileiros por sua
emancipação social e política. Ele “usava a imprensa para pugnar pela
liberdade incondicional, denunciava a escravidão como fator de
degradação do ser humano e da sociedade”, acentua Câmara para mostrar o
lado jornalista do homem que era a própria encarnação da luta
abolicionista no país.
O homem
Quando quis ser bacharel pela Faculdade Direito, “a mocidade
estudantil recusou seu ingresso pela condição de negro em plena
escravidão”, conta Nelson Câmara. Mas isso não abateu o jovem
ex-escravo, que conquistou o direito de advogar, mesmo sem diploma. “Não
possuía pergaminhos, porque a inteligência repele os diplomas como Deus
repele a escravidão”, escreveu Gama no artigo intitulado Pela Última
Vez, em 1869, após ter sido demitido por motivação política de cargo
público.
“A polêmica funcionou como ótima propaganda antiescravista e em favor da
República. Luiz Gama afirmava que sua causa era a liberdade dos
escravos, e que o governo cometera um ato arbitrário ao demiti-lo, pois
sua atuação era inteiramente legal, baseada nas lei vigentes”, explica
Câmara.
O “advogado dos escravos” soube usar sua demissão para atrair a atenção
para a luta por igualdade racial. Gama “transformou-se na figura central
da luta contra a escravidão”, afirma Santos. “Amo o pobre, deixo o
rico”, esse verso dele ilustra bem eu pensamento a respeito da luta
travada no império contra a escravidão. “
Para o coração não há códigos: e se a piedade humana e a caridade cristã
se devem enclausurar no peito de cada um, sem se manifestar por atos,
em verdade vos digo aqui, afrontando a lei, que todo escravo que
assassina o seu senhor pratica um ato de legítima defesa”, disse Gama
num auto de defesa de um escravo.
“Luiz Gama foi personagem do século XIX, que viveu em um dos maiores
centros escravocratas do país, a então província de São Paulo, em pleno
desenvolvimento da riqueza do café”, diz Câmara. Mesmo assim “tornou-se
símbolo nacional de resistência negra ao escravismo, de liderança
libertária, de democrática luta pela abolição e o fim da Monarquia. Luta
nos campos político, jornalístico e jurídico, no enfretamento direto à
sociedade dominante”, conclui.
A luta
Também se filiou ao Partido Liberal Republicano em São Paulo e levou
sua luta aos tribunais, às redações de jornais e à literatura. Notam-se
as dificuldades que esse homem enfrentou em sua vida e as asperezas que
o aguardavam. A vida não apresentava facilidades para “quem advogava em
favor dos desvalidos contra o peso dos interesses econômicos e contra o
preconceito de muitos juízes formados na mentalidade escravagista.”
Sendo que Gama foi o principal divisor de águas do partido em que era
“mantida uma luta surda entre os radicais abolicionistas e conservadores
escravocratas no seio do Partido Republicano”, diz Câmara. Gama foi o
principal divisor de águas do partido em que era “mantida uma luta surda
entre os radicais abolicionistas e conservadores escravocratas no seio
do Partido Republicano”, diz Câmara.
Era uma luta inconciliável mesmo porque, para Luiz Gama - como disse ao
tomar conhecimento do linchamento de quatro negros que mataram o filho
de seu senhor - “escravo que mata senhor, seja em que circunstância for,
mata em legítima defesa”. Luiz Gama “tornou-se maçom e, nessa
sociedade, alargou espaços, libertando homens e realizando planos”,
conta Santos. Para ele nas condições dadas, “a caridade é um poderoso
elemento de civilização e regeneração social”.
Nelson Câmara destaca também a luta dos caifazes liderados por Antônio
Bento, “um movimento revolucionário-guerrilheiro, completamente à margem
da lei, impacientemente para alcançar o fim da escravidão”.
Para Lilia Schwarcz “o abolicionismo não foi exclusivamente legal.
Existiram grupos como os ‘caifazes’, que, liderados por Antônio Bento,
promoviam e incentivavam a fuga direta de cativos. Esse grupo ficou
famoso por ter organizado um quilombo (chamado Jabaquara) nas imediações
do porto de Santos.” Com o auxílio dos ferroviários, emergentes na
época, os caifazes libertavam e transportavam os libertos para Santos.
Antônio Bento liderou o movimento com “caminhos e métodos mais radicais,
revolucionários mesmos, para dar fim à escravidão. Curioso é que, em
sua pregação, utilizava a fé católica para demonstrar a contradição,
comparando os martírios dos escravos aos de Cristo”, afirma Câmara.
Como Antônio Bento, Luiz Gama lutou em várias frentes, na legalidade ou
fora dela, como ressalta Câmara. O combate à escravidão não se deu
somente pela via da legalidade. Existiram em toda nossa história
diversos movimentos de contraposição à opressão escravista. Nomes
importantes como o casal Zumbi e Dandara dos Palmares ficaram para a
história e transformaram-se em grandes heróis das lutas populares deste
país. Luiz Gama está entre eles.
A luta desenvolvida por Luiz Gama foi sumamente importante para o
propósito da igualdade na sociedade brasileira. Proposta válida ainda
hoje, pois o preconceito racial ainda é forte em nosso contexto. “Luiz
Gama lutava simultaneamente em várias frentes, na legalidade ou fora
dela”, diz Câmara e afirma: “era a missão de sua vida”.
E, provavelmente por suas propostas avançadas e radicais, chegou a ser
taxado, em 1864, de agente da Primeira Internacional Socialista (a
Associação Internacional dos Trabalhadores, fundada e dirigida por Karl
Marx), acontecimentos que “respingaram na América escravocrata”, afirma
Santos.
Justamente porque Gama foi “o primeiro a compreender a abolição como
passo final para a República, unindo logicamente os dois princípios num
mesmo anseio de redenção humana e nacional”, afirma Câmara.
E porque como diz Raul Pompéia, Luiz Gama recebia “constantemente em
casa aquele mundo de gente faminta de liberdade, uns escravos humildes,
esfarrapados, implorando libertação, como quem esmola: outros mostrando
as mãos inflamadas e sangrentas das pancadas que lhe dera um bárbaro
senhor: outros... inúmeros... (...) Toda essa clientela miserável saia
satisfeita, levando este uma consolação, aquele uma promessa, um outro a
liberdade, alguns dinheiro, alguns um conselho fortificante...”
Para inglês ver
Por precisar de mercados consumidores, a grande potência do século XIX,
Inglaterra, passou a combater o escravismo. O trabalho do advogado
defensor dos negros baseava-se em um tratado entre Portugal e
Inglaterra, que proibiu o tráfico de escravos nas colônias portuguesas. E
também na lei de 7 de novembro de 1831, que proibia a importação de
africanos.
Já em 1839 era autorizada a apreensão de navios negreiros pelos ingleses
e em 1845 os navios brasileiros eram submetidos á jurisdição britânica.
A Lei Eusébio de Queiroz, de 4 de setembro de 1850, proibia
definitivamente a importação de africanos. Foi quando surgiu a expressão
“para inglês ver”, pois essas leis eram normalmente burladas.
Com o endurecimento dos ingleses e a luta intensa travada internamente
pelos abolicionistas, “surgiu novo e imundo ‘tráfico interno’, ou seja,
de escravos do Nordeste, onde a lavoura canavieira estava decadente,
para utilizá-los nas províncias do Rio de Janeiro e de São Paulo;
primeiramente na lavoura canavieira, depois na cafeeira”, explica
Câmara.
Outro conflito de Luiz Gama com a elite escravista ocorreu quando houve a
Convenção de Itu (1873), na qual muitos fazendeiros aderiram à
República sem mencionar o fim do escravismo. Nela “os republicanos de
São Paulo, na maioria fazendeiros recusaram-se, para grande irritação e
escândalo do abolicionista Luiz Gama, a incluir a abolição em seu
programa, alegando que era assunto dos partidos monárquicos”, diz José
Murilo Carvalho.
Gama manteve seus propósitos e seguiu libertando escravos e exigindo o
cumprimento das leis. Influenciou a iniciativa da Lei do Ventre Livre e
depois utilizou também em seus trabalhos a dos Sexagenários. Mesmo
compreendendo as limitações dessas leis. Era a “autoridade moral e
intelectual de um negro ex-escravo, que se nivelava a mais alta
inteligência jurídica do país”, afirma Câmara.
A morte
No artigo Pela Última Vez, Gama diz que “enquanto os sábios e os
aristocratas zombam prazenteiros a miséria do povo, os ricos banqueiros
capitalizam o sangue e o suor do escravo... Aguardo o dia solene da
regeneração nacional, que há de vir; e se já não viver o velho mestre,
espera depô-lo com os louros da liberdade sobre o túmulo que encerrar as
suas cinzas.” Parecia profetizar acontecimentos futuros.
Luiz Gama morreu em 24 de agosto de 1882, por causa de seu diabetes.
Morreu pobre, mas deixou como legado para as gerações futuras sua
determinação e abnegação à causa libertária e de construção da
identidade nacional calcada na formação do povo brasileiro.
Deixou uma carta a seu único filho dizendo que “diz a tua mãe... que não
se atemorize da extrema pobreza que lhe lego, porque a miséria é o mais
brilhante apanágio da virtude. Tu evita a amizade e as relações dos
grandes homens; eles são como o oceano que se aproxima das costas para
corroer os penedos...” Por isso para Luiz Carlos Santos “retratar Luiz
Gama é descobrir como a ousada presença negra no serviço público ajudou a
desmontar e a denunciar a quem a justiça do estado imperial
efetivamente servia.”
A importância de Gama para a história do Brasil e para as lutas futuras
dos movimentos negros é demonstrada em seu féretro em 25 de agosto de
1882, no qual compareceram cerca de 3 mil pessoas, na capital paulista,
que na época contava com aproximadamente 40 mil habitantes, ou seja,
7,5% da população. Em comparação com a São Paulo atual, esse número
equivaleria a mais ou menos 1 milhão de pessoas no enterro do “advogado
dos escravos”.
Na parede da casa onde Gama nasceu em Salvador está afixado: “nasceu
livre Luiz Gonzaga Pinto da Gama. Filho de Luiza Mahin, nagô de nação.
Escravizado aos 10 aos pelo pai, seguiu para São Paulo. Ali se libertou
analfabeto aos 17 anos, autor literato aos 29, encontrou na advocacia o
caminho que o levaria às culminâncias da fama. Considerado o maior
orador de seu tempo... Sua vida exemplar tornou-o um símbolo de cultura
capaz de orgulhar país da mais alta civilização.”
A vida segue em frente
Estudar a vida e a obra de Luiz Gama é importante para a compreensão da
consolidação do processo abolicionista no segundo reinado brasileiro e
as lutas pela República e pela igualdade racial num país que tem o
preconceito de raças profundamente enraizado em sua história
escravocrata, principalmente em sua elite, que vira as costas pra o país
e se espelha na vida da elite européia ou norte-americana.
A luta desenvolvida por Gama contra a escravidão é a mesma atualidade
contra o racismo no Brasil. A defesa da cotas nos bancos escolares e no
mercado de trabalho são peças fundamentais para atingirmos a igualdade.
“O combate à desigualdade racial exige mais que políticas sociais e
precisa ser acelerada por políticas afirmativas que tratem os desiguais
de forma desigual para que, no final, a igualdade seja alcançada’, diz
José Carlos Ruy.
Afinal um homem vale a sua luta, a sua vida, sua história. É o que fica
para a posteridade, é a demonstração de generosidade e solidariedade
humana e nesses quesitos todos, Luiz Gama é praticamente imbatível. Um
homem também se vale pelo que faz ou pelo que deixa de fazer. Como disse
Pitágoras “o homem é a medida de todas as coisas – das que são enquanto
(e porque) são, e das que não são (e porque) enquanto não são”. Salve
Luiz Gama, um grande herói brasileiro.