Criminalização da pobreza
A polícia do Rio de Janeiro, em comparação com as suas congêneres do
Brasil e do mundo, é a que mais mata e a que mais morre. Ela é ao mesmo
tempo algoz e vítima de um processo vicioso que só faz agravar a
espiral da violência, resultado inevitável de uma política de segurança
da qual o governo se vangloria, apesar da sua comprovada ineficácia.
Toda vez que se publicam relatórios e dados sobre a questão da
violência e os direitos humanos, o cidadão fluminense se vê diante do
doloroso dever de constatar a permanência de tão trágica realidade.
Exemplo? Basta ver o informe da Human Rights Watch (HRW), publicado com
destaque nos jornais desta quarta-feira. Os números são estarrecedores
e não foram desmentidos pelas autoridades.
Em 2008, os policiais do Rio cometeram 1.137 homicídios durante o
expediente ou fora dele. O tamanho do absurdo se mede pela comparação
com outros estados e até países. No estado de São Paulo, foram 397 as
mortes cometidas por policiais no mesmo período. Na África do Sul e nos
Estados Unidos, considerado o país inteiro em ambos os casos, os
números foram 468 e 371, respectivamente. A relação entre o número de
mortos e número de prisões efetuadas é outro dado altamente revelador.
No Rio, para cada suspeito morto por policiais, estes conseguiram
efetuar 23 prisões; em São Paulo, 1/348; e nos EUA 1/37.751. Outra
dimensão do mesmo descalabro são os dados que medem a relação entre
mortes cometidas por policiais para cada óbito de policial. Nos EUA
9,05; em São Paulo, 18,05; e no Rio são 43,73 mortos para cada óbito
policial.
Toda comparação, claro, padece de problemas e carece de ser
relativizada. Mas, no caso, trata-se de uma questão específica,
analisada com base em dados oficiais, em regiões assemelhadas. Em todas
elas, a violência se concentra nas megalópoles atravessadas pelos
problemas típicos do capitalismo pós-moderno. Sendo assim, descartado o
castigo de Deus como hipótese, deve haver uma explicação para os
números que conferem ao Rio de Janeiro uma distinção tão macabra. Para
os estudiosos mais acurados do assunto, a política de segurança adotada
pelo governo Cabral é a causa maior do descalabro.
Ancorada na lógica do confronto bruto, tal política opera na base da
aceitação tácita do uso ilegal da força letal. Há muito que se
denuncia, sem que se consiga estancar a sangria literal que daí
decorre, os chamados "autos de resistência". São utilizados como forma
de justificar os homicídios cometidos e funcionam, na prática, como uma
licença para matar. Ao comparar a recente derrubada de um helicóptero
policial com a queda das Torres Gêmeas, o secretário de Segurança
forneceu justificativa para a espiral de violência. No espírito da
vendeta, bandido e polícia se igualam no exercício descontrolado da
força e na produção da insegurança coletiva.
A brutalidade policial cumpre também uma função política. A reprodução
das relações sociais marcadas pela desigualdade e pela injustiça não se
faz sem certo grau de violência segregacionista contra os mais pobres.
Como escreveu, em artigo recente, Chico Alencar, deputado federal do
PSOL/RJ: "uma política de segurança que mira invariavelmente os de
baixo, jogando sobre eles toda culpa sobre os malfeitos de uma
sociedade desigual, tem nome e sobrenome: criminalização da pobreza".
Léo Lince é sociólogo.
Fonte: http://www.correiocidadania.com.br