Apesar de não haver consenso entre aqueles que estudaram o
processo eleitoral de 1989 – as primeiras eleições diretas para
presidente da República depois dos longos anos de regime autoritário –, é
inegável que a grande mídia, sobretudo a televisão, desempenhou um
papel por muitos considerado decisivo na eleição de Fernando Collor de
Mello. O jovem e, até então, desconhecido governador de Alagoas emergiu
no cenário político nacional como o "caçador de marajás" e contou com o
apoio explícito, sobretudo, da Editora Abril e das Organizações Globo.
No final da década de 80 do século passado, o poder da grande mídia
na construção daquilo que chamei de CR-P, cenário de representação da
política, era formidável. A mídia tinha condições de construir um
"cenário" – no jornalismo e no entretenimento – onde a política e os
políticos eram representados e qualquer candidato que não se ajustasse
ao CR-P dominante corria grande risco de perder as eleições. Existiam,
por óbvio, CR-Ps alternativos, mas as condições de competição no
"mercado" das representações simbólicas eram totalmente assimétricas.
Foi o que ocorreu, primeiro com Brizola e, depois, com Lula. Collor, ao
contrário, foi ele próprio se tornando uma figura pública e projetando
uma imagem nacional "ajustada" ao CR-P dominante que, por sua vez, era
construído na grande mídia paralelamente a uma maciça e inteligente
campanha de marketing político, com o objetivo de garantir sua vitória
eleitoral [cf. Mídia: teoria e política, Perseu Abramo, 2ª. edição, 1ª.
reimpressão, 2007].
2010 não é 1989
Em 2010 o país é outro, os níveis de escolaridade e renda da população
são outros e, sobretudo, cerca de 65 milhões de brasileiros têm acesso à
internet. A grande mídia, claro, continua a construir seu CR-P, mas ele
não tem mais a dominância que alcançava 20 anos atrás. Hoje existe uma
incipiente, mas sólida, mídia alternativa que se expressa, não só, mas
sobretudo, na internet. E – mais importante – o eleitor brasileiro de
2010 é muito diferente daquele de 1989, que buscava informação política
quase que exclusivamente na televisão.
Apesar de tudo isso, a velha mídia finge que o país não mudou.
O CR-P do pós-Lula
Instigante artigo publicado
na Carta Maior por João Sicsú, diretor de Estudos e Políticas
Macroeconômicas do IPEA e professor do Instituto de Economia da UFRJ,
embora não seja este seu principal foco, chama a atenção para a
tentativa da grande mídia de construir, no processo eleitoral de 2010,
um CR-P que pode ser chamado de "pós-Lula".
Ele parte da constatação de que dois projetos para o Brasil estiveram em
disputa nos últimos 20 anos: o estagnacionista, que acentuou
vulnerabilidades sociais e econômicas, aplicado no período 1995-2002, e o
desenvolvimentista redistributivista, em andamento. Segundo Sicsú, há
líderes, aliados e bases sociais que expressam essa disputa. "De um
lado, estão o presidente Lula, o PT, o PC do B, alguns outros partidos
políticos, intelectuais e os movimentos sociais. Do outro, estão o
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), o PSDB, o DEM, o PPS, o
PV, organismos multilaterais (o Banco Mundial e o FMI), divulgadores
midiáticos de opiniões conservadoras e quase toda a mídia dirigida por
megacorporações".
O que está em disputa nas eleições deste ano, portanto, são projetos já
testados, que significam continuidade ou mudança. Este seria o
verdadeiro CR-P da disputa eleitoral para presidente da República.
A grande mídia, no entanto, tenta construir um CR-P do "pós-Lula". Nele,
"o que estaria aberto para a escolha seria apenas o nome do
‘administrador do condomínio Brasil’. Seria como se o ‘ônibus Brasil’
tivesse trajeto conhecido, mas seria preciso saber apenas quem seria o
melhor, mais eficiente, ‘motorista’. No CR-P pós-Lula, o presidente Lula
governou, acertou e errou. Mas o mais importante seria que o governo
acabou e o presidente Lula não é candidato. Agora, estaríamos caminhando
para uma nova fase em que não há sentido estabelecer comparações e
posições (...); não caberia avaliar o governo Lula comparando-o com os
seus antecessores e, também, nenhum candidato deveria (ser de) oposição
ou situação (...); projetos aplicados e testados se tornam abstrações e o
suposto preparo dos candidatos para ocupar o cargo de presidente se
transforma em critério objetivo".
Sicsú comenta que a tentativa da grande mídia de construir esse CR-P se
revela, dentre outras, na maneira como os principais candidatos à
Presidência são tratados na cobertura política. Diz ele: "a candidata
Dilma é apresentada como: ‘a ex-ministra Dilma Rousseff, candidata à
Presidência’. Ou ‘a candidata do PT Dilma Rousseff’. Jamais (...) Dilma
(é apresentada) como a candidata do governo (...)". Por outro lado,
"Serra e Marina não são apresentados como candidatos da oposição, mas
sim como candidatos dos seus respectivos partidos políticos. Curioso é
que esses mesmos veículos de comunicação, quando tratam, por exemplo,
das eleições na Colômbia, se referem a candidatos do governo e da
oposição".
Novos tempos
Muita água ainda vai rolar antes do dia das eleições. Sempre haverá uma
importante margem de imprevisibilidade em qualquer processo eleitoral.
Se levarmos em conta, no entanto, o que aconteceu nas eleições de 2006, o
poder que a grande mídia tradicional tem hoje de construir um CR-P
dominante não chega nem perto daquele que teve há 20 anos. E, claro, um
tal CR-P não significaria a eleição garantida de nenhum candidato (a).
O país realmente mudou. A velha mídia, todavia, insiste em "fazer de
conta" que tudo continua como antes e seu poder permanece o mesmo de
1989. Aparentemente, ainda não se convenceu de que os tempos são outros.