sábado, 24 de setembro de 2016

Charter school: uma escola pública que caminha e fala como escola privada

Em conversa com a professora Nora Krawczyk, da Unicamp, pesquisador americano Dwight Holmes explica por que esse modelo de ensino vem ganhando espaço em seu país e ameaça o Brasil.

Escolas charter têm pouquíssimos professores sindicalizados
Vivemos no Brasil um intenso processo de mudança da racionalidade organizacional da educação, que afeta de maneira radical a lógica de gestão e o trabalho na escola pública. As escolas charter (charter schools), modelo de escola pública que adota a lógica da gestão privada, têm sido apontadas como principal referência de excelência para as mudanças que se tenta implantar. São glamouralizadas e exaltadas no Brasil (como se faz com supostas excelências da gestão privada) sem que haja um verdadeiro debate sobre o tema.
Até que ponto essa visão midiática das escolas charter é real? Onde terminam suas qualidades e começa a mitificação? Foi em busca de respostas para questões como essas que vim para o berço das escolas charter, os Estados Unidos, estudar o sistema de educação local, com bolsa concedida pela Fapesp.
Dado o momento que o Brasil vive, no qual se tenta impor soluções e contaminar todos os espaços (inclusive o educacional) com posturas conservadoras e antidemocráticas, um verdadeiro debate sobre o que são as escolas charter, como funcionam e quais consequências trazem para a escola pública parece fundamental. Afinal, com o afastamento de Dilma Rousseff, o governo interino parece disposto a favorecer mudanças radicais na gestão da escola pública, dando suporte a medidas tomadas pelos estados, como a extinção dos concursos públicos para professor em Goiás, e outras em andamento como os modelos de escolas charter.
Pesquisador em educação desde 1977 e das escolas charter nos Estados Unidos, Dwight Holmes, analista sênior de políticas com foco em questões de equidade na educação para a Associação Nacional de Educação (NEA), explica em entrevista ao Carta Educação a origem desse modelo, quais os interesses e de que maneira essas escolas aprofundam desigualdades.
Leia a seguir:
Carta Educação: O que é uma escola charter? Como elas começaram?

Dwight Holmes: Para começar, gostaria de dizer que eu não estou falando em nome da NEA. São minhas próprias opiniões. Em poucas palavras, escola charter é uma escola mantida com recursos públicos, mas cuja gestão é privada. Ela tem origem na década de 1980, curiosamente pensada para ser uma escola liderada por professores e para acolher os alunos que fracassavam nas escolas tradicionais. Pensavam que poderiam contornar regras administrativas para poder experimentar diferentes abordagens de ensino com estudantes que enfrentam desafios maiores. Lamentavelmente, essa boa ideia virou uma indústria poderosa, que compete com as escolas públicas para atrair estudantes e recursos públicos preciosos.
CEO livro Myths and lies about who’s best, de David C. Berliner e Gene V. Glass, mostra que a escola charter é um tipo de escola que anda e fala como uma escola privada, mas na realidade é uma escola pública, porque recebe dinheiro dos contribuintes. Você concorda?
DH: Sim. As escolas charter são públicas porque recebem dinheiro dos governos estaduais e federal, com os mesmos critérios que as escolas públicas tradicionais. As regras de governança e de responsabilização variam muito segundo as leis de cada estado para as escolas charter. Por isso, podemos dizer que elas funcionam mais ou menos como as escolas particulares, dependendo do estado onde estão localizadas e das agências que as autorizam.
Em seguida, é importante entender que existem duas grandes categorias de escolas charter. Existem as chamadas “Mamãe & Papai Charter”, escolas sem fins lucrativos iniciadas por educadores locais ou líderes comunitários e geridas de forma independente. E existem as escolas charter que são parte de uma “organização de gestão da educação” (Education Management Organization, em inglês), muitas dessas consideradas “cadeias nacionais”. Algumas delas são organizações sem fins lucrativos, enquanto outras indiretamente acabam sendo puro business. Atualmente, cerca de 60% de todas as escolas charter são independentes (Mamãe e Papai) e 40% são administradas por contrato com organizações de gestão da educação, sendo metade organizações com fins lucrativos.
Evidentemente também há aspectos condenáveis em parte das escolas do tipo Mamães & Papai. Há casos de fraudes entre elas, e algumas são abertas por grupos interessados em se ver livres de problemas das escolas tradicionais, como alunos indisciplinados e crianças com dificuldades de aprendizagem.
CE: Você disse que os regulamentos das escolas charter são diferentes de um estado para o outro. Em linhas gerais, quais regras são mais comuns e onde estão as diferenças mais importantes entre os estados?
DH:  A educação pública nos EUA é um sistema federal de 50 estados, cada qual com um próprio sistema. A Constituição dos EUA não faz nenhuma menção à educação pública. As únicas leis federais que se aplicam a todas as escolas do país, incluindo as escolas charter, são aquelas que dizem respeito à proteção dos direitos civis para os estudantes (com base na etnia, religião, nacionalidade, deficiências) e às condições vinculadas ao dinheiro federal para o estado, distrito ou escola.
Em média, as receitas federais representam 10% da receita total da escola, e 90% são provenientes de governos estaduais e municipais. Em geral, onde o poder político é mantido pelo Partido Republicano, as leis para as escolas charter são mais flexíveis, permitem maior liberdade tanto para a agência que autoriza sua criação quanto para as próprias instituições de ensino. Onde o Partido Democrata está no poder e a influência de sindicatos de professores é mais forte, as leis para as escolas charter tendem a ser mais restritivas e existe maior controle e responsabilização das escolas. Há grandes exceções a essa regra geral, como a Califórnia: um estado fortemente democrata, com um sindicato docente muito atuante e leis pró-charter.

CE: Você sabia que o Brasil também tem escolas charter? Saiba mais como esse modelo começou no País e na região:
Na América Latina, o país pioneiro na transferência de escolas públicas para gestão privada foi o Chile durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), em pleno processo de privatização de todos os serviços públicos. Atualmente, no entanto, a referência em matéria de escola charter não apenas na região e no mundo são os Estados Unidos.
No Brasil, esse processo começou em 2005, em Pernambuco, com a implantação de Centros de Ensino em tempo integral (Procentro) pela Secretaria de Educação do Estado, em parceria com o Instituto de CoResponsabilidade pela Educação (ICE). Essa experiência recebeu muita atenção da mídia e passou a ser divulgada por fundações e organizações sociais ligadas à educação como um modelo de escola charter.
Outros estados, tais como Sergipe, Ceará, Piauí e Rio de Janeiro adotaram variações desse modelo. Já em Goiás, o caminho tem sido a transferência da gestão das escolas para organizações sociais, com mudanças das condições de trabalho, como o fim do concurso público e o pagamento de bônus aos professores conforme o rendimento dos alunos – o que mantém o baixo nível salarial. No estado de São Paulo, Campinas e outros municípios também vêm transferindo a gestão escolar para organizações sociais, por enquanto em unidades de Educação Infantil.

























CE: Há algum tipo de recomendações para os estados?
DH: A Aliança Nacional para Escolas Públicas Charter, um importante lobby pró-charter, publicou um “modelo de lei para a escola charter”, que descreve o mundo como eles gostariam que fosse. Ela também classifica os estados de acordo com a proximidade de suas leis para as escolas charter com a “lei modelo”. Nesse modelo, os componentes essenciais de uma lei para escola pública charter são a autorização ilimitada do número de escolas charter, a possibilidade de criar diferentes tipos de escolas charter, incluindo virtuais/on-line, e que organizações externas estejam autorizadas a gerir escolas charter. Ela quer também as escolas charter isentas das leis e convenções estaduais coletivas, evitando que os professores possam se organizar em sindicato.
CE: Como assim? Os professores que trabalham nas escolas charter não podem participar do sindicato? O sindicato de professores tem possibilidades de negociar as condições de trabalho desses docentes?
DH: São pouquíssimos os professores das escolas charter sindicalizados. Um dos estados onde o NEA e a Federação Americana de Professores (AFT) estão tendo algum sucesso nas campanhas para organizar os professores das escolas charters é Nova Jersey. Mas isso tem preocupado bastante a associação das escolas charter local, principalmente pelas condições deploráveis de trabalho dos professores e porque os professores não têm voz nas escolas charter.
CE: Como são as condições de trabalho dos professores na escola charter? São diferentes daquelas das escolas públicas tradicionais?
DH: Muitas. Os estados não exigem que os professores das escolas charter tenham a certificação correspondente para ensinar. Como disse, muito poucos são sindicalizados e, embora AFT e NEA estejam atuando nessas escolas, os números ainda são pequenos. Os professores das escolas charter tendem a ser mais jovens, menos qualificados, com menos experiência, recebem menos, têm menos benefícios e volume de trabalho superior. Na Flórida, por exemplo, o salário médio anual dos professores nas escolas charter em 2011-2012 era de 38.459 dólares e nas escolas públicas tradicionais de 46.273 dólares.
A porcentagem de professores com apenas um ou dois anos de experiência era de 69% nas escolas charter e de 21% nas escolas públicas tradicionais. Além disso, as cadeias nacionais de escolas charter deixam muito pouco nas mãos dos professores sobre o que, como e quando ensinar. A maioria delas utilizam currículos estruturados e orientados para o teste. Os professores são obrigados a usar apostilhas, produzidas de forma centralizadas para todo o país.
CEComo funciona o financiamento público para as escolas charter?
DH: Em geral, recebem o mesmo financiamento por aluno que as escolas públicas tradicionais para despesas operacionais. O financiamento de capital e aquisição de instalações escolares têm sido um problema para as escolas charter na maioria dos estados. Algumas recebem grandes quantidades de contribuições privadas, embora haja poucos dados sobre isso.
CE: Quantas escolas charter existem hoje nos EUA e que porcentagem representam no total das escolas públicas?
DH: Nos Estados Unidos temos atualmente 90.189 escolas públicas, sendo 94% tradicionais. Essa relação se mantém, aproximadamente, em todos os níveis de ensino básico[1]. O ensino privado representa 24% das escolas do país e 10% de todos os alunos do ensino básico.
CE: Realmente a porcentagem de escolas charter é bastante pequena, só o 6% das escolas públicas em todo o país, mas elas têm aumentado. Por que isso está acontecendo?
DH: Por diferentes razões, mas gostaria de destacar que a administração de Obama tem sido bastante pró-charter. O Programa Federal Escolas Charter gastou mais de 3,7 bilhões de dólares ao longo dos últimos 10 anos, na criação de escolas charter em todo o país. Outro motivo é que as organizações que defendem o modelo charter como alternativa mais eficiente às escolas tradicionais têm pressionado muito para aumentar o número de escolas charter e flexibilizar ainda mais as leis que as regulam.
Uma forma de pressão é injetar grandes quantidades de dinheiro nas escolas charter para que diferentes grupos possam iniciar novas escolas charter. Um dos financiadores que se destaca é a fundação da família Walton, dona do Walmart e uma das mais ricas do país. Além do investimento em escolas charter, durante décadas investiram milhões tentando desviar fundos da escola pública às escolas privadas com bônus. De qualquer maneira, é importante destacar que o investimento federal, através do Programa Charter, tem superado os investimentos realizados por grandes fundações privadas.
CE: Um dos argumentos favoráveis às escolas charter é as famílias terem a possibilidades de escolha. O que você acha disso?
DH: Seguramente existem escolas charter “Mamãe e Papai” que trabalham bem e que, em média, são menores que as escolas públicas tradicionais. Mas hoje o setor charter de escolas públicas está dominado pelas corporações. O volume de negócios é elevado. Lembre-se que muitas dessas escolas são administradas por empresas com fins lucrativos e têm de obter seus 15% de lucros de algum lugar.
O que significa isso quando pensamos nas oportunidades educacionais para crianças e jovens? Por exemplo, uma escola tradicional pode gastar 65 mil dólares por ano em eletricidade. Se um grupo de alunos sai e vai para a escola charter, o uso de eletricidade não diminui e as contas têm de ser pagas, mas parte do financiamento vai embora junto com os alunos para as escolas charter. Os impactos negativos sobre as escolas de bairro tradicionais são enormes. E, sem falar das denúncias de segregação e mãos tratos que as crianças e jovens sofrem em algumas escolas charter.
CE: Muitas escolas fecham após um tempo de funcionamento, não?
GH: Sim, esse é um problema grave para os alunos. Temos muitas ​​interrupções na escolaridade de crianças e jovens causadas por fechamento de escolas charter. Dados de 2000- 2012, os últimos disponíveis, mostram o fechamento de 27% das escolas charter nesse período. Uma análise desses dados nos indicam que quantos mais anos de funcionamento tem a escola, maior é a probabilidade de ela fechar. Cerca de 40% não sobrevive após 12 anos desde o nascimento. No entanto, também temos um número considerável de escolas charter que deixam de funcionar já no primeiro ano de funcionamento.
CEQual é a taxa de graduações nas escolas charter e em escolas públicas tradicionais? Há diferenças por conta de diferentes etnias?
DH: Em geral, são muito mais baixas nas escolas charter vis-à-vis escolas públicas tradicionais. E isso é verdade independentemente da etnia.  Em 2015, a taxa de graduação no Ensino Médio nas escolas públicas tradicionais foi de 84%, contra 61% das escolas charter
CE: Por que corporações têm interesse nas escolas charter?
DH: Lucro. O custo da educação básica pública está se aproximando de 1 trilhão de dólares por ano, sendo 80% para pagamento de pessoal. As forças privatistas têm procurado captar de diferentes maneiras uma parte significativa desse dinheiro para si. Por exemplo, através da emissão de bônus (voucher) para pagar a mensalidade em escolas privadas para crianças pobres, benefícios fiscais para quem paga escola pública, terceirização de funções tradicionalmente desempenhadas por funcionários públicos (alimentação, transporte e limpeza) e agora, também, via escolas charter.
No geral, os milionários defensores da escola charter são obcecados em criar e expandir um sistema de educação paralelo à educação pública tradicional que reflita os valores corporativos e não seja responsável publicamente frente aos pais e a comunidades. Esse esforço exacerba a desigualdade de renda, uma vez que drena recursos de distritos escolares públicos e prejudica o seu sucesso.
Modelo ameaça educação pública precária do Brasil (Foto:
Fernando Frazão/ Agência Brasil)

CE muitas denúncias sobre corrupção nas escolas charter.
DH: Há muitos casos de corrupção em escolas charter. O governo federal dá todos aqueles milhões de dólares e não monitora o dinheiro. Os estados tampouco o fazem. A NEA pressiona para que as leis da escola charter incluam mais exigências na prestação de contas, mas existe uma resistência maciça do lobby da escola charter. Eles se queixam de regras “onerosas” e dizem que precisam de “liberdade” para inovar, mas o que conseguem é um ambiente em que ninguém sabe (ou não quer saber) onde e como o dinheiro é gasto ou se as necessidades dos alunos e professores estão sendo atendidas.
Claro que tem havido casos de corrupção na administração do ensino público também. Mas são poucos e por um bom motivo: há muitos controles contábeis e financeiros. Já o modelo de gestão da escola charter permite um truque fiscal muito hábil. Informações levantadas em  Los Angeles mostram que:  as corporações criam organizações sem fins lucrativos para gerir cadeias de escola charter e criam empresas de responsabilidade limitada para controlar as propriedades da escola.
Na Califórnia, ganham dinheiro alugando imóveis para escolas charter, pelos quais são reembolsados por verbas de agências estaduais e federais. Essas empresas podem até emitir títulos negociáveis no mercado que, em última instância, estão garantidos pelo contribuinte. Houve recentemente um escândalo em Ohio, onde encontraram dados falsos sobre o sucesso das escolas charter de uma dessas corporações, usados para receber mais verbas federais.
CE: Por que o número de escolas charter tem aumentado e o mesmo não acontece com o sistema de bônus para as escolas privadas?
DH: Boa pergunta. Não tenho certeza, mas certamente os americanos entendem que é impossível ter o controle do dinheiro público se ele é entregue às escolas privadas. A maioria das escolas que aceitam estudantes com bônus são escolas religiosas. Acho que isso também pesa porque duvido que as pessoas estejam de acordo que os alunos recebam educação religiosa com dinheiro público.
CE: A escola charter é inevitável? Se sim, por quê?
DH: No curto e médio prazo, com certeza. Em parte, porque elas preenchem uma demanda social e uma parte dessas escolas são bem-sucedidas. Mas principalmente porque elas servem aos interesses políticos de capturar o máximo de orçamento da educação pública para o lucro privado e de minar os professores e seus sindicatos. Isso é muito sério porque exacerba ainda mais as desigualdades já existentes em nosso sistema de educação pública e serve como uma distração para os passos reais necessários para melhorá-la.
*Nora Krawczyk é professora da Faculdade de Educação no Departamento de Ciências Sociais e Educação e membro do Grupo Políticas Públicas e Educação na Unicamp. Atualmente faz pós-doutorado na Universidade de Maryland, EUA. norak@unicamp.br 

Publicado em 

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

DEZ POSSÍVEIS LIÇÕES APÓS O IMPEACHMENT

Seguramente é cedo ainda para tirar lições do questionável impeachment que inaugurou uma nova tipologia de golpe de classe via parlamento. Estas primeiras lições poderão servir aos que amam a democracia e respeitam a soberania popular, expressa por eleições livres e não em ultimo lugar ao PT e aliados. Os que detêm o ter, o poder e o saber que se ocultam atrás dos golpistas se caracterizam por não mostrar apreço à democracia e por se lixar pela situação de gritante desigualdade do povo.

Primeira lição é alimentar resiliência, vale dizer, resistir, aprender dos erros e derrotas e dar a volta por cima. Isso implica severa autocrítica, nunca feita com rigor pelo PT. Precisa-se ter claro sobre qual projeto de país se quer implementar.

Segunda lição: reafirmar a democracia, aquela que ganha as ruas e praças, contrariamente da democracia de baixa intensidade, cujos representantes, com exceções, são comprados pelos poderosos para defender seus interesses corporativos..

Terceira lição: convencer-se de que um presidencialismo de coalizão é um logro, pois desfigura o projeto e induz à corrupção. A alternativa é uma coalização dos governantes com os movimentos sociais e setores dos partidos populares e a partir deles pressionar os parlamentares.

Quarta lição: convencer-se de que o capitalismo neoliberal, na atual fase de altíssima concentração de riqueza, está dilacerando as sociedades centrais e destruindo as nossas. O neoliberalismo atenuado, praticado nos últimos 13 anos pelo PT e aliados permitiu fazer a maior transformação social na história do Brasil com a melhoria de vida de quase 40 milhões de pessoas, com o aumento dos salários, com facilidade de crédito, com desonerações fiscais, mas mostrou-se, no fundo, insuficiente. Grande erro do PT foi: nunca ter explicado que aquelas ações sociais eram fruto de uma política de Estado. Por isso criou antes consumidores que cidadãos conscientes. Permitiu adquirirem bens pessoais (a linha branca) mas melhorou pouco o capital social: educação, saúde, transporte e segurança. Bem disse frei Betto: gerou-se “um paternalismo populista que teve início quando se trocou o Fome Zero, um programa emancipatório, pelo Bolsa Família compensatório; passou-se a dar o peixe sem ensinar a pescar”. No atual governo pós golpe, a radicalizada política econômica neoliberal de ajustes severos, recessiva e lesiva aos direitos sociais seguramente vai devolver à fome e à miséria os que dela foram tirados.

Quinta lição: é urgente dar centralidade à educação e à saúde. O governo Lula-Dilma avançou na criação de universidades e escolas técnicas. Mas cuidou pouco da qualidade seja da educação seja da saúde. Um povo doente e ignorante nunca dará um salto rumo a uma prosperidade sustentável. Tanto o filho/a de rico quanto de pobre tem direito de frequentar a mesma escola de qualidade.

Sexta lição: colocar-se corajosamente ao lado das vítimas da voracidade neoliberal, denunciando sua perversidade, desmontando sua lógica excludente, indo para as ruas, apoiando demonstrações e greves dos movimentos sociais e de outros segmentos.

Sétima lição: colocar sob suspeita tudo o que vem de cima, geralmente fruto de políticas de conciliação de classes, feitas de costas e à custa do povo. Estas políticas vem sob o signo do mais do mesmo. Preferem manter o povo na ignorância para facilitar a dominação e combatem qualquer espírito critico.

Oitava lição: é urgente a projeção de uma utopia de um outro Brasil, sobre outras bases, a principal delas, a originalidade e a força de nossa cultura, dando centralidade à vida da natureza, à vida humana e à vida da Mãe Terra, base de uma biocivilização. O desenvolvimento/crescimento é necessário para atender, não os desejos, mas as necessidades humanas; deve estar a serviço, não do mercado, mas da vida e da salvaguarda de nossa riqueza ecológica. Concomitante a isso urge reformas básicas, da política, da tributação, da burocracia, da reforma do campo e da cidade etc.

Nona lição: para implementar essa utopia faz-se indispensável uma coligação de forças políticas e sociais (movimentos populares, segmentos de partidos, empresários nacionalistas, intelectuais, artistas e igrejas) interessadas em inaugurar o novo viável, que dê corpo à utopia de outro tipo de Brasil.

Décima lição: esse novo viável tem um nome: a radicalização da democracia que é o socialismo de cunho ecológico, portanto, ecosocialismo. Não aquele totalitário da Rússia e o desfigurado da China que, na verdade, negam a natureza do projeto socialista. Mas o ecosocialismo que visa realizar potencialmente o nobre sonho de cada um dar o que pode e de receber o que precisa, inserindo a todos, a natureza incluída.

Esse projeto deve ser implementado já agora. Como expressou a ancestral sabedoria chinesa, repetida por Mao: “se quiser dar mil passos, comece já agora pelo primeiro”. Sem o que jamais se fará uma caminhada rumo ao destino desejado. A atual crise nos oferece esta especial oportunidade que não deverá ser desperdiçada. Ela é dada poucas vezes na história e agora é uma delas.

*Teólogo, filósofo, escritor e articulista do JB on line. Escreveu: Que Brasil queremos? Vozes 2000.

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Previdência: mexer com ela trará danos sociais dramáticos

'Para a economista Laura Tavares Soares, aumento da idade mínima para aposentadoria não será apenas injusto para quem contribui desde adolescente. Trará consequências sociais dramáticas'

Laura Tavares Soares faz parte de um grupo de economistas que enviou, em abril, uma carta
ao Supremo Tribunal Federal pedindo empenho contra a tentativa de golpe no Brasil. Além de condenar a ruptura com a democracia traduzida no afastamento da presidenta Dilma Rousseff, ela lamenta que o governo interino de Michel Temer, qualificado como "usurpador" e "ilegítimo", esteja tentando impor "políticas regressivas" no que diz respeito às conquistas dos trabalhadores e da população de baixa renda.
Especialista em estudos sobre Previdência Social e desigualdade social, professora aposentada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professora investigadora da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), Laura afirma que uma eventual desvinculação dos benefícios da Previdência, sobretudo as aposentadorias, do salário mínimo, é "criminosa". E lembra que a aposentadoria inserida na política de valorização do mínimo sustenta a maioria das famílias em mais de 60% dos pequenos municípios.
Como pesquisadora e intelectual, Laura deu importante contribuição à elaboração da Constituição de 1988, quando atuou na equipe de formuladores dos artigos relativos à Seguridade Social. Ela condena a proposta de aumento da idade mínima de aposentadoria para 65 anos, ou mais, e diz que "muitos brasileiros e brasileiras morrerão antes".
A economista ressalta que os trabalhadores de menor renda entram mais cedo no mercado e diz que ignorar a diferença de expectativa de vida entre as classes sociais significa agravar as desigualdades, inclusive no que diz respeito a condições de saúde e de educação. Nas ideias defendidas pelo governo interino, perdem, e muito, os mais pobres.
Não me venham com argumento demográfico. Se nosso jovens estiverem empregados, darão conta de manter a solidariedade entre gerações, o regime de repartição, por um bom tempo
A economia voltou a rezar pela cartilha do neolibera­lismo como nos tempos de FHC?
Ah, com certeza. É assustador que, em tão pouco tempo, o governo provisório e usurpador de Temer esteja implementando e propondo políticas regressivas sob todos os pontos de ­vista. Sob o econômico, aprofundará mais ainda uma crise que assume contornos mundiais, uma crise à qual o Brasil não está imune. No entanto, a crise não vem sozinha. Ela é amplificada e agravada, em boa medida, por políticas que denominávamos de ajuste neoliberal. Sobretudo na adoção de medidas que paralisam os investimentos produtivos, deixam de criar empregos e, o que é pior, criam um desemprego que, no ritmo que vai, chegará aos patamares críticos que tivemos nos anos 90.
Se lembrarmos que chegamos a uma situação denominada de "pleno emprego" (em 2014), trata-se de um brutal retrocesso. Eu estudo a série histórica da Previdência desde os anos 70, e pela primeira vez a proporção de contribuintes, ou seja, de empregados formais, supera o patamar de 60%, quando historicamente chegava, no máximo, a 40%. Os dados mostram como o crescimento da ocupação em todos os períodos supera o aumento da população economicamente ativa. Essa diferença corresponde exatamente à diminuição do desemprego. Por sua vez, o número de pessoas filiadas e contribuindo para a Previdência superou em muito, em todos os períodos, o crescimento dos postos de trabalho. Essa maior proteção previdenciária representa um maior grau de formalização do emprego e, naturalmente, da cidadania.
O atual cenário representa ameaça a essas conquistas obtidas na última década?
O neoliberalismo é muito mais que um conjunto de medidas econômicas. É uma ideologia que continua forte e traz propostas que modificaram e estão modificando o modo como as políticas sociais são implementadas. Passa por uma visão de que o Estado deve apenas atender aos "mais pobres". Na área social, é claro. Porque na área econômica, o Estado sempre atendeu aos interesses do capital hegemônico – hoje o capital financeiro – e das classes dominantes remanescentes que detêm ainda o poder sobre a propriedade da terra, os grandes latifundiários. As classes dominantes não têm nenhum pudor em disputar e desfrutar do Estado. Bem como a classe média brasileira, que possui uma renda e um estilo de vida superior às demais classes médias latino-americanas. Ela desfruta da isenção do Imposto de Renda nos gastos, não apenas com educação privada e com saúde privada, e promove uma enorme renúncia tributária ao descontar integralmente os planos de saúde e os fundos de previdência privados. Para estes, não há nenhum problema que o Estado dê uma mãozinha na chamada reserva de mercado para o setor privado em duas áreas sensíveis e historicamente subfinanciadas, como a saúde e a educação.
Eu fiz Economia no doutorado exatamente para me contrapor aos economistas. Outro dia, preparando aula, descobri que a economista inglesa Joan Robinson disse que estudou Economia para não ser enganada por nenhum economista. Estou em boa companhia! Sempre defendi a política social como indutora de um novo padrão de desenvolvimento, ainda que capitalista, menos excludente mas, sobretudo, mais igualitário e garantidor de direitos de cidadania, palavras que andam meio esquecidas desde a Constituição de 1988.
Que impacto haveria sobre os trabalhadores a reforma da Previdência pretendida pelo ­governo interino?
Vou me referir a duas medidas que considero as que causariam impactos sociais inimagináveis. A primeira é a criminosa desvinculação do salário mínimo dos benefícios da Previdência Social, especialmente as aposentadorias. Aliás, a Previdência Social hoje em dia deveria ser chamada de Previdência Fazendária. Nem nos piores casos de neoliberalismo que estudei na América Latina, nunca vi a Previdência ir para o Ministério da Fazenda tão explicitamente. Hoje, a aposentadoria no valor de um salário mínimo, acompanhada de uma valorização sem precedentes, acima da inflação, sustenta a maioria das famílias residentes em mais de 60% dos pequenos municípios, e alguns médios. Se não acreditarem nos dados oficiais dos governos eleitos Lula e Dilma, consultem os dados do Dieese ou da Anfip (associação de auditores da Previdência). Até na Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do IBGE se pode verificar o aumento da importância da Previdência, em muitos casos logo abaixo da renda do trabalho, quando ele existe. Na área rural, então, considero uma verdadeira revolução social que um casal que se aposenta pelo trabalho, ou seja, que tem o direito de receber uma aposentadoria digna, receba hoje R$ 1.736. Isso, para a área rural, é uma renda considerável, muitas vezes maior que o próprio trabalho rural. Detalhe: as mulheres passaram a receber igual aos homens desde a redemocratização, conquista que foi fruto de uma longa luta. Para mim, é a mais redistributiva política social universal que temos, única na América Latina.
Uma auxiliar de enfermagem que comece a trabalhar aos 20 anos, aos 65 está um bagaço ou já não existe mais. Desculpem o realismo
É uma questão antiga...
Aqui vale fazer uma pausa e afirmar, com veemência, que a Previdência rural não é assistencial e sim vinculada ao trabalho! Essa é uma briga antiga dos trabalhadores rurais e nossa, quando enfrentávamos os parlamentares em 1998 e em 2003 nos debates sobre a reforma da Previdência. Sem nenhum demérito à palavra assistencial, pelo contrário. O BPC (Benefício de Prestação Continuada), este sim um benefício assistencial destinado aos idosos urbanos e a pessoas com deficiência de baixa renda, já que a Previdência urbana ainda não é universal, possui uma enorme relevância social. Destaco isso porque a Previdência rural foi e continua sendo alvo dos defensores da reforma da Previdência neoliberal, que quer retirar a população rural do sistema da seguridade. Com isso se perde, no mínimo, a vinculação dos atuais benefícios rurais com o salário mínimo, por exemplo, caindo a patamares ínfimos, como era no período da ditadura. Em outubro de 2014, somente o INSS pagava por mês mais de 32 milhões de benefícios, transferindo renda e movimentando a economia nos municípios. A maior parte dos benefícios (71,2%) foi paga à clientela urbana. Portanto, 28,8% foi pago aos trabalhadores rurais. São milhões de rurais recebendo um salário mínimo na sua velhice ou invalidez.
É verdade que a Previdência Social gasta mais com os ricos do que com os pobres? Existe algum retorno social com o montante que se gasta hoje com Previdência?
Fiz em 2012 uma apresentação exatamente com o objetivo de demonstrar o retorno social da despesa da Previdência Social com benefícios. E aqui entra a ideia da Constituição de 1988 de que a Previdência, tal como a saúde e a assistência social, pertence à seguridade social. A maioria das pessoas não sabe nem o que é isso. Sempre recomendo para meus alunos, como tarefa de cidadania, a leitura, pelo menos, do capítulo da Seguridade Social na Constituição.
Por outro lado, a grande maioria dos benefícios pagos hoje é de um salário mínimo. Eu não sei ao certo o dado agora, mas é cerca de 80%. O último dado que calculei e que tenho disponível aqui é que as despesas com benefícios, desde 2006, ultrapassam a metade do valor arrecadado pelo governo em impostos e contribuições sociais e econômicas, quando deduzidas as transferências constitucionais a estados, Distrito Federal e municípios, restituições e incentivos fiscais. Em 2013 essa proporção chegou a 54,3%. Isso significa que pouco mais da metade da parcela dos impostos e contribuições que fica no orçamento federal retornou para os segmentos sociais mais necessitados. Além do grande significado social, essas transferências têm um papel econômico importante, pois atingem um quantitativo importante de famílias, distribuídas regionalmente e com uma grande capilaridade.
Da mesma forma, os Benefícios de Prestação Continuada, da Loas (Lei Orgânica da Assistência Social), custam o equivalente a 0,6% do PIB, e cada R$ 1 pago gera R$ 1,19 no PIB. Cada R$ 1 pago de seguro-desemprego, cujos gastos alcançam também 0,6% do PIB, rende R$ 1,09 no PIB. O conjunto dos benefícios da Seguridade Social tem a capacidade de diminuir a desigualdade e a pobreza, com grande poder multiplicador na economia. Um estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) divulgado em 2013 reafirma que, além da Previdência, as despesas com o Bolsa Família representam apenas 0,4% do PIB (Produto Interno Bruto), mas cada real gasto com o programa adiciona R$ 1,78 no PIB.
As despesas com políticas sociais então, retornam na forma de dinamização da economia...
Na economia, o impacto multiplicador tem outra vantagem. Ao elevar a produção e a circulação de bens e serviços, obviamente cresce a arrecadação. Portanto, parcela considerável dos recursos públicos aplicados retorna. Quem faz contas da Previdência de modo meramente atuarial olha apenas receitas e despesas, ignorando, além da cidadania e o direito à previdência, as demais contas de arrecadação envolvidas.
A diversificação de fontes de financiamento da seguridade social é um princípio pioneiro instituído na Constituição de 1988 que revolucionou o financiamento dessas três áreas: Previdência, Saúde e Assistência Social. Por esse princípio, todas essas áreas deveriam ser financiadas pelo orçamento da seguridade social. Infelizmente, a partir do desmonte dos anos 90, as fontes setoriais ficaram separadas, o que, a meu ver, repõe eternamente o debate do subfinanciamento da Saúde e da Assistência Social. A sacada genial introduzida na Constituição, e batalhada por muitos técnicos que já trabalhavam na Previdência na época do ministro Waldir Pires (1985-1986) e pelos movimentos sociais, é que as contribuições não deveriam apenas incidir sobre o trabalho. Com a crise do mundo do trabalho, nenhum país do mundo sustenta seu sistema de proteção social com folha de salários! Dessa forma, criamos duas­ contribuições, que incidissem sobre o capital, que são as atuais CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) e Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social). Essas contribuições sempre cresceram acima do PIB e da arrecadação federal. Como está na moda dizer hoje, são absolutamente sustentáveis. O resultado da seguridade social em 2013, ou seja, o seu superávit, foi de R$ 76,241 bilhões. Com todas as desvinculações e as isenções fiscais às empresas, que diminuíram a receita da Previdência, o superávit ainda foi de R$ 12,626 bilhões.
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Não existe isonomia na vida cotidiana das mulheres. Só conheço homem que participa do trabalho doméstico jovem, ilustrado, de classe média e progressista. E olhe lá!
O aumento da idade mínima para a aposentadoria é um"mal necessário" para garantir a estabilidade do sistema de Previdência?
O problema é que as desigualdades no Brasil ainda são enormes, e elas têm influência direta sobre a expectativa de vida. Calcular uma média em um ­­país ­como o Brasil é uma medida de alto risco que, no caso da Previdência, trará consequências sociais dramáticas. Aprendi, desde o meu curso de sanitarista da Escola Nacional de Saúde Pública, que expectativa de vida depende das condições de vida e, junto com elas, das condições de saúde. Isso vai mais além da renda. Depende fundamentalmente do acesso aos serviços de saúde, à habitação digna, ao saneamento, às condições de trabalho, entre outras coisas. Se a idade mínima aumentar de forma linear, muitos brasileiros e brasileiras morrerão antes de receber sua aposentadoria.
Até as pedras sabem que os de mais baixa renda têm que entrar mais cedo no mercado de trabalho. E vão ter que esperar a idade mínima muito mais tempo do que aqueles que ingressam mais tarde, como os jovens que têm acesso ao estudo médio e universitário sem precisar trabalhar e que depois ainda podem fazer mestrado, doutorado, cursinho para concurso etc., custeado pelos pais ou pela família. Quase sempre o grupo de baixa renda que tem que trabalhar desde cedo ingressa em trabalhos de pior qualidade, mais precários, com evidentes prejuízos para a sua saúde. E aqui também reside uma diferença perversa: ainda hoje, as mulheres possuem piores condições de trabalho e remuneração. É uma diferença de gênero que persiste no nosso mercado de trabalho, especialmente no mercado privado.
Mas diferenças também existem no setor público. Quando o presidente interino e ilegítimo disse que todos os servidores públicos iriam se aposentar com 70 anos, eu, com apenas 62, quase tive um infarto. Trata-se de um total desconhecimento do que é o setor público neste país e sua também enorme heterogeneidade. Não é a mesma coisa trabalhar em estatais ou no Poder Judiciário, com salários muitíssimo acima da média dos servidores públicos, além de muitos privilégios, do que trabalhar no Executivo, onde, a princípio, somos meros assalariados nos três níveis de governo. Isso acontece especialmente nas áreas de saúde, onde pelo menos dois terços são mulheres que trabalham na enfermagem ou em áreas extremamente exaustivas, e educação, onde a maioria é de professoras primárias ou secundárias. E essas são as áreas majoritárias em mão de obra no setor público. Uma auxiliar de enfermagem que comece a trabalhar aos 20 anos aos 65 está um bagaço ou já não existe mais. Desculpem o realismo.
A mulher pobre é quem mais perde com essa proposta de aumento da idade mínima?
Essa mesma "isonomia" entre homens e mulheres proposta para a idade mínima na Previdência, como já disse, não existe no mercado de trabalho. De novo, a mulher vive mais tempo na média. Mas a mulher de baixa renda sofre, além da discriminação de gênero, a racial. A maioria dos postos precários de trabalho ainda é preenchida por mulheres. Por essas e outras é que afirmo que as mulheres trabalhadoras rurais conseguiram o que muitas que trabalham no meio urbano não conseguiram: uma Previdência universal pelo simples fato de ter trabalhado. Tampouco existe isonomia na vida cotidiana das mulheres, especialmente nas de baixa renda, que não podem pagar domésticas ou diaristas. Só conheço homem que participa do trabalho doméstico jovem, ilustrado, de classe média e progressista. E olhe lá! A inclusão do trabalho doméstico na ampliação da Previdência na chamada "inclusão previdenciária" nunca foi compreendida pelos homens tecnocratas e políticos com quem tínhamos que conversar no Ministério da Previdência e no Congresso.
E ainda falta um componente, que já se encontra muito mais avançado nos países que de fato dispõem de um Estado de bem-estar social, que é a questão do cuidado. E aí, o cuidado com os filhos e com os idosos sobra para as mulheres mesmo. Melhorou a política de creches? Sim. Mas falta muito. E com os idosos, quem não tem dinheiro para cuidadoras – também mulheres – e assim mesmo quem "cuida" das cuidadoras são as mulheres, mesmo de classe média.
E não me venham com o argumento demográfico, pelo menos não no Brasil, onde ainda temos um bônus de jovens que, se estivessem todos, ou a maioria, empregados, dariam perfeitamente conta de manter a solidariedade intergeracional, o regime de repartição, por um bom tempo. E, como já vimos, no caso brasileiro ainda temos muitos recursos que, se não fossem "desviados" para os superávits fiscais, daria conta de sustentar todos os idosos deste país, me arrisco a dizer, de modo universal. Onde todos, como no campo, tivessem pelo menos a garantia de um salário mínimo. 

Fonte: http://www.redebrasilatual.com.br

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

MORTE NUTRE DE CAPITAL

Para preservar as nossas vidas governos proibir o fumo em locais públicos. Maços de cigarros exibem fotos horríveis de os efeitos letais do vício. "Fumar mata", adverte o Ministério da Saúde.

Recentemente, foi proibido em os EUA o cigarro eletrônico. Por que, se emite apenas vapor de água inodoro e não contém produtos químicos? Mas os legisladores entendem que isso é um mau exemplo. O charuto virtual pode levar a charuto real ...

No entanto, os filmes do mercado completos mesmo país com cenas de violência excessiva, não que a lei significa que os crimes virtuais podem gerar crimes reais ... O comércio de armas tem total liberdade na maioria dos estados.

O excesso de velocidade mata também. No Brasil, desde 2013, o Datasus, 43 mil 780 pessoas perderam a vida no trânsito. No entanto, o Ministério das Cidades não exige que a indústria automóvel para limitar a velocidade potencial de veículos . A lei e do sistema judiciário são condescendentes com este tipo de risco letal. Os motoristas que ceifaram vidas sob as rodas de seus carros estão em bom estado de saúde, a liberdade total ... e de seus cartões de motoristas.

O consumo de álcool também é prejudicial à saúde. Mas, ao contrário do tabaco, o álcool tem segurado tanto a propaganda como o uso gratuito deles.

Sabemos que a agricultura brasileira é o uso de pesticidas campeão do mundo, o que se reflete no aumento da incidência de câncer em nossa população. No entanto, este paradoxo não é proibido: a rega veneno a comida que precisamos para sustentar a vida . E determinados produtos químicos proibidos em outros países não são proibidos aqui. O Ministério da Agricultura deve ser impresso na embalagem de alimentos: "Comer é prejudicial à saúde!"

Ainda não se sabe qual o efeito real do OGM sobre o corpo humano, embora eles são usados em uma grande escala. Nem sequer é obrigatório por lei indicar aos consumidores que esses alimentos contém geneticamente modificados.

Por que tão descaradamente dialogamos com a morte? Primeiro, porque ele dá lucro ea acumulação de capital é o que rege o mercado, o que, por sua vez, dirige a economia, que está sob a política. Em segundo lugar, porque o perigo de vida passou a ser na agenda do mercado. Dar dinheiro. Veja Fórmula 1 luta de MMA e alguns desportos radicais, base jump, céu surf e andar de asa. A adrenalina dos atletas acrescenta o público, animado como as crianças no circo para assistir voltas dando motoristas no globo da morte.

Drogas são proibidas porque seus usuários fazem irresponsável. O álcool, ingerido em grandes quantidades, produzem o mesmo efeito. Atrás do volante o motorista se torna um assassino em potencial ou suicídio. Ou ambos. Proibição tentativas para reduzir o abuso. No entanto, há relatos de acidentes causados por motoristas que fumam indo de carro. Por que esta política de dois pesos e duas medidas?

E as motos? 12.000 são mortos em acidentes de moto por ano no Brasil. De acordo com o Ministério da Saúde tais acidentes são responsáveis pelo aumento de 115 por cento estadias nos hospitais públicos.

Agora, ele é proibido para proibir tudo o que engorda o capital. O que viveria se o funeral mortes seria não facilitar?

Por Frei Betto

domingo, 21 de agosto de 2016

OS LIVROS MAIS LIDOS PELOS EDUCADORES

Entre os títulos mais lidos pelos professores brasileiros, estão os religiosos e obras de autoajuda com vendas muito expressivas no país. Essa é apenas uma das conclusões da pesquisa Retratos da Literatura no Brasil, Organizada pelo Instituto Pró-Livro em parceria com o Ibope. O estudo foi realizado em 2015 e, ao todo, foram entrevistadas 5.012pessoas de todas as regiões do país.

Segundo o levantamento, 84% dos docentes no Brasil são considerados leitores, ou seja, leram pelo menos um livro inteiro ou em partes nos últimos três meses. Metade dos professores entrevistados não leu nenhuma obra recentemente. Além disso, a média de livros lidos, inteiros ou em partes, pelos docentes nos últimos três meses é de 5,2.

A partir da lista de obras disponibilizada pela pesquisa, o site da revista Educação selecionou cinco títulos que caíram no gosto dos professores. A grande maioria é composta por obras de ficção: apenas um é especializado em uma área de atuação docente. Veja a seguir.

A esperança – Trilogia Jogos Vorazes (Mockingjay, 2010)Suzanne Collins

Toda a trilogia foi adaptada para o cinema em quatro produções, e contou com a interpretação da atriz Jennifer Lawrence (ganhadora do Oscar em 2013 pela atuação em “O lado bom da vida”) no papel principal. Os filmes foram lançados nos anos de 2012, 2013, 2014 e 2015.

Último livro da saga Jogos Vorazes, a obra é sucesso entre o público jovem-adulto. Escrito pela estadunidense Suzanne Collins, a trama se passa no futuro, quando, destruída por guerras, a América do Norte passa a se dividir em 12 distritos e uma capital. A esperança retrata o desfecho da luta de Katniss Everdeen, protagonista e líder da rebelião contra o governo autoritário do novo país.


O monge e o executivo – Uma história sobre a essência da Liderança (The servant, 1998) James C. Hunter


O maior mercado de vendas da obra está no Brasil, onde já vendeu mais de 3 milhões de cópias desde seu lançamento em 2004, pela editora Sextante. The Servant (“O servidor” ou “Aquele que serve”, em tradução livre) foi escrito em 1998, mas não se tornou um sucesso nos Estados Unidos.

O livro do norte-americano James C. Hunter é considerado uma obra deautoajuda profissional. Focada no que autor considera ser a verdadeira liderança, a obra mostra ensinamentos sobre como ser um bom líder por meio da servidão ao outro.

Amor nos tempos do cólera (El amor en los tiempos del cólera, 1985) Gabriel García Márquez

O ponto de partida para o enredo do livro veio da história dos pais de García Márquez. O telegrafista, violinista e poeta Gabriel Elígio Garciá – mesmas profissões do personagem Florentino – se apaixonou por Luiza Márquez, mãe do autor, quando muito jovem. O romance real também enfrentou a oposição do pai de Luiza, coronel Nicolas, que tentou impedir o casamento enviando a filha ao interior da Colômbia para uma viagem de um ano.

Considerado pelo consagrado autor colombiano como sua melhor obra, Amor nos tempos do cólera conta a história do romance entre Florentino e Fermina, amantes na Colômbia do século 19. Impedidos de ficar juntos na juventude pelo pai da moça, o casal vive um amor a distância que dura mais mais de 50 anos , até que os dois se reencontram na velhice.

O símbolo perdido (The Lost Symbol, 2009)Dan Brown


Ambientado em torno da maçonaria nos Estados Unidos, a história deixa de lado os conflitos com a igreja católica trazidos nos dois sucessos anteriores do autor: Anjos e Demônios (2000) e o polêmico O Código da Vinci (2003). Houve um plano de adaptação cinematográfica da obra, que foi abandonado pela produtora. Optou-se por focar a produção do filme do último livro de Brown, Inferno (2013).

Esse é o quinto bestseller do autor estadunidense Dan Brown. Em seu primeiro dia de vendas, o livro vendeu 1 milhão de cópias nos EUA, no Reino Unido e no Canadá. A trama narra a terceira aventura do simbologista Robert Langdon, o mais famoso personagem do autor.

Fisiologia do exercício – Nutrição, Energia e Desempenho Humano (Exercice Physiology, 1981 – 1ª versão) William D. Mcardle


Seu autor, William D. Mcardle, é professor emérito ddepartamento de família, nutrição e saúde do exercício da Queens College of the City University of New York, nos Estados Unidos.

O livro se propõem a ser uma fonte de conhecimento para estudantes e instrutores da área de educação física.Atualmente em sua sétima edição, o livro traz princípios científicos, entrevistas e pesquisas relacionadas aos diversos aspectos que compõem o tema.


Fonte: http://www.revistaeducacao.com.br

“ESCOLA SEM PARTIDO PRECISA SER DISCUTIDO EM SALA DE AULA”

Pais, professores e cidadãos acabam embarcando nas ideias do programa “Escola sem Partido” porque a sociedade brasileira não tem o costume de debater questões ligadas à pluralidade de pensamento nos espaços públicos e nas escolas. Essa é a opinião da coordenadora técnica do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação (Cenpec), Maria Amabile Mansutti.
Segundo Maria Amabile, o “Escola sem Partido” representa retrocesso e causa confusão ao colocar no mesmo patamar a educação na escola com aquela que é oferecida pelos pais no âmbito privado. “O programa vai na contramão de tudo que já conseguimos na perspectiva de uma escola democrática, porque ele defende justamente o que prega não fazer: uma ideologia”, afirma.
Para combater a desinformação a respeito do tema, a coordenadora destaca a responsabilidade dos espaços públicos de discussão – principalmente escolas –  no debate com a população. Isso seria importante porque a implementação do projeto afeta diretamente o funcionamento das instituições de ensino e a formação futura dos cidadãos.
Algumas entidades, como o Ministério Público Federal (MPF), já se posicionaram sobre o assunto e prestaram esclarecimentos sobre seus pontos de vista. Por meio de uma nota técnica enviada ao Congresso Federal, o MPF disse que o projeto é contrário à Constituição por impedir a pluralidade de ideias e eliminar a autonomia didática e pedagógica do professor.
Maria Amabile acredita que o posicionamento do MPF ajudará educadores que se sentem acuados por criticar o programa, além de alimentar o debate e esclarecer, tanto para a comunidade em geral quanto para os educadores, porque o projeto não pode ser considerado uma alternativa para a educação brasileira.
Além do MPF, a Advocacia-Geral da União (AGU) também se posicionou contra o projeto de lei. Aos órgãos federais somam-se movimentos de educadores e especialistas na luta contra a implementação do programa. Esses representantes temem que a medida crie uma forma de censura nas salas de aula.

UNIVERSIDADES BRASILEIRAS NÃO ESTÃO “FORMANDO” PROFESSORES

Especialista e Referência nacional, Bernardete Gatti discorre sobre os rumos da formação docente no Brasil.

Especialista Bernardete Angelina Gatti 
Qualquer discussão sobre formação docente no Brasil que não passe pelo nome de Bernardete Angelina Gatti sairá, de cara, empobrecida pela ausência do olhar – e de tantas pesquisas e interlocuções – de uma das intelectuais mais ativas do país neste tema nas últimas décadas. Pode-se até discordar dela, mas não prescindir de seus pontos de vista.
Atual diretora vice-presidente da Fundação Carlos Chagas, onde orienta o setor de pesquisas, e membro do Conselho Estadual de Educação (São Paulo), esta professora graduada em pedagogia pela Universidade de São Paulo e doutora em psicologia pela Universidade Paris 7, sob orientação de Paul Arbousse-Bastide, um dos docentes franceses que ajudaram a fundar a USP, Bernardete é categórica em suas afirmações.
Acredita, sobretudo, no trabalho coletivo das escolas e nas ações integradas entre estas e as universidades, desde que haja disposição mútua para interlocução. E que as inovações verdadeiramente significativas vêm e virão dessas interlocuções.
Para saber qual formação de professores queremos, não deveríamos antes saber para que educar e qual educação queremos?
Não tenho dúvida disso. Sem uma ideia projetiva da educação básica, discutir a formação de professores fica em cima de pressupostos, ou de alguns conhecimentos objetivos da formação dada atualmente, e daquilo que vem sendo colocado, de modo desarticulado, por vários segmentos da sociedade. Não reconhecemos e nem sempre percebemos como se manifestam os múltiplos olhares e discursos sobre a formação de professores e as demandas da escola. Em geral, ficamos nas grandes dicotomias, mas hoje a sociedade é muito mais heterogênea. Há variadas formas de requisitos para a educação e segmentos sociais que pensam de modo muito divergente.
Poderia dar exemplos?
Há segmentos que acham que a formação acadêmica, na educação básica, deveria centrar-se em dar ao aluno o necessário para trabalhar com conhecimentos científicos, matemáticos, com as questões da vida, da biologia. Defendem uma formação genérica, o que não quer dizer leve. Lembrando, em relação à discussão do currículo, que já tivemos em nossa história, nos anos 80, uma formação mais genérica, com um núcleo duro de disciplinas, mas com flexibilidade para preencher parte desse currículo com questões locais e regionais. Não foi adiante, pois a discussão não se resolveu. Há outros segmentos que defendem que a educação básica deveria ser eminentemente pragmática, ou seja, dar apenas aqueles instrumentos para a vida cotidiana, basicamente língua portuguesa e matemática útil – que trabalhe com aplicações, não a matemática acadêmica ou para formar o pensamento, a lógica. E outros que demandam uma revolução na formação, iniciando-se até mesmo na pré-escola, trazendo os dilemas de ponta do conhecimento para formação tanto de crianças como de jovens e adolescentes. E há outras. Por enquanto, o que está mais em pauta é a ideia de dar uma formação mais genérica, básica, culminando com uma formação mais literária e científica no ensino médio. Tem também outra posição, que propugna que haja um currículo diversificado a partir do ensino fundamental 2. Ou seja, os alunos que têm preferência por formação humanista teriam um currículo diversificado, diferente daqueles que mostram interesse por uma formação mais das ciências exatas, ou de tecnologias. Muitos acham que essa flexibilização deveria começar no 8º ou 9º anos, porque aí o adolescente já começa a manifestar suas motivações e preferências cognitivas.
Qual o melhor caminho?
Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Pensei que, com a discussão da Base Nacional Comum, fôssemos chegar a um ponto de consenso, mas essas questões dos diferenciais não foram levantadas. Estamos sempre trabalhando em cima de um modelo já culturalmente incorporado às representações de certas lideranças, e não conseguimos sair disso para ver o conjunto de demandas e concepções presentes para achar um caminho intermediário. As discussões se polarizaram demais.
A Base chega meio atropelada?
Chega sem trazer um pensamento renovador. Precisaríamos pensar a estrutura curricular da educação básica de maneira mais criativa, nos liberando um pouco desses arcanos que existem na cultura desde o século 19. A proposta da educação infantil me parece que supera algumas concepções arraigadas sobre o trabalho com a criança. Mas não vejo isso nos outros segmentos, em que ficamos numa discussão de conteúdos disciplinares específicos. Esse pode ser um ponto de partida, mas não de chegada. Para avançar, seria preciso que grupos diferenciados entrem em um debate mais ampliado, vendo os modelos que daí surgiriam, e trabalhando sobre eles.
Como vê a formação oferecida pe­las universidades públicas pa­ra a docência?
De modo geral, nem as públicas nem as privadas estão realmente formando professores. A crítica às universidades públicas é que elas não faziam uma associação adequada entre as teorizações e as práticas, que é um movimento de interdisciplinaridade, difícil, inclusive para os professores doutores que estão nessas universidades, pois a formação deles é disciplinar, e não interdisciplinar. Como de certa maneira abandonamos os estudos de didática e das práticas de ensino com teorizações adequadas e fortes, eles também não têm onde se apoiar. No Brasil, deixamos de lado essas questões, confundindo didáticas e práticas de ensino com tecnicismo, confusão que estamos começando a desfazer. Não tenho dúvida de que as universidades públicas formam um corpo discente um pouco melhor, pois já trabalham com um grupo selecionado, estudantes que vêm para a universidade com vontade de estudar. E têm um currículo acadêmico bem mais forte. Então, saem com uma formação acadêmica melhor, mas não com uma formação para ser professor.
Como vê as licenciaturas com modelo de formação interdisciplinar, tal como a Faculdade do Sesi/SP está propondo? Não há o risco de faltar a base disciplinar?
A ideia, nesse caso, é partir do problema complexo que emergirá da associação dos conteúdos das disciplinas com os conteúdos da pedagogia, para recuperar o que é da disciplina. É um caminho inverso. Dou um exemplo na formação da medicina. Muitas faculdades hoje têm a base propedêutica que tínhamos e temos em muitos cursos. Ou seja, você tem anatomia, fisiologia, todas essas disciplinas de base, mas que agora já partem para analisar situações-problema. Com esses estudos de caso, o aluno tem de recorrer ao conhecimento disciplinar, mas já com uma visão interdisciplinar. E funciona. A Universidade Harvard, por exemplo, está com uma proposta nessa linha, mas não é a única, pois antes Oxford, na Inglaterra, e outras já fizeram isso. Aqui mesmo já tivemos experiências em Marília e outros lugares com esse tipo de formação. Isso exige que os professores formadores já tenham feito seu caminho disciplinar e interdisciplinar. E não de uma área, mas de duas ou três. Se você vai lecionar história da educação, tem de ter conhecimento da historiografia, da antropologia, da sociologia e trazer essa visão interdisciplinar para a história da educação. Se não, fica ali no fato histórico. Os grandes historiadores dão um salto, porque têm uma cultura interdisciplinar ampliada. Ao professor se poderia dar essa cultura interdisciplinar ampliada. Poderíamos ter cursos que formam a partir de situações-problema. Quando a resolução no 2 de 2015 do Conselho Nacional de Educação propõe que o aluno comece o estágio logo no primeiro ano, não é para ele dar aula, e sim para que possa ver a escola e problematizar a sua realidade, saber o que é ser um profissional professor, de forma concreta. Com isso, pode-se construir um currículo bem diferenciado.
Temos exemplos?
Vi alguns currículos muito interessantes aqui no Estado de São Paulo, houve renovações muito grandes em áreas disciplinares aqui na USP como, por exemplo, filosofia, matemática, física, até na ECA (Escola de Comunicações e Artes), propostas para formar professores de modo diferente. Mas ainda são casos isolados. Na Unicamp, tem um belíssimo programa de licenciatura de física e química, bem feito, bem pensado. Você pode pensar em formações polivantes de diferentes naturezas. A proposta do Sesi caminha nessa direção, mas o projeto ainda não nos dá a ideia do que vai ser o currículo concreto, pois ainda é um projeto em construção.
E na América Latina?
Vi uma abordagem interessante em Buenos Aires. Há um horário das disciplinas-base – antropologia, história da educação, sociologia – só que tem um momento disciplinar, com muitas horas, em que esses professores trabalham com os alunos na observação de escolas e comunidades. Os alunos trazem suas observações e os professores fazem interpretações à luz da sua disciplina sobre aquela situação. E formam um consenso multidisciplinar complexo sobre ela. Os alunos vão aprendendo a olhar as realidades escolares, usando conhecimentos disciplinares, mas com um olhar integrado. Só que isso exige do professor uma dedicação muito grande, pois tem de trabalhar com os outros. E isso é feito nos quatro eixos de formação para o professor. Nas universidades públicas, não seria difícil termos projetos inovadores, pois muitos docentes são contratados em regime de dedicação exclusiva; poderia haver uma presença maior, mais integrada, nas atividades de ensino. Já nas particulares, isso é bem mais difícil, pois veriam isso como custo. Mas não é impossível.
E a proposta do conselheiro do CNE César Callegari de fazer com que todas as faculdades de pedagogia, públicas ou privadas, tenham uma escola, de sua propriedade ou associada?
Não acredito nisso. Essa escola vai ser tão diferente da rede que não servirá de inserção real do professor. Já vivemos isso, com os colégios de aplicação. Defendo que uma faculdade ou universidades que têm licenciaturas deveriam ter convênio com um conjunto de escolas em várias partes do estado ou da cidade, de tal maneira que seus alunos possam percorrer realidades diferentes. É muito diferente estar numa escola pública, mesmo que atenda uma população mais ou menos da mesma natureza, no centro de São Paulo ou em Itaquera. Há culturas diferenciadas de quem está aqui e de quem está lá, inclusive das famílias. Prefiro convênios com as redes públicas que organizassem o estágio e em que se pudesse atuar nas escolas com um projeto compartilhado com elas. No caso dos colégios de aplicação, às vezes a faculdade manda no colégio, aí ele se torna uma exceção da exceção da exceção, começa a selecionar os alunos.
Como definir um currículo nacional de formação docente?
A resolução no 2 de 2015 dispõe sobre isso, está lá a Base Nacional Comum de Formação de Professores. Não está definido nos detalhes, mas estão definidos os conhecimentos importantes que um professor deve ter. Pela legislação, é de alçada do CNE definir as diretrizes nacionais de educação, elas são mandatórias. Todos os estados, municípios, instituições públicas e privadas têm de se alinhar. E aí está a inteligência que vejo nas novas diretrizes, embora sejam um pouco cheias de detalhes argumentativos, mas na essência trazem a possibilidade de ser criativo e, ao mesmo tempo, ter uma diretriz clara. Isso é uma qualidade da resolução. Tomara que as instituições tenham competência e vontade política para mudar a formação de professores. O CNE lançou as bases, todas as instituições terão de começar a adaptação a partir do 2o semestre de 2017. Sei que há mobilizações, pois tenho sido convidada para um monte de coisas, mas não sei se todas o farão. Pela resolução, a formação tem de ser feita em pelo menos 4 anos e 8 semestres, não sei como as particulares vão se adaptar a isso. Uma verdadeira transformação nessa formação só viria se houvesse uma integração entre todas as licenciaturas, num centro de formação de professores, num lócus em que as faculdades de educação, de física e química contribuíssem para formar um profissional professor. É uma coisa que discuto há muitos anos: por que existe uma faculdade de medicina, de engenharia e não existe uma faculdade de formação de professores?
E aí juntaríamos os conhecimentos disciplinares com as ciências da educação…
Isso, não é para dissolver faculdades de educação ou o instituto de base que contribui, mas para juntar e, ao fazer isso, teria de haver uma coordenação vivaz que permitisse a interlocução entre eles e a geração de projetos formativos diferenciados. Como a Base Comum, que é você ter uma cultura ampliada nos fundamentos da educação e uma formação bem assentada em didáticas e práticas de ensino. Se essas competências que estão distribuídas fossem condensadas, teríamos a possibilidade de construir a interdisciplinaridade a partir da disciplinaridade, mas propondo um currículo que renovasse a formação. Isso leva tempo? Sim, mas se começarmos já, teremos o tempo de fazê-la.
Não é preocupante o nível de desistência de jovens docentes em início de carreira?
Dos poucos dados existentes sobre isso, não dá para falar que a maioria desiste. Há grande procura pelos cursos de pedagogia. Claro que muita gente que busca esses cursos não quer ser professor e o curso tem seus problemas para formar alfabetizadores. O que nós não temos é procura para disciplinas como história, geografia, ciências sociais. Há poucos cursos para o tamanho do Brasil. Os gaps são nessas áreas. Agora falando em gestão de educação no nível dos estados e municípios, os professores iniciantes não recebem apoio suficiente para que se sintam com um referencial na rede, apoiados através de material, orientação, suporte, eles é que têm de procurar os colegas para se orientar. Se há um coordenador pedagógico sensível a isso na escola, procura dar esse apoio, essa formação. Mas a desistência não é alta, e vou dizer por quê: os licenciandos que procuram trabalhar como professores provêm de camadas sociais menos favorecidas. O salário de um professor é um diferencial para eles. Não é para a classe média, média alta, mas sim para essa camada ascendente. Ele fica na carreira, pois sabe que dali a cinco anos tem X% de aumento, tem estabilidade. Mesmo nas licenciaturas mais sofisticadas, como física, química, matemática, eles têm um nível socioeconômico menor do que os que procuram outros cursos, é um salto social.
E como anda a formação dos coordenadores pedagógicos? Modernizou-se nos últimos anos?
Teoricamente, sim, pois temos bons autores e boas pesquisas sobre a coordenação pedagógica. Na prática, há muitos problemas. Primeiro porque, se você define que o coordenador pedagógico deva ser aquele que vem da pedagogia, o curso não sabe bem o que forma. O diálogo desse formado com pessoas da história, da matemática, da geografia, mesmo tendo feito alguma especialização em coordenação pedagógica, não é fácil, justamente porque ele não tem uma formação interdisciplinar que lhe permita um diálogo fecundo. Não se sustenta o discurso de que “ah, ele pode ver o aspecto pedagógico”. Não há aspecto pedagógico independente de conteú­do, da linguagem daquela área. São linguagens específicas e, se ele tem dificuldade, não é bem recebido. Em outros sistemas, o coordenador pedagógico pode vir de qualquer área – um professor de matemática ou de história que se candidata ao cargo. Em geral, recebe uma formação continuada para isso. Nesses casos, são muito poucos os professores de outras áreas que se candidatam a ser coordenadores pedagógicos. É mais comum que se candidatem a ser coordenadores de área – ciências, matemática, ciências humanas etc. – nas redes onde isso existe. Nas poucas pesquisas que tenho lido sobre esse tipo de coordenação, ela funciona bem. Não temos ainda uma opção clara de que tipo de coordenação pedagógica queremos ter nas escolas. Defendo que deveria haver um curso de pós-graduação, um mestrado profissional voltado à formação de coordenadores pedagógicos. Aí poderia vir de qualquer área, mas teria uma formação psicopedagógica forte, didática, interligada a diferentes conteúdos, linguagens e lógicas. Essa é a formação que precisaríamos ter, mas para isso precisaríamos de uma indução, em nível federal ou esta­dual, o que demanda financiamento.
Hoje, fala-se muito em metodologias ativas de ensino, como instrução por pares, estudo de caso etc. O que é propriamente novo e o que tem mais potencial de estimular o aluno?
Pois é, há muita novidade que não é novidade, e muita novidade que não funciona na escola. A sala de aula invertida, por exemplo, só pode ser fecundamente utilizada após um tempo de aculturação da criança na vida escolar. Porque ela vem de uma vida familiar, ou comunitária, ou de rua, um tanto indisciplinada, solta, e a vida escolar exige concentração e atenção.
Seria mais para o ensino médio…
Sim, e mesmo assim você teria de ter tanto recurso… A nossa população ainda não tem uma situação socioeconômica e cultural equitativa, somos muito desiguais, a maioria não conta com recursos culturais acessíveis, por mais que use celular. Nos entusiasmamos com coisas que às vezes não têm muita objetividade. Então, desconfio de alguns modismos. São coisas muito deste momento da sociedade contemporânea, da imagem, do novo, ou de travestir de novo algo que não é efetivamente novo.
Mas de todas essas coisas, você destacaria algo que tem mostrado bons resultados?
Vi, por exemplo, de estudos de caso de escolas públicas de Chicago, de escolas públicas na França e na Itália que o que funciona mesmo é uma equipe escolar mais fixa, mais perene, que compartilha um período maior dentro da escola. Nos EUA há vários estudos de caso que mostram isso. Esse compartilhamento deve ter um sistema de apoio bem desenvolvido – não de imposição, de apoio –, com material pedagógico, possibilidades. E deixar a comunidade ser criativa. A inovação em geral é produzida em pesquisas que a universidade faz e propõe. Por exemplo, tivemos o Pibid. Não foi tudo, mas a maioria dos projetos trouxe inovações importantes, em termos de construção e teste de material didático, de organização de feiras de ciências com novos modelos. Quando você dá condições e põe interlocutores qualificados, há criatividade nesse universo. A chave é criar condições para compartilhamentos efetivos, no caso da escola com equipes fixas, e no caso da universidade, de os professores conversarem, manterem uma interlocução constante – para definir currículo, quem vai trabalhar com o quê. Tem professor que nem sabe o currículo de formação docente da sua escola. Vai lá e apenas dá a sua aula.