“Baaria”: lições de história
Cloves Geraldo *
Cloves Geraldo *
Painel traçado pelo diretor Italiano Giuseppe Tornatore centra-se na luta do proletariado da região de Palermo, e passeia por 50 anos da história de seu país.
Quase uma tradição no cinema italiano, o painel traçado pelo diretor Giuseppe Tornatore em “Baaria – A Porta do Vento”, a partir de três gerações da família proletária Terrenuova, passeia por 50 anos da história da região de Palermo, Sicília. A exemplo de “Novecento”, o afresco de Bernardo Bertolucci, Tornatore dota seu filme de inúmeras sutilezas políticas sociais, culturais, urbanas e econômicas. Cada detalhe da narrativa evidencia as transformações ocorridas no período que vai da monarquia à república italiana do pós-guerra, passando pelo longo período do fascismo (1922/1945), muitas vezes com um corrosivo humor.
Este humor dota o filme de traço tipicamente italiano. Tornatore usa-o em várias sequências – das travessuras infantis de Peppino no pomar do latifundiário Don Giacinto (Lollo Franco) ao líder fascista que passeia sua farda negra pela praça enquanto o vendedor ambulante faz gracinhas atrás dele. Este recurso que permeia a narrativa atrai o espectador para o caráter dos personagens. A começar por Cicco (Gaetano Aronica), com o qual Tornatore inicia a epopéia da família Terrenuova nos anos 30. Proletário, ele sustenta a família, com a ajuda dos pequenos Peppino e Nino (Ficarra), fazendo todo tipo de serviço.
Através da luta de Cicco e de seus descendentes, Tornatore mostra as relações de classe e a estrutura de poder da época, centrada na Máfia, no Estado (rei Vítor Emanuel, depois Mussolini), nos latifundiários e na Igreja. Em torno deles gravitam proletários de todos os matizes e, por consequência de sua organização, o PCI (Partido Comunista Italiano - 1921/1991), hoje PDS (Partido Democrático de Esquerda). E os novos atores políticos, surgidos com a queda do fascismo no final da II Guerra Mundial (1939/1945): PDC (Partido Democrata Cristão) e a burguesia sucessora da decadente nobreza italiana.
Esta delimitação de espaços políticos contribui para a evolução dos entrechos, iniciados com o brilhante travelling/voo de Pietro, filho de Peppino (Francesco Sciana), sobre Bagharia (Baaria). Num longuíssimo flashback, ele revisita as gerações dos Terrenuova, dos anos 30 aos 60, fechando com humor a história da própria Palermo. Através destes voos, Tornatore destaca a mutação da vila Bagharia rural para a Bagharia urbana de classe média.
E a cada entrada em cena de uma nova geração de Terrenuova, ele acrescenta novos detalhes: o da permanência da memória e das sucessivas lutas do proletariado. Da primeira nas esculturas que adornam o palácio da desaparecida nobreza, que traduz o passado da cidade, e da segunda na luta de Cicco e de Peppino para organizar a classe operária. Assim, a epopéia de sua família é a da própria Bagharia para alcançar seus objetivos.
Tornatore também usa o romance de Peppino e Mannina (Margareth Madè) para mostrar o quanto estão umbilicalmente ligados. As edificações onde mora o casal vão mudando – da paupérrima casa da sogra, passando por outra mais espaçosa, até chegar à cobertura da maturidade do casal. Há romance, drama, fantasia em “Baaria – A Porta do Vento”, mas o que predomina na epopéia dos Terrenuova é o contexto político-ideológico. Militante do PCI, Peppino se envolve numa série de tarefas para organizar o proletariado, mescladas a sua relação com Mannina e ao humor.
Numa delas, ele e seus camaradas vão à casa de respeitado militante para que este lhe empreste seu casaco para uma reunião em Moscou, na época de Stalin. É uma sátira ao líder soviético e uma gozação com sua rigidez. Mas ao usar o humor Tornatore termina mostrando o distanciamento do PCI da União Soviética (1917/1991) dos anos 40 até o Eurocomunismo. Uma polêmica que até hoje rende acaloradas discussões. São questões que escapam ao espectador atual, desacostumado aos embates político-ideológicos, nestes tempos de crise neoliberal.
Isto fica evidente numa das mais belas e elaboradas sequências do filme, que trata de questão urgente do Brasil de hoje. De manhã, ele, centenas de dirigentes, militantes, proletários e camponeses ocupam uma área improdutiva, com as bandeiras vermelhas do PCI. Há ameaças, confronto e violência. Daí ele emerge como líder e é eleito para o parlamento local. São os anos de consolidação do PCI na Itália. E é desta forma que ele chegará à maturidade.
Em meio a este gigantesco painel, Tornatore ainda reverência o cinema italiano do período. Não é pouco para um filme que tem como fio central a paixão de Peppino por Mannina. Teimosos, ela mais que ele, buscam superar as barreiras impostas pela família dela e a atitude do padre que por ele ser comunista reluta em casá-los, rendendo outra gozação de Tornatore com o obstaculador cura e, sem dúvida, com Peppino. Não deixa de ser salutar. Afinal, é preciso rir, ainda que seja de si mesmo. E a história não enseja apenas drama e tragédia. É o que entende Peppino ao arremessar a pedra contra três pontiagudas rochas: além de lutar é preciso acreditar que é possível obter o “impossível”.
* “Baaria – A Porta do Vento”. “Baaria”. Drama. Itália/França. 2009. 150 minutos. Direção/roteiro: Giuseppe Tornatore. Fotografia: Enrico Lucidi. Música: Ennio Morricone. Elenco: Francesco Sciana, Margareth Madè, Monica Bellucci, Raoul Bova.
* Jornalista e cineasta, dirigiu os documentários "TerraMãe", "O Mestre do Cidadão" e "Paulão, lider popular". Escreveu novelas infantis, "Os Grilos" e "Também os Galos não Cantam".