Em meio às discussões sobre a Base Nacional Comum Curricular, debate coloca em pauta modelos de flexibilização e o temido aprofundamento de desigualdades
Por, Flávia Siqueira
Quais os modelos possíveis para o ensino médio? Não é possível discutir ajustes ou reformas na etapa final da educação básica sem considerar a heterogeneidade na origem, nas necessidades e nos desejos de seus estudantes, nas diferentes trajetórias e regimes de trabalho dos docentes, nas particularidades do local e da região em que cada escola está instalada. É preciso tratar o ensino médio no plural e, justamente por isso, é quase consenso que a etapa deve ter algum grau de flexibilidade curricular. Por outro lado, também é necessário cuidado para que o conjunto de opções e sua estrutura não aprofundem ainda mais as desigualdades.
Segundo a proposta preliminar da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), 40% do conteúdo da educação básica deverá ser determinado regionalmente, considerando as escolhas de cada sistema educacional. O Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) divulgou, no começo de março, seu posicionamento sobre a Base. A organização defende que o documento seja “um ponto de partida para o desenvolvimento de diferentes arranjos curriculares” e que as competências e os objetivos de aprendizagem relativos ao ensino médio não estejam seriados, mas “apresentados de forma a deixar clara sua progressão”.
Para o Consed, as competências descritas pela Base devem ocupar, no máximo, 1.600 horas da carga horária total do ensino médio – considerando-se uma carga horária total mínima de 2.400 horas. O restante do currículo deve ser preenchido por “opções de aprofundamento e formação”, considerando possibilidades de formação técnica e aprofundamento em uma de quatro áreas de conhecimento: linguagens, matemática, ciências da natureza e ciências humanas. Para estruturar o modelo, o Consed propõe a construção de uma referência para a flexibilização no prazo de dois anos após a aprovação da BNCC, em parceria com o MEC. Na mesma linha, o Conselho também apresentou suas propostas dentro do Projeto de Lei nº 6.840, de 2013, que altera a Lei de Diretrizes e Bases e formaliza a visão que os secretários têm para o ensino médio.
Rossieli Soares da Silva, secretário-coordenador da Iniciativa Ensino Médio do Consed e secretário de Educação do Amazonas, diz que o ensino médio atual tem ênfase em generalidades e se tornou excessivamente conteudista. Ao defender a proposta de aprofundamento por áreas de conhecimento, exemplifica: “se o aluno vai muito bem em matemática, mas tem dificuldades em português, a escola o colocaria para ter aulas de reforço em português, quando ele poderia ser lapidado em matemática”. A possibilidade de o estudante se aprofundar no que faz de melhor, afirma o secretário, aumentaria a motivação do aluno e ajudaria a “despontar talentos”. A proposta foi criada a partir das percepções das redes estaduais, que respondem pela maioria das turmas de ensino médio no país.
O “enciclopedismo” é outro ponto abordado pelo Consed. Em sua lista de recomendações, o conselho defende que a Base se limite “ao que for essencial ao desenvolvimento de todos os estudantes”, com a definição de padrões de desempenho. Antônio José Vieira Neto, secretário estadual de Educação do Rio de Janeiro e coordenador da iniciativa Base Nacional Curricular no Consed, diz que, enquanto a primeira versão da Base apresenta, no caso do ensino fundamental, conteúdos ainda passíveis de ajustes, mas mais coesos, o documento ainda repete a “estrutura conteudista demais” para o ensino médio. “A Base Nacional não pode ser um currículo. É a partir dela que nascerá o currículo.”
Agora, é preciso esperar o documento final da BNCC para verificar o quanto essa e as demais propostas e contribuições recebidas serão incorporadas. Após a publicação da segunda versão, ocorrida em 3 de maio, estava prevista a realização de seminários para que as secretarias estaduais e municipais façam observações. O Plano Nacional de Educação (PNE) determina que o documento final seja encaminhado para análise e votação do Conselho Nacional de Educação (CNE) até 24 de junho. Há expectativa, no entanto, sobre a manutenção do calendário após o afastamento da presidente Dilma Rousseff.
► Desigualdades
Também no começo de março, o Centro de Pesquisas e Estudos em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec) divulgou os resultados preliminares da pesquisa Ensino Médio, Qualidade e Equidade: Avanços e Desafios em Quatro Estados: CE, GO, PE e SP. O estudo apresenta dois objetivos centrais: descrever e analisar políticas implantadas pelos quatro estados brasileiros para o ensino médio e avaliar como escolas situadas em territórios vulneráveis “respondem aos desafios e às possibilidades criadas por essas políticas”. Os estados do Ceará, Goiás, Pernambuco e São Paulo foram escolhidos pelo avanço em indicadores como o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) e por implementarem, de forma mais abrangente, “medidas que outros estados vêm colocando em prática de forma mais restrita” – entre elas, oferta de matrícula em tempo integral, investimento em reformas curriculares, monitoramento de processos pedagógicos e formação continuada de docentes.
Sobre o risco de um novo modelo de ensino médio aprofundar desigualdades, Antônio Neto e Rossieli da Silva, do Consed, afirmam que é justamente o formato atual que faz isso – e, portanto, é preciso mudar. “Desigualdade está em tratar os desiguais de forma igual. Sabemos que nossa proposta é divergente, mas o importante é que, no meio do silêncio, surgiu uma proposta”, afirma Silva. “A desigualdade existe com o ensino médio que temos hoje, com uma disparidade muito grande entre os períodos integral, parcial e noturno”, complementa o secretário do Rio de Janeiro. Os integrantes do Consed afirmam que é necessário começar as mudanças por algum ponto – no caso, o currículo – e que outras questões relacionadas devem ser tratadas em diferentes âmbitos e momentos.
Uma das conclusões a que chegaram os pesquisadores é que “a execução das políticas de diversificação da oferta de ensino médio produz desigualdades educacionais”. Segundo Antônio Augusto Batista, coordenador de pesquisas do Cenpec, em alguns casos a disparidade é tão grande que chegam a se formar “sub-redes dentro da rede”. Um dos exemplos mais claros está na comparação entre o ensino médio noturno e o cursado em tempo integral: neste último, é maior o nível socioeconômico dos estudantes, e quase 80% dos alunos apontam como razão para frequentar sua escola o fato de ela ser considerada boa. No noturno, o nível socioeconômico é mais baixo e quase 65% dos alunos dizem frequentar a escola por ser perto de casa ou a única em seu bairro ou município. O resultado dessas diferenças pode ser uma “seleção social”.
Ao comparar os períodos parcial e integral, apenas no Estado de Pernambuco não foi encontrada a mesma correlação quando considerado o nível socioeconômico – ou seja, os dados indicam que “as escolas de tempo integral pernambucanas não tendem a recrutar predominantemente alunos de nível socioeconômico mais alto”, como aponta o relatório da pesquisa. Segundo dados do Censo Escolar de 2014, todos os municípios do estado têm escola integral – e talvez esteja aí um dos motivos de sua rede ser uma exceção no critério estudado. Como mesmo os municípios pequenos e de renda menor têm pelo menos uma escola integral, isso garante que alunos de menor nível socioeconômico tenham acesso a ela. As turmas, assim, tendem a ser mais heterogêneas.
Nos demais estados, os municípios que não têm escolas integrais são maioria e, em seu conjunto, apresentam média de renda familiar per capita menor do que o conjunto de cidades com uma ou mais instituições com ensino médio em período integral.
“A flexibilização por si só não é um problema. O jovem tem o anseio de escolher”, afirma Batista. A questão é como esses modelos são estruturados e se, ao mesmo tempo, é dada aos jovens a chance de pensar de maneira crítica sobre suas opções. Nem sempre as decisões que tomamos são feitas de maneira totalmente livre. “As escolhas que os jovens fazem muitas vezes são ditadas pelas condições de vida”, explica o pesquisador. “É preciso falar sobre isso. Quanto mais conhecemos o modo como a sociedade nos constrange, mais nos libertamos desse constrangimento.”
Embora ainda estejamos no começo da discussão sobre o que queremos para o ensino médio, a pesquisa do Cenpec alerta para não perdermos de vista questões importantes. Será que todos os estudantes terão, realmente, a chance de escolher entre todas as opções disponíveis? Ou para alguns – provavelmente os mais pobres – sobrarão as opções menos “valorizadas”? Ou, talvez, o que a escola mais próxima tem condições (limitadas) de oferecer?
Antônio Batista também põe em questão o tema da especialização. “Não acho que seja um caminho. O próprio mercado de trabalho quer pessoas adaptáveis a diferentes ambientes e contextos.”
Batista, do Cenpec, afirma que há o que aprender com as experiências dos estados pesquisados. Ele dá como exemplo a disciplina Projeto de Vida, inserida nas escolas em tempo integral de São Paulo. “Desde que as pessoas tenham conhecimento dos determinantes sociais e de que essa abordagem não seja feita de maneira burocrática, pode apontar, sim, um caminho.”
Maria Sílvia Sanchez Bortolozzo, coordenadora de Ensino Integral de São Paulo, diz que o objetivo do programa é formar alunos “autônomos, solidários e competentes”. Ela explica que as atividades da disciplina Projeto de Vida começam no ingresso dos alunos. Eles expõem seus planos e conversam com o professor. Depois, o trabalho segue com duas aulas semanais. Segundo Maria Sílvia, os professores responsáveis pela disciplina são escolhidos pelos diretores, por perfil. Não há uma formação específica, mas os docentes passam por orientação.
Outras características do programa em São Paulo incluem disciplinas eletivas, que podem ser criadas pelos professores em discussão com os alunos – como exemplo, Maria Sílvia cita uma disciplina de maquetes – e uma matriz curricular integrada, em que não há uma divisão por turno de disciplinas obrigatórias e eletivas.
► Trabalho e ensino superior
Uma crítica recorrente ao formato atual do ensino médio é de que é muito pautado pelos vestibulares e pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Nesse sentido, o Consed propõe que o Enem seja revisado como consequência da BNCC, “de tal forma que não inviabilize a proposta do Novo Modelo de Ensino Médio”. Em sua carta de princípios sobre o ensino médio, destaca que menos de 20% dos jovens de 18 a 24 anos frequentam o ensino superior.