sexta-feira, 16 de outubro de 2009

16 de Outubro de 2009 - 0h43

“Anticristo”: Da mulher como ser histórico

Cloves Geraldo *

Em filme que trafega pelos gêneros suspense e terror psicológico, diretor dinamarquês, Lars von Trier, põe em discussão a permanência dos arquétipos que bloqueiam o entendimento do papel da mulher na sociedade moderna

“A natureza é a igreja do diabo”, diz Ela (Charlotte Gainsbourg) a Ele (Willen Dafoe) numa das cenas significativas de “Anticristo”, do dinamarquês Lars von Trier. Diz mais sobre todo o filme, que outras frases, não menos emblemáticas da trama. Em princípio pode-se pensar na floresta, com seus intricados códigos e ritos. Depois, com os obstáculos que surgem diante de do psicoterapêuta Ele, a frase expande o significado e o espectador percebe que se trata da natureza humana. Esta sim traz em si o arcaico que domina o ser humano. E emerge, muitas vezes, com uma multiplicidade de conteúdos. Dentre eles, o difícil equilíbrio entre a aceitação do outro e a superação dos instintos primitivos, que a religião ainda enseja. Eles surgem quando Ele mergulha não no inconsciente de Ela, mas no que esta constrói a partir das referências do sagrado e dos arquétipos da sociedade medieval, que ainda sobrevivem.
Pode parecer intricado, hermético, pelo contrário, Lars von Trier (“Dogville”, “Manderlay”) dota seu filme de uma trama cheia de suspense e de reviravoltas que mantém o espectador aceso. Parte de uma sequência quase banal, do casal Ele/Ela (o diretor não dá nome aos personagens) em pleno êxtase, enquanto o filho despenca da janela do apartamento. Uma mescla de inocência e prazer, que redunda em depressão e descontrole. A perda, em princípio, é o centro da trama. Ela é internada. Ele, mesmo com a resistência do médico da mulher, decide cuidar dela. Usa, para isto, o arcabouço da psicoterapia comportamental cognitiva, que aos poucos se mostra insuficiente. Existe sob aquele ser aparentemente depressivo outras camadas a serem desvendadas. E ele só o descobrirá ao levá-la para a cabana que eles possuem em plena floresta. Ali, entre árvores, plantas, rio e animais, cada gesto, atitude e reação irão mostrar-lhe a pessoa antes submersa.

Técnicas de psicoterapia revelam-se insuficientes

Existe uma mulher, Ela, com seus conflitos interiores, gerados pela perda do filho, e outra, mulher, Ela, cujo mundo exterior é revelado pelo entorno: floresta, animais, gravuras, escritos e reações. Enquanto ela luta contra sua depressão, projetando no marido seus impulsos destrutivos, ele ainda entende e tenta ajudá-la a superá-los. Mas quando ele descobre seu outro universo, Ele, ainda que psicoterapêuta; se perde. Seus parâmetros são insuficientes. Ele o percebe ao estar diante da corça em pleno parto, de pé, a fitá-lo; ou ao ver o pássaro, recém-nascido, ser devorado pelas formigas. E a raposa ensanguentada dizer-lhe: ”Reina o caos”. Existem leis próprias da natureza que não se harmonizam ou ao fazê-lo projetam um equilíbrio de difícil compreensão para Ele. Tudo se complica, quando Ele descobre que ela, que pesquisava para escrever uma tese sobre a execução de mulheres nas fogueiras da Idade Média, deixou o trabalho inconcluso.

Ele se vê diante de outra pessoa – Ela acumulou evidências sobre a permanência do arcaico na natureza humana. Tem a ilustrá-lo gravuras, pinturas e escritos. Isto ilustra quem ela própria é: dotada de instintos primitivos, dos quais ainda não se livrou. Vê-se, assim, incapaz de prosseguir o trabalho, pois se defronta com o próprio papel da mulher na sociedade medieval, que, malgradas as conquistas, ainda permanece - de reprodutora, de fonte de prazer, na qual se projetam o fetichismo, o desejo e a castração – esta configurada na ausência de pênis. Ele defronta-se, assim, com o desconhecido, algo para o qual não está preparado – a natureza em sua inteireza é maior e mais complexa do que suas técnicas terapêuticas. O gavião, ao comer o pássaro em formação, o mostra – ali não existe a complacência, a harmonia é ditada pela natureza do gavião – que se alimenta do que está à disposição, sem considerações éticas, morais ou conveniência.

Perda do filho se transforma em ódio

Daí fazer sentido a frase: “A natureza é a igreja do Satanás”. Todas as considerações sobre a construção da sociedade humanista, igualitária, pós-idade Média, caem no vazio. Os conflitos interiores, ditados pelo arcaico, permanecem. Se na sociedade medieval, controlada pela Igreja Católica, o papel da mulher era de ser apenas reprodutora, qualquer manifestação de desejo ou de autonomia, era punido com a fogueira. E a natureza aqui é identificada com o pecado; o que merece ser punido com o fogo, símbolo do inferno, reino de Satanás. Nestes termos o prazer é uma forma de pecado – enquanto o casal o desfrutava, o filho caia da janela. A autopunição de Ela se encaixa plenamente nestes parâmetros. Atestando a incompreensão que Ele, psicoterapêuta, tem da realidade construída (a sociedade de classe, com papéis definidos), mas que guarda seus arquétipos e ethos primitivos.

A incompreensão do papel histórico da mulher, revelado por suas manifestações exteriores (cartazes, desenhos, textos, a floresta e os animais), muda a maneira como Ele vê sua companheira. Aquela a quem queria tratar e curar; passa a ser empecilho para sua sobrevivência. Estabelece-se um conflito de vida e morte entre ambos. Lars von Trier encena-o em sequencias intensas, em que os papéis se invertem – ele que era passivo se torna ativo e vice versa. A paixão se transforma em ódio - um enxerga o outro como inimigo, a quem deve eliminar. Situações adversas à de “Império dos Sentidos”, quando Nagisa Oshima encena a castração, como resposta da amante ao desvario sexual do amado, e Ingmar Bergman a mutilação da genitália feminina, como símbolo da impotência da solitária moribunda, em “Gritos e Sussuros”. Ambos tratam do desejo, do prazer, enquanto Lars von Trier remete o espectador ao conflito entre o arcaico e o papel histórico da mulher.

Psicanalista analisa papéis dos parceiros

O psicanalista Sérgio Telles, em artigo para o Jornal “O Estado de São Paulo” (1) faz um leitura psicanalítica do conflito entre Ele e Ela. “Para a psicanálise, a destruição e a sexualidade são as duas forças em permanente conflito que movimentam o psiquismo. Elas são simbolizadas e estruturadas em dois momentos cruciais – nas vivências primárias com a mãe e, posteriormente, na configuração triangular edipiana. Para que a transição do primeiro para o segundo momento possa chegar a bom termo, é imprescindível que o sujeito passe pela castração simbólica, que o faz sair da relação indiscriminada e fusional com a mãe e aceitar o outro, com suas diferenças, entre elas e da maior relevância, a diferença sexual. Cada sexo passa de forma específica por este processo”.

“A partir deste contexto, no inconsciente, o homem tem dois motivos para temer a mulher. O mais recente em termos de desenvolvimento é o decorrente justamente da castração, cujo terror lhe é evocado pela visão do genital feminino. O outro motivo do temor que a mulher inspira no homem é mais arcaico e não é o medo da castração e sim o medo da aniquilação, da morte. Tal medo decorre de vivências muito precoces adquiridas pela criança no contato com uma mãe imaginada como não submetida à Lei, detentora de um poder absoluto, arbitrário e imprevisível, ao qual ela está completamente exposta em seu desamparo (...)”.

“Assim, quando a raposa diz para Ele que “O caos reina”, estaria se referindo ao caos do reino das mães, o caos da ausência da Lei paterna, o caos das organizações mais primitivas do inconsciente que subjaz sob a superfície consciente, racional, lógica. A enigmática cena final, na qual aparecem muitas mulheres na montanha onde ele está; talvez indique que, apesar de ter ele se livrado da mulher-mãe-bruxa, não pode mais escapar de seu poder, que retorna multiplicado. Não lhe restam mais saídas, está aprisionado no reino das mães, da natureza, da violência e da loucura”.

Filme envereda para o terror psicológico

Nestas sequências definidoras da trama em constante refundir, retirando delas significados que reforçam o entendimento do espectador, frente aos impasses de Ele, Lars von Trier envereda para o terror psicológico. Não se sabe de onde vêm as figuras que brotam da floresta – ele está cada vez mais fragilizado. As ferramentas que o tornavam tão seguro, agora o confundem. As reafirmações dela de que esteve sempre ausente, mesmo quando estava ao lado dela e do filho, se mostram verdadeiras. Ele nunca compreendeu o sentido histórico de seu papel enquanto mulher. Não é o físico, a fonte do desejo, ela é mais do que isto. Neste ponto, a narrativa se bifurca – Lars von Trier, roteirista, reforça o papel histórico dela, mulher, e as mudanças processadas e a processar. Fato para os quais Ele não atentou.

E o terror psicológico perde o sentido. Não é o terror em si, mas o simbolismo deste gênero, que leva ao transcendente, ao que foge ao entendimento de Ele. Lança, por isto, mão do sobrenatural. Justamente o que fazia a Igreja Católica durante a idade Média, ao identificar a mulher com o satanismo, notadamente quando entrava em seu ciclo menstrual. Daí a necessidade de eliminar o satanismo, a bruxaria, a fonte do sangue, e queimá-la na fogueira. Ele termina por chegar à mesma conclusão nestes tempos tecnológicos, confirmando a permanência do arcaico, do primitivo. Ainda que se veja a supremacia masculina no desfecho de “Anticristo”, ela tem um quê de enigma, de desarticulado. Sozinho, Ele é um ser perdido, incompleto. Ele só poderá ser o homem total, pleno, se conviver historicamente com Ela. Do contrário, viverá em permanente estado de perplexidade e ignorância.

Diretor faz novo uso do psicodrama

Nos rostos dos atores, cujos nomes dos personagens foram abstraídos, se estampa a tragédia. Com suas rugas e saliências, eles se entregam à encenação com intensidade. Não uma encenação qualquer; têm se ressaltar cada emoção contida ou desbragada, de horror total ou frustração, de ódio pelo outro ou instante de paixão. O psicodrama, tão usado nos anos 60, ressurge com outra leitura: a de que o naturalismo não se presta à discussão colocada na tela. Isso cria a tensão entre Ele e Ela. Eles se caçam, se agarram e se entregam um ao outro, no exato instante em que também se mutilam. A câmera de Trier os acompanha sem se intrometer, se mostrar, ela registra e registra e registra as reações deles em completa integração com o cenário rústico, descarnado; sendo os grandes espaços tão assustadores, quanto os da cabana onde Ele e Ela se digladiam.

Todas estas questões ilustram a perda, a dor, o vazio, e o desconhecimento que a sociedade tem da mulher, enquanto ser social, histórico. Não é uma tese que busca comprovar seu papel na sociedade moderna, tão só uma atitude do diretor perante a situação de gênero vivida pelas mulheres no Primeiro Mundo. Um tipo de mulher, classe média, cuja experiência é adversa à da africana, da asiática e da sul-americana de baixa renda. Os arquétipos, porém, são os mesmos. Talvez o filme choque alguns segmentos sociais, desacostumados ao cinema de Lars von Trier, dada à crueza de várias sequências. No entanto, é de choque em choque que se evolui – não se pode correr das ondas, quando estão à sua porta. Mergulhe. Vale a pena!


“Anticristo” (“Antichrist”). Terror psicológico. Dinamarca/Alemanha/ Polônia/ França/Itália. 2009. 109 minutos. Roteiro/Direção: Lars von Trier. Elenco: Charlotte Gainsbourg, Willem Dafoe.
(1)Telles, Sérgio, O Caos no “terrível reino das mães”, Caderno 2, Cultura, O Estado de São Paulo, domingo, 04 de outubro de 2009, pág. D12.






* Jornalista e cineasta, dirigiu os documentários "TerraMãe", "O Mestre do Cidadão" e "Paulão, lider popular". Escreveu novelas infantis,  "Os Grilos" e "Também os Galos não Cantam".
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