segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

O MISTERIOSO DESTINO DE CADA UM

Publicado em 13/01/2019 (em sua página)

''Qual é o meu destino? Não sei. Tomei como lema que era do meu pai que o vivia:”quem não vive para servir, não serve para viver”. A Deus a última palavra.''

Cada um de nós tem a idade do universo que é de 13,7 bilhões de anos. Todos estávamos virtualmente juntos naquele pontozinho, menor que a cabeça de um alfinete, mas repleto de energia e de matéria. Ocorreu a grande explosão e gerou as enormes estrelas vermelhas dentro das quais se formaram todos os elementos físico-químicos que compõem todos os seres do universo e também o nosso. Somos filhos e filhas das estrelas e do pó cósmico. Somos também a porção da Terra viva que chegou a sentir, a pensar, a amar e a venerar. Por nós a Terra e o universo sentem que formam um grande Todo. E nós podemos desenvolver a consciência desse pertencimento.

Qual é o nosso lugar dentro desse Todo? Mais imediatamente, dentro do processo de evolução? Dentro da Mãe Terra? Dentro da história humana? Não nos é dado saber ainda. Talvez será a grande revelação quando fizermos a passagem alquímica deste para o outro lado da vida. Ai, espero, tudo fica claro e nos surpreenderemos porque todos somos umbilicalmente inter-relacionados, formando a imensa cadeia dos seres e a teia da vida. Cairemos, assim creio, nos braços de Deus-Pai–e-Mãe de infinita misericórdia para quem precisa dela por causa de suas maldades e um abraço amoroso eterno para os que se orientaram pelo bem e pelo amor. Depois de passarem pela clínica de Deus-misericórdia, os outros também virão.

Eu de criança de poucos meses estava condenado a morrer. Conta minha mãe e as tias sempre o repetiam, que eu tinha “o macaquinho”, expressão popular para anemia profunda. Tudo que ingeria, vomitava. Todos diziam em dialeto vêneto: ”poareto, va morir”: “pobrezinho, vai morrer”.

Minha mãe, desesperada e escondida de meu pai que não acreditava em benzimentos, foi à benzedeira, à velha Campanhola. Ela fez as suas rezas e lhe disse: “dê um banho com essas ervas; depois de fazer o pão no forno, espere até ficar morno e coloque seu filhinho lá dentro”. Foi o que fez minha mãe Regina. Sobre a pá de retirar o pão cozido, me colocou lá dentro. Deixou-me, aí por um bom tempo.

Eis que ocorreu uma transformação. Ao me retirar do forno, comecei a chorar, diziam, e a procurar logo o seio para sugar o leite materno. Depois, minha mãe, mastigava em sua boca as comidinhas mais fortes e me dava. Comecei a comer e a me fortalecer. Sobrevivi. Estou aqui oficialmente velho com 80 anos. Há aí algum destino? Só o Supremo o sabe.

Passei por vários riscos que poderiam ter custado minha vida: um avião DC-10 em chamas rumo a Nova York; um acidente de carro contra um cavalo morto na pista que me quebrou todo; um enorme prego que caiu na minha frente, quando estudava em Munique e poderia ter-me matado se tivesse caído sobre a minha cabeça; Nos Alpes, a queda num vale profundo coberto de neve e camponeses bávaros, me vendo com o hábito escuro, me afundando cada vez mais, me retiraram com uma corda. E outros.

Norberto Bobbio me concedeu o doutor honoris causa em política pela Universidade de Turim. Entendeu que a teologia da libertação dera uma contribuição importante ao afirmar a força histórica dos pobres. É insuficiente o assistencialismo clássico ou a mera solidariedade mantendo os pobres sempre dependentes. Eles podem ser sujeitos de sua libertação, quando conscientizados e organizados. Superamos o para os pobres, insistimos no caminhar com os pobres, sendo eles os protagonistas e quem puder e tiver esse carisma, viver como os pobres como tantos fizeram, como Dom Pedro Casaldáliga.

Lembro-me que comecei meu discurso de agradecimento ao título, concedido por essa notável figura que é Norberto Bobbio: “venho da pedra lascada, do fundo da história, quando mal e mal tínhamos meios para a sobrevivência. Meus avós italianos e minha família, desbravaram uma região desabitada e coberta de pinheirais, Concórdia nos confins de Santa Catarina. Eles tiveram que lutar para sobreviver. Muitos morreram por falta de médicos. Depois fui subindo na escala da evolução: os 11 irmãos estudaram, fizeram a universidade, eu pude me formar na Alemanha. Agora estou aqui nessa famosa universidade”.

A pedido de Bobbio, fiz um resumo dos propósitos da Teologia da Libertação que tem como eixo central, a opção pelos pobres contra a pobreza e a favor da justiça social. Dei muitos cursos por esse mundo afora, escrevi bastante, enxuguei lágrimas e mantive forte esperança de militantes que se frustravam com os rumos de nosso país.

Qual é o meu destino? Não sei. Tomei como lema que era do meu pai que o vivia:”quem não vive para servir, não serve para viver”. A Deus a última palavra.

Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escreveu por seus 80 anos: “Reflexões de um velho teólogo e pensador”, Vozes 2019.

terça-feira, 16 de outubro de 2018

ERA DIA DOS PROFESSORES

Iniciei aquela manhã pensando, que para além de uma data lembrada em contraditórias gentilezas por alunos e saudações a tantos professores que não merecem ser lembrados, que a luz da razão nos salve desta heresia temporal. Mais que um dia de pequenos ufanismos e frágeis nostalgias, porque não um tempo de reflexão pela realidade a qual estamos inseridos. 

Mas, sem esquecer do merecido afago aos mestres que fazem diferença no modo como trabalham, estudam, se renovam continuamente, fazendo desta opção uma paixão, algo que vai além de mera profissão remuneratória com estabilidade meritocrata/correlata e planos pedagógicos pré-cambriano. 

Outro afago aos educadores populares, que fazem a diferença neste mundo de aparências por titulações, institucionalidades, posturas imorais e decadência no modo de ver-julgar-agir-transformar. Que todo academicismo improdutivo seja devorado pelo mofo e pelas traças da incompatibilidade com o real. 

E que a verdadeira formação possa levantar-se das cinzas onde jazia vitimada pelos 'Latos' e 'Strictos Sensus', quando tantos achavam/acreditam que as havia qualificado, mas que narciso quebrou o espelho ficando sem livro para ler e legiões de pseudos instruídos sem olhos para ver. Como uma autocritica por parte de meus iguais, só por hoje não quero levantar a cabeça. Sim, as Escolas estão 'cheias' de alunos perigosos, mas de professores também. Axé aos verdadeiros mestres - Sigamos!!!

Neuri Adilio Alves

terça-feira, 9 de outubro de 2018

COMIGO A RELAÇÃO É MUITO SIMPLES




Se é fascista vou cortando relações, e não é rompimento temporário, é para sempre, porque como o fascismo não se brinca e corteja, se combate. Recentemente cortei relações com casal de cunhados (compadres), com ex amigos e não tenho problema alguma em seguir fazendo com quem quer que seja:

► Não sou dos que dizem que não briga por politica, eu brigo, porque para mim politica é algo sério (diferente de politicagem/partidarismo/torcida estúpida/opinismo barato) - politica define sonho, justiça, vidas. 

► Politica não é lagoa de sapo onde todo mundo 'coaxa' alguma coisa, não é mera opinião apaixonada querendo violentar a razão; 

► Não tenho medo dos que vociferam com grosserias, assim como não confio no silencio 'desonesto' de muitos que se calam; 

► Não tenho paixão verde amarelo, tenho consciência multicultural, colorida, inclusiva com vez, voz e direitos aos que buscam com dignidade; 

► Não tenho compromisso com a conivência dos covardes e vocação para o silêncio desonesto; 

► Não dou chance para a estupidez se consolidar como ciência, porque democracia não é profissão para quem acha que pode dizer e fazer o que pensa sem limites. 

Abaixo pilantras dos três poderes, ao lixo do automatismo estúpido, corrupto e imoral que quer um país melhor espalhando mentiras. Se desonesto na construção das verdades que permeiam as relações sociais, desonesto na proposição e condução do país melhor.

No mais, rememorando o iluminista Jean Jaques Rousseau, que o ente superior me proteja dos 'amigos', dos laços consanguíneos e dos parentes por ocasião dos destino pois dos inimigos eu me cuido. 

Sou pelo Brasil da inclusão e justiça Social!


sexta-feira, 6 de julho de 2018

TEMPO DE APRENDIZADOS E CONSTATAÇÕES

O 'Complexo de Vira-Latas' cravado por Nelson Rodrigues desde aquela derrota histórica para o Uruguai no maracanã não é uma pontualidade de tal acontecimento, marco inicial ou final de uma constatação. Muito além, é um real sentimento de conformidade ao longo de séculos, referenciando inclusive com registro de 1845 quando o francês Arthur de Gobineau desembarcou no Rio de Janeiro e disse que os cariocas eram um bando de macacos. 

Sentir-se inferior não é uma condição pontual, é sim, uma real conformidade secular colonialista e que se faz presente em momentos como este de hoje, quando os latidos se repetem e denunciam o sentimento do colonizado que se revela, se afirma, justifica e orgulha-se de assim ser e sentir-se vencedor – porque há derrotas que são revigorantes para justificar as contradições. E vi, ouvi e presenciei neste dia desinibidamente em tantos conhecidos de perto e distante falastrões do especialismo midiático que antes contavam certezas. 

Parabéns a Bélgica os inferiores par-a-par por estatísticas, pelo panes et circus (pão e circo) midiático e também por suposto comparativo de elencos, mas que vencem por competência na definição e nos ganham como parte 'povo' com aquele latido desinibido de inferioridade secular! Patriotismo e Colonialismo deveriam ser entendidas como coisas diferentes, mas em sentimentos e ações dos desinibidos narcisos do fracasso, se tornam iguais. 

Viva o esporte, a vitória das amizades, e o título maior as boas consciências. Hoje não só aprendi algo novo, vi constatações reafirmadas e um pouco mais de desesperanças: não no futebol, mas quão míope é a visão, não de jogo mas de história, quão grande são as frágeis convicções e pequenas as boas perspectivas. 

Verdade ou mera constatação deste pontual ‘perdedor’: que falta faz um Gol de ouro na educação, derrotada há quinhentos anos. No resultado de hoje: complexo do latido 2 X 1 para esperança de dias melhores.

Neuri Adilio Alves - brasileiro conformado com o resultado, inconformado com o Estado! 

segunda-feira, 5 de março de 2018

Filosofia, Analogia e Escola

Analogia é proporção, relação, semelhança. Conhecer é relacionar, é reduzir a multiplicidade a uma ordem em referência a primeira. Pensamento lógico qualquer aparelho, um computador por exemplo, é capaz de fazer, mas analógico, somente o humano consegue fazer. O conhecimento é essencialmente analógico. 

A filosofia é analogia em um nível mais profundo. E, a analogia opera com o estético e o estético é poderoso, inspira o respeito, impacta. Quer exemplo maior do poder do estético que as imponentes catedrais góticas: é sedutora pela beleza, poderosa pela relação de proporcionalidade com o indivíduo e foram feitas para quando entrar dentro se sentir pequeno, insignificante - pelo silêncio, pouca luminosidade e grandeza de seu teto. 

O Estético tem que ser respeitado, pois a função da arte é causar impacto, mexer por dentro. Filosofia na escola, tem se algo para mexer por dentro, em qualquer disciplina. Ao professor que falta a presença do filósofo que inquieta o estudante, não convence, não estimula, não ensina, não alimenta a bolha de interrogações. 

Um pouco de filosofia na disciplina de matemática é possível dizer que a primeira medida circunferencial da terra foi feita por Eratóstenes, II séculos antes da era cristã, como decano na biblioteca de Alexandria mesmo sem qualquer ferramenta mecânica apontou ser a terra uma esfera de 350º, errando apenas por 10º concluído na era moderna. Dissecando um curioso registro em papiro sobre fatos na cidade de Alexandria e Siena. Uma pequena dose de filosofia ainda seria possível dizer que os matemáticos ensinados na escola em sua maioria eram filósofo de origem: Pitágoras, Euclides, Pascal, Descartes, Galileu, Newton, Kepler = tantos outros. 

Um pouco de filosofia na disciplina de física poderia ajudar na compreensão que se há apenas uma lei universal da física em nosso cosmo, então por analogia, o mesmo princípio da física que corrói a lata do carro, corrói o cérebro também. Que dá entropia ninguém escapa. 

Um pouco de filosofia em química é possível provocar a reflexão se de fato Lavoisier estava totalmente correto com seu 'nada se perde, nada se cria, tudo se transforma' - pois se tudo neste universo é energia, energia se dissipa no espaço e no tempo, logo tudo neste universo é constante perda. 

Um pouco de filosofia em Matemática, serve para dizer o que Galileu dissera que este universo é escrito em cifras matemáticas, sendo possível contabilizar energia, calorias, no beijo, no abraço, no afeto. 

Um pouco de filosofia na em Ciência naturais pode trazer presente porque Aristóteles, Leonardo da Vinci, Rene Descartes entendiam tanto de anatomia, alquimias. 

Um pouco de filosofia em língua portuguesa, ajudaria trazer presente as grandes obras, tratados de linguagem, a ferramenta da escrita, a paixão literária do canto dos ditirambos, das epopeias homéricas, do tratado do nominalismo em Crátilo de Platão, as metáforas, paráfrases e textualidades. 

Um pouco de filosofia em educação religiosa, se por um lado serviria para nos mostrar que a gente entra em crise porque o evidente se choca com as crenças, por outro serviria para dizer que antes do nada tem que existir algo, que não se explica, apenas se sente e que o sentir é sempre uma experiência pessoal. 

Um pouco de filosofia em história, sociologia e artes é um abraço de irmãs gêmeas que narram fatos, analisam  ilustram e interrogam o tempo.  Que as sandálias aladas de Hermes podem nos levar em feliz viagens aos confins de tantos saberes, sabores e seres! 

Uma pequena dose de filosofia na escola tem que servir para mostrar que a existência é, incessante dialética da exclamação, interrogação, e o terreno desta batalha é a família, a escola e o mundo. 

Que nojo da filosofia, ferramenta ameaçadora as mentes putrefatas deste país. Que nojo da filosofia, esta insignificante disciplina da escola, da vida e do nada - que caos, que monstro, que desprezo. 

Neuri Adílio Alves

sábado, 30 de dezembro de 2017

Feliz Ano Novo aos corações velhos

Por Frei Betto (publicado no inicio dos anos 2000)
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Feliz Ano Novo aos que praguejam sobre o solo árido de suas vida sem garimpar alegrias, e aos que amarram o espírito em teias de aranha sem se dar conta de que os dias tecem destinos. Também aos que desaprenderam o sorriso e abandonaram ao olvido a criança que neles residia.

Feliz Ano Novo aos que perambulam às margens da memória e semeiam ódio no quintal da amargura; guardam dinheiro na barriga da alma e penhoram a felicidade em troca de ambições; são náufragos de lágrimas, cegos aos arquipélagos da esperança, e fantasiam de asas as suas garras, voejando em torno do próprio ego.

Feliz Ano Novo aos que sonegam carinho e ainda cobram atenção, alpinistas da prepotência que os conduz ao abismo; àqueles que, alheios ao que se passa em volta, ilham-se na indiferença enquanto o mar arde em fogo; e a quem gasta saliva tentando se justificar por se disfarçar em pomba e agir como raposa.

Feliz Ano Novo aos que escondem o Sol no armário, sopram a luz das estrelas e põem espessas cortinas no limiar do horizonte. Aos que nunca tiveram tempo para a dança, ignoram por que os pássaros cantam e jamais escutaram um rumor de anjos.

Feliz Ano Novo aos que bordam iras com agulhas afiadas e desperdiçam palavras no furor de suas emoções desabridas; seqüestram dignidades e, como os colecionadores de borboletas, sentem prazer em espetá-las no interior de cavernas obscuras.

Feliz Ano Novo aos faquires da angústia e aos que, equilibrados num fio de sal, trafegam por cima de montanhas de açúcar. Também aos que jamais dobraram os joelhos em reverência aos céus e acreditam que a história do Universo tem início e fim neles.

Feliz Ano Novo às mulheres que destilam antigos amores em cápsulas de veneno e aos homens que, ao partir, mostram, às costas, a face diabólica que traziam mascarada sob juras de amor.

Feliz Ano Novo aos jovens enfermos de velhice precoce e aos velhos que, travestidos de adolescentes, bailam aos desafinados acordes do ridículo. E aos que atravessam o tempo sem se livrar de bagagens inúteis e ainda sonham em ingressar numa nova era sem tornar carne o coração de pedra.

Feliz Ano Novo aos que já não sabem conjugar os verbos no plural; agendam sentimentos e estão sempre atrasados na vida; mendigam admiração e se prostituem frente à sedução do poder.

Feliz Ano Novo àqueles que dão "mau-dia" ao acordar, afogam em trevas interiores a alegria que lhes resta, encaram a vida como madastra de história infantil. E aos que julgam que laços de família se cortam com a ponta afiada da língua e ignoram que o sangue escreve letras indeléveis.

Feliz Ano Novo aos que se apegam ao poder como a fuligem ao lixo, infantilizados pelas mesuras, prenhes de mentiras ao agrado do ouvido alheio, solícitos às providências que assassinam a ética. Sejam também felizes os que tentam corromper os filhos com agrados materiais e nunca dispõem de tempo para olhá-los nos olhos do coração.

Feliz Ano Novo aos navegadores cibernéticos, mariposas de noções fragmentadas, amantes virtuais que se entregam, afoitos, ao onanismo eletrônico, digitando a própria solidão.

Feliz Ano Novo aos poetas que não sabem tragar emoções e engolem com ira palavras que trariam vida ao mundo. E aos que abominam a arte por desconhecerem que o ser humano é modelado em barro e sopro.

Feliz Ano Novo a todos que temem a felicidade ou consideram, equivocadamente, que ela resulta da soma dos prazeres. E aos que enchem a boca de princípios e se retraem, horrorizados, diante do semelhante que lhe é diferente.

Feliz Ano Novo às mulheres que se embelezam por fora e colecionam vampiros e escorpiões nos lúgubres porões do espírito. E aos homens que malham o corpo enquanto definha a inteligência, transgênicos prometeus acorrentados ao feixe dos próprios músculos.

Feliz Ano Novo a todos os infelizes, aos que o são e aos que se julgam, cegos às infinitas possibilidades da luz e das rotas. Sejam todos agraciados pela embriaguez da alegria divina, abertos ao Deus que os habita e ao amor que, como um rio cristalino, jamais nega água a quem se ajoelha, reverencia o milagre da vida e aprende a beber do próprio poço.

Frei Betto é escritor, autor do romance "Entre todos os homens", entre outros livros
Fonte: http://www.correiocidadania.com.br/antigo
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Nota minha: há textos que nunca envelhecem, verdades sempre atuais, palavras necessárias e fundamentais que precisam sair do 'armário' do tempo e reocupar o tempo especial. Republicar aqui um texto de quase duas décadas não é como acrescentar o 'Velho' ao 'Novo', é sim oportunizar-mo-nos a reflexão sobre as mudanças que envelhecem dentro de nós sem nunca termos mudados. - Que 2018 não seja apenas mais um ano!!! Prof. Neuri. A²

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

A INDÚSTRIA DO ESPÍRITO



Burguesia ocidental é o objetivo de uma operação mercantil que se fundamenta em um novo narcisismo.


 ''A indústria do espírito é um produto das sociedades industrializadas onde as pessoas já têm muito bem resolvidas as necessidades básicas, da moradia à comida até o Netflix e o Spotify.''


A indústria do espírito
 
O filósofo Daniel Dennett propõe uma fórmula para alcançar a felicidade: “Procure algo mais importante que você e dedique sua vida a isso”.

Essa fórmula vai na contracorrente do que propõe a indústria do espírito no século XXI, que nos diz que não há felicidade maior do que essa que sai de dentro de si mesmo, o que pode ser verdade no caso de um monge tibetano, mas não para quem é o objeto da indústria do espírito, o atribulado cidadão comum do Ocidente que costuma encontrar a felicidade do lado de fora, em outra pessoa, no seu entorno familiar e social, em seu trabalho, em um passatempo, etc.

De acordo com a fórmula de Dennett a chave está do lado de fora, no outro extremo, na atenção que dedicamos a coisas mais importantes do que nós, objetivo, certamente, nada difícil de se conseguir pois, a rigor, tudo é mais interessante do que nós mesmos.

A indústria do espírito, uma das operações mercantis mais bem-sucedidas de nosso tempo, cresceu exponencialmente nos últimos anos, é só ver a quantidade de instrutores e pupilos de mindfulness e de ioga que existem ao nosso redor. Mindfulness e ioga em sua versão pop para o Ocidente, não precisamente as antigas disciplinas praticadas pelos mestres orientais, mas um produto prático e de rápida aprendizagem que conserva sua estética, seu merchandising e suas toxinas culturais.

Há poucos anos a ioga e o mindfulness eram atividades marginais, praticadas por pouca gente e hoje se transformaram, em pouco tempo, em uma indústria multimilionária. Não vamos despreciar os benefícios físicos e mentais da ioga, e não se pode negar que na introspecção do mindfulness pode-se eventualmente enxergar alguma luz, mas também é verdade que o sucesso súbito e meteórico dessas duas indústrias dá o que pensar.

A questão atual é cultivar a espiritualidade, olhar para dentro de si, com um ar oriental, como veículo para se conquistar a felicidade. Como se a felicidade realmente fosse uma parcela conquistável, e não esse estado de ânimo aleatório, espontâneo e efêmero de, digamos, alegria integral, que chega de vez e quando e em rompantes. O que podemos mesmo experimentar são momentos de felicidade, a graça é justamente essa; se a felicidade fosse um estado permanente viveríamos em um mundo de idiotas com um sorriso bobo.

Frente ao argumento de que a humanidade, finalmente, tomou consciência de sua vida interior, por que demoramos tanto em alcançar esse degrau evolutivo?, proporia que, mais exatamente, a burguesia ocidental é o objetivo de uma grande operação mercantil que tem mais a ver com a economia do que com o espírito, a saúde e a felicidade da espécie humana.

Em seu ensaio America the Anxious (St. Martin’s Press, 2016)), a jornalista inglesa Ruth Whippman revela alguns dados reunidos pelo Departamento de Saúde dos Estados Unidos: mais de vinte milhões de pessoas, mais ou menos a metade dos habitantes da Espanha, praticam a meditação naquele país, e o gasto anual em custos de mindfulness, e os produtos derivados do ensino e da prática posterior, é de 4 bilhões de dólares (13 bilhões de reais). Os números da ioga são ainda mais importantes: os novos iogues investem 10 bilhões de dólares (33 bilhões de reais) por ano em aulas de ioga e acessórios como o tapetinho, as calças leggins, a garrafinha iogue de aço inoxidável para a água. Das indústrias que mais crescem, e mais rapidamente, nos Estados Unidos, a ioga ocupa o quarto lugar.

Em nossa época os idosos já não querem ser sábios, preferem estar robustos e musculosos
Isso ocorre em um país que em sua declaração de independência consagra por escrito a busca da felicidade (the pursuit of happines) como um dos direitos inalienáveis da população. Essa busca, como tudo o que acontece naquele país, se estendeu pelos países do Ocidente e chegou em outros lugares do mundo, como a Espanha e o Brasil, aplicada à indústria do espírito, com um sucesso, e uma militância entre seus praticantes, dos quais a maioria dos cultos não goza.

A indústria do espírito é um produto das sociedades industrializadas onde as pessoas já têm muito bem resolvidas as necessidades básicas, da moradia à comida até o Netflix e o Spotify. Uma vez instalada no angustiante vazio produzido pelas necessidades resolvidas, a pessoa se movimenta para participar de um grupo que lhe procure outra necessidade.

Esse crescente coletivo de pessoas que cavam em si mesmas buscando a felicidade, já conseguiu instalar um novo narcisismo, um egocentrismo new age, um egoísmo raivosamente autorreferencial que, pelo caminho, veio alterar o famoso equilíbrio latino de mens sana in corpore sano, desviando-o descaradamente para o corpo. O guru do século XXI convida seus pupilos a consentir-se a si mesmos, a tratar-se estupendamente enquanto encontram a porta da felicidade, os anima a descobrir os mistérios do mundo em seus próprios umbigos.

Esse inovador egocentrismo new age encaixa divinamente nessa compulsão contemporânea de cultivar o físico, não importa a idade, de se antepor o corpore à mens. Ao longo da história da humanidade o objetivo havia sido tornar-se mais inteligente à medida que se envelhecia; os idosos eram sábios, esse era seu valor, mas agora vemos sua claudicação: os idosos já não querem ser sábios, preferem estar robustos e musculosos, e deixam a sabedoria nas mãos do primeiro iluminado que se preste a dar cursos.

Mais de vinte milhões de pessoas nos Estados Unidos praticam a meditação
Walter Benjamin resgata o conselho de um velho sábio cabalista que vem ao caso; para conseguir uma mudança importante na vida não é preciso realizar grandes movimentos, e cursos de nenhuma espécie, eu acrescentaria: “Basta levantar um pouco essa xícara, ou esse arbusto ou essa pedra; e assim com todas as coisas”, recomendava o velho cabalista.

Se a indústria do espírito tem realmente os efeitos que sua clientela propagandeia, por que não vivemos rodeados de gente feliz e satisfeita?

Parece que o requisito para se salvar no século XXI é inscrever-se em um curso, pagar a alguém que nos diga o que fazer com nós mesmos e os passos que se deve seguir para viver cada instante com plena consciência. Seria saudável não perder de vista que o objetivo principal dessas sessões pagas não é tanto salvar a si mesmo, mas manter estável a economia do espírito que, sem seus milhões de subscritores, regressaria ao nível que tinha no século XX, aquela época dourada do hedonismo suicida, em que o mindfulness era patrimônio dos monges, a ioga era praticada por quatro gatos pingados e o espírito era cultivado lendo livros em gratificante solidão.

Jordi Soler é escritor.

Publicado em 23 de dezembro - El País