quarta-feira, 27 de maio de 2015

O que professores têm feito para formar bons escritores

Um dos maiores desafios dos educadores, o ensino da escrita deve estar associado a diferentes habilidades de comunicação e socialização, como a prática dos debates em sala.

Por Márcio Venciguerra

Desafio: ensinar o domínio do código e, ao mesmo tempo, a escrita como expressão.
"As professoras mandam eu fazer redação. E eu faço, só que na maioria das vezes eles não consideram porque acham que não foi de minha autoria, acham que não fui eu que fiz. Não dão nota boa, porque acham que eu peguei de algum lugar, por algum autor, por alguma coisa parecida. Mas eles nunca acreditaram que fui eu que fiz." O relato trazido por Valéria Fagundes no filme Pro dia nascer feliz, de João Jardim, lançado em 2005, quando tinha 16 anos, ainda pode descortinar uma das dificuldades da educação brasileira? Aluna da Escola Estadual Cel. Souza Neto, do município de Manari (PE), então considerado o mais pobre do Brasil, Valéria relatava no filme ser leitora assídua da poesia de Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Admitia que os colegas a achavam "diferente" por gostar de ler, e não encontrava seu lugar na escola. Valéria tocava em um ponto que permanece atual: estamos conseguindo ensinar bem redação nas escolas brasileiras?


No começo do ano, o Ministério da Educação divulgou o resultado do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Um dos dados que mais repercutiram na imprensa foi o de que, dos mais de seis milhões de alunos que fizeram a prova, 529 mil obtiveram nota zero na redação (8,5% dos candidatos). Deste número, 248 mil redações foram anuladas. Fazem parte desse caso não atender à proposta solicitada ou possuir outra estrutura textual que não seja a do tipo dissertativo-argumentativo; apresentar texto de até sete linhas, copiar linhas dos textos motivadores, que servem apenas como referência, ou escrever "impropérios", desenhos e outras formas propositais de anulação.

À época do filme de João Jardim, as avaliações do MEC apontavam que a metade dos estudantes do ensino fundamental não conseguiam ler ou escrever corretamente. Hoje, apenas um em cada quatro brasileiros atinge um nível pleno de habilidades no uso da leitura, escrita e matemática, segundo os últimos dados do Inaf Brasil 2011 (Indicador de Analfabetismo Funcional), realizado pelo Instituto Paulo Montenegro e a ONG Ação Educativa. Numa avaliação sobre a capacidade de leitura e escrita de alunos do 4.º e 7.º anos do ensino fundamental, divulgada em 2014 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), o Brasil aparece na sexta posição, entre 15 países da América Latina e do Caribe.

Os dados são conhecidos. Mas, em meio a tantos índices desanimadores, o que está acontecendo com a redação dos alunos? Um dos motivos apontados por educadores para as dificuldades está no duplo desafio de ensinar o domínio do código e, ao mesmo tempo, fomentar o uso da escrita como forma de expressão. Outra preocupação compartilhada por professores é a familiaridade dessa geração com textos curtos, como os digitais, e a dificuldade de entrar em contato com textos mais longos e reflexivos.

► Falta repertório

Ao invés de paralisarem o trabalho do professor, essas constatações podem servir de aliadas no desenvolvimento de processos de aprendizagem que partam do universo dos alunos. 

Nesse sentido, a professora Tamine Cauchioli Rodrigues, da Escola Classe no Paranoá, no Distrito Federal, relata um caso para justificar sua crença de que esses desafios podem ser vencidos. No ano passado, ela se deparou com um adolescente numa turma de 5.º ano do ensino fundamental. Ele era cinco anos mais velho do que os demais. "Era o estereótipo da frustração escolar", diz Tamine. "Retrato de tudo o que leva à desistência, como baixa autoestima e notas de reprovação ano após ano." 

Ao trocar mensagens de celular para marcar uma conversa com a mãe do garoto, Tamine teve uma surpresa: "opa, esse menino sabe escrever!" Mas por que então não demonstrava isso na sala de aula? "Se você não está motivado, escrever é muito mais difícil", constata Tamine. "Isso vale para todo mundo." 

Para a professora, na fase do domínio do código escrito, há dezenas de ferramentas à mão do professor, já tornar a escrita um espaço de expressão exige estratégias escolhidas caso a caso. No geral, entretanto, Tamine escolhe uma: antes, é preciso trabalhar a leitura do mundo, para que o aluno tenha repertório e seja motivado a escrever sobre suas experiências.

Soleima Cardoso, diretora da Escola Classe 415 Norte, de Brasília, diz que gostaria de ouvir a expressão dos alunos, seja na fala ou na escrita, porém, ela avalia que as crianças estão cada vez mais rápidas, tanto ao escrever como em diálogo. Ela conta ouvir frequentemente os alunos dizerem "já entendi", apenas porque estão com alguma pressa.

Para Soleima, a sala de aula está sendo pressionada a suprir a crescente falta de conversa, no esforço de formar jovens capazes de se comunicar, tanto oralmente como por escrito. "Quando comecei a trabalhar, há 18 anos, a situação era diferente", conta. "De uns cinco anos para cá, noto claramente que os alunos estão mais impacientes, não se apropriam dos conceitos e informações e têm menos vocabulário." 

A professora atende a um público variado, que vai dos filhos da classe média aos de famílias de baixa renda. Ela acredita que os pais de todas as origens poderiam ajudar se conversassem mais. Gestos aparentemente simples, mas muito importantes, como incentivar que os filhos contem como foi a visita à casa de um amigo. "Nós vivemos num mundo que exige "ir direto ao ponto", no qual as pessoas não têm mais tempo para respostas longas, e isso acaba limitando as crianças", acredita.

► Notas baixas 

Dois vetores puxam para baixo a média das provas de escrita de crianças e jovens brasileiros, na opinião da pedagoga Daniele Nunes Henrique Silva, do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB). O principal é a estrutura precária da rede pública de ensino, com baixos salários e salas lotadas. "O professor faz o possível", diz ela, que ensinou na Educação Básica por dez anos e hoje forma profissionais e pesquisa formas de fomentar a criatividade nas escolas. "O Brasil precisa de uma grande revolução na rede pública, como aconteceu no Canadá, Cuba e Coreia", defende.

A outra força que conspira para não se formarem bons escritores na sala de aula é o ritmo da vida atual: além da pressa, surgiram muitas tentações. À margem da grande quantidade de estímulos oferecidos para entreter, o professor precisa levar seus alunos a praticar uma atividade que demanda perseverança, trabalho duro e determinação. "Leitura e escrita não dão prazer sempre, apenas eventualmente", constata Daniele.

A professora de literatura Eva Pereira concorda que há novos elementos de sedução que afastam os alunos do ensino médio e fundamental do universo letrado. "O objetivo de saber escrever é de longo prazo e concorre com os estímulos de resultado no curto prazo", avalia a doutora em Letras pela Universidade de São Paulo (USP).

Ela vê pouco incentivo à escrita na rotina dos jovens. "O acesso à internet é fácil, mas o livro continua com uma aura que afasta", diz. E, apesar de as redes sociais e outros sítios virtuais ampliarem a troca de mensagens de texto, Eva observa que se trata de uma expansão da oralidade, e não propriamente uma experiência de escrita. 

Eva formou essa opinião não apenas por causa dos frequentes erros de grafia ou concordância que vê nos textos de seus alunos, mas devido à falta de pontuação. "Pontuar é estabelecer relações lógicas entre as orações e sintagmas, mas também é uma forma de marcar a entonação, que nas mensagens é dada pelos rostinhos (emoticons)." Os comentários de notícias na internet, outra forma bastante usual de escrita, na opinião de Eva costumam revelar a falta de desenvolvimento de uma argumentação, o que caracterizaria linguagem escrita. "Acaba se tornando uma troca de preconceitos e provocações", avalia. 

► Laboratórios

Para Daniele Nunes, da UnB, só ensina bem quem vivencia as dificuldades de escrever. Por isso, ela defende que laboratórios de escrita façam parte da formação 

continuada dos profissionais de educação. "Não temos professores formados para a construção laboratorial escrita", lamenta. "Não temos pauta no currículo para formar um escritor desde o fundamental, a meta é praticar apenas alguns gêneros literários", reflete. 

A proposta de Daniele vai ao encontro de um dos eixos do trabalho do professor titular de teoria e história da educação na Universidade de Barcelona, Jorge Larrosa Bondía. Para ele, o professor deveria ser um "ensaísta", ou seja, ter entre suas atribuições praticar a escrita de ensaios. Em entrevista à revista Educação de maio de 2013 (Ed. 193), Larrosa disse que mesmo na Espanha, "em um país onde a maioria dos jovens tem sido altamente escolarizada", eles, no entanto, "não sabem escrever". Para Larrosa, ao escrever ensaios, o professor treina a capacidade de escrever, "algo que não é nada fácil", ao mesmo tempo que pode exercer uma forma de autoavaliação, "porque a escrita de qualquer tipo produz certa exteriorização do próprio pensamento".

Daniele prefere chamar as atividades de produção de texto de "laboratório" porque o termo reforça o caráter "laboral" da escrita. O enfoque na transpiração e não na inspiração é também um modo de combater um mito que dificulta a formação dos escritores. "Há a figura do criador genial, que tem um dom especial", diz Daniele. "Enquanto persistir essa noção de talento nato, a prática formativa não tem como existir", acredita. 

A pedagoga usa uma imagem semelhante à do poeta para explicar a arte de alinhar palavras. "Comparo com a escavação arqueológica: poucas atividades são tão metódicas e vão do trabalho pesado com a pá, à delicada limpeza da poeira com um pincel." A metáfora também permite imaginar que a tarefa não se limita à colheita da peça no campo. Há também uma outra fase na bancada, depois de o texto inicial ficar guardado um tempo longe dos olhos do autor. 

Esse é também um problema para ensinar, já que demorar mais em uma tarefa contradiz o ritmo da vida moderna, que todos querem acelerar. Daniele relata que atualmente é difícil convencer alguém a deixar o texto na gaveta por alguns dias para revisar e reescrever - uma dica sempre presente quando grandes escritores contam seu método de trabalho. Para ela, a fase da correção, autocrítica e melhoria dos trabalhos é negligenciada nas escolas. "Nós deveríamos começar essa prática já na fase anterior à alfabetização", defende, "costumamos achar lindos todos os desenhos das crianças, quando poderia ser um momento de aperfeiçoamento das habilidades." 

Ao orientar teses e dissertações, Daniele se bate contra a urgência dos alunos que prometem redigir e entregar em dois ou três dias. "Essa é uma contradição porque temos sempre a pressão para publicar cada vez mais, porém, a fase da gaveta é importante", diz. 

Por outro lado, lembra a pesquisadora, as escolas usam pouco ou quase nada as vantagens da informatização na produção escrita - que podem aliviar e muito a carga de trabalho. Os programas de edição de texto proporcionam o aspecto limpo do trabalho final, mesmo depois de mudar parágrafos de lugar e rearranjar as palavras. E a facilidade de acesso a dicionários não se compara ao trabalho com papel e caneta. 

► Formas de expressão 

O ensino de escrita deve estar atrelado às outras habilidades de comunicação e socialização, no ponto de vista de Eva Pereira - que, além de ter ensinado na Educação Básica e superior, atua como ativista cultural e coordena oficinas literárias. 

Associar ler a escrever é o mais comum, mas a redação também não pode ser dissociada de falar e ouvir. A prática dos debates em sala de aula é um passo para a organização das informações, elaborar a narrativa e se expressar. "A voz da criança tem de ser respeitada, mesmo se for problemática", lembra a professora. 

Ela cita como exemplo uma roda que coordenou, na qual um aluno mentiu e um colega expôs a mentira. Ao invés de reprimir o mentiroso, como os meninos esperavam, ela disse que também gostava de mentir e criou uma atividade em torno da invenção de histórias. "A brincadeira de mentir revelou os desejos das crianças", conta ela. "Como o menino, todos mentiam para se valorizar", diz Eva, ao lembrar ter explicado à turma que não defendia a mentira fora de seu papel na fabulação. 

A quinta dimensão que deve estar associada ao ensino da escrita é o brincar. Além dos jogos de palavras, a brincadeira no ambiente da oficina literária é mais uma forma de favorecer a expressão dos alunos. "Brincar implica o corpo completo envolvido na comunicação, o que inclui também outros modos de expressão, como dançar", diz. 

Eva conta o exemplo de uma menina do Uruguai que tinha atitudes violentas na classe, mas que trazia um histórico dramático: o pai matara a mãe e agora ela era criada pela avó, que traficava drogas. Por meio de brincadeiras de rua tradicionais, a menina foi levada a aprender a respeitar regras e assim passou a se integrar na oficina de produção de textos. "Mais tarde, quando já tinha deixado aquela escola, fiquei sabendo que ela voltou a ser agressiva com os colegas", conta. "Na época, junto com os outros professores envolvidos no projeto, fiz parte da rede de apoio à menina, mas a escola tem seus limites."

► Ler em voz alta 

Como diretora, Soleima Cardoso tem incentivado as colegas a voltar com a prática da leitura em voz alta nas salas de aula. "Há um modismo de acabar com tudo que era característico da escola tradicional", diz. No entanto, para ela, a dinâmica tradicional de cada aluno ler um parágrafo de um texto não deveria ter sido eliminada, pois resultou na falta de fluência verbal dos alunos.

Embora não tenha relação direta com escrever bem, Eva concorda com a necessidade do exercício da leitura em voz alta e defende que deva ser acompanhada de conversa sobre os textos lidos e acontecimentos do cotidiano. "De novo, a participação do corpo é importante. Ler em voz alta exige a atenção à altura da voz, ao domínio das possibilidades da acústica do ambiente, a uma postura corporal específica. Também tem a ver com a fala e a escuta das narrativas, das histórias que o professor e os outros colegas trazem para contar."

Eva defende que a escrita não seja necessariamente o foco central do ensino, mas parte de um trabalho com essas cinco dimensões (brincar, falar, ouvir, ler e escrever), embora o escrever é o que será cobrado em prova. "Isso tudo envolvendo o contexto, como ensinou Paulo Freire", diz.

O foco na necessidade humana de se expressar falando, interagindo em grupo e escrevendo é visto por Eva como a melhor forma de fomentar o gosto pela tal atividade "triste", como definiu Carlos Drummond de Andrade (em O poder ultrajovem): "O que você perde em viver, escrevinhando sobre a vida. Não apenas o sol, mas tudo que ele ilumina", ensina o poeta. E olha que no tempo dele não havia a dose de adrenalina programada nos jogos eletrônicos e nem mesmo uma rede social para fofocar.



 Narrar e poetar para bem dissertar
A precocidade com que as crianças estão sendo preparadas para o vestibular é um problema de difícil solução para o ensino da escrita, na opinião da professora de literatura Eva Pereira. O enfoque, que antes ficava restrito ao ensino médio, acaba por tomar o espaço da narrativa, que é o gênero mais empolgante para iniciar o trabalho com literatura, por ser próximo da oralidade. "Esse excesso de exercícios de dissertação acaba por contribuir para a dificuldade da escrita e da leitura", avalia. "As crianças - e os adultos também - gostam de contar histórias, gostam de ouvir histórias, e gostam de brincar com as palavras. O gênero literário que mais brinca com as palavras é a poesia."

Para ela, é preciso lembrar que os tipos de redação não são estanques. Numa dissertação, o domínio da narração ou da descrição é necessário. "Mesmo que a estrutura geral seja dissertativa, a redação joga com os outros tipos de redação", diz. "O contato com a narração e com a descrição pode contribuir para o aproveitamento dos recursos próprios desses gêneros, inclusive na dissertação."

A professora de ensino fundamental Tamine Cauchioli Rodrigues avalia que essa é mais uma das características da visão da escola conteudista, voltada para o vestibular. "Não posso privar as crianças da dissertação, pois isso será cobrado delas mais tarde, mas posso usar poemas para ensinar a dissertar."



Fonte: http://revistaeducacao.uol.com.br

domingo, 24 de maio de 2015

SEMPRE É POSSÍVEL UMA AUTO-CORREÇÃO E UM RECOMEÇO

''No expectro político atual não vislumbramos nenhum projeto que fuja da submissão ao capitalismo neoliberal, que faça a sociedade menos malvada e que apresente lideranças confiáveis que tornem melhor a vida do povo. ''

Nem toda crise, nem todo caos são necessariamente ruins. A crise acrisola, funciona como um crisol que purifica o ouro das gangas e o libera para um novo uso. O caos não é só caótico; ele pode ser generativo. É caótico porque destrói certa ordem que não atende mais as demandas de um povo; é generativo porque a partir de um novo rearranjo dos fatores, instaura uma nova ordem que faz a vida do povo melhor. Dizem cosmólogos que a vida surgiu do caos. Este organizou internamente os elementos de alta complexidade que desta complexidade fez eclodir a vida na Terra e mais tarde a nossa vida consciente (Prigogine, Swimme, Morin e outros).

A atual crise política e o caos social obedecem à lógica descrita acima. Oferecem uma oportunidade de refundação da ordem social a partir do caos social e dos elementos depurados da crise. Como no Brasil fazemos tudo pela metade e não concluímos quase nenhum projeto (independência, abolição da escravatura, a república, a democracia representativa, a nova democracia pós ditadura militar, a anistia) há o risco de que percamos novamente a oportunidade atual de fazermos algo realmente profundo e cabal ou continuaremos com a costumeira ilusão de que colocando esparadrapos curamos a ferida que gangrena a vida social já por tanto tempo.

Antes de qualquer iniciativa nova, o PT que hegemonizou o processo novo na política brasileira, deve fazer o que até agora nunca fez: uma auto-crítica pública e humilde dos erros cometidos, de não ter sabido usar do poder realmente como instrumento de mudanças e não de vantagens corporativas e de ter perdido a conexão orgânica com os movimento sociais. Precisa fazer o seu mea-culpa porque alguns com poder traíram milhões de filiados e por ter maculado e rasgado sua principal bandeira: a moralidade pública e a transparência em tudo o que faria. Aquele pequeno punhado de corruptos e de ladrões do dinheiro público, dentro da Petrobrás, que atraiçoaram os mais de um milhão de filiados do PT e envergonharam a nação deverão ser banidos da memória.

Cito frei Betto que esteve dentro do poder central e que ideou a Fome Zero. Ao perceber os desvios, deixou o governo comentando: ”O PT em 12 anos, não promoveu nenhuma reforma da estrutura, nem agrária, nem tributária, nem política. Havia alternativa para o PT? Sim, se não houvesse jogado a sua garantia de governabilidade nos braços do mercado e do Congresso; se tivesse promovido a reforma agrária, de modo a tornar o Brasil menos dependente da exportação de commodities e favorecido mais o mercado interno; se ousasse fazer a reforma tributária recomendada por Piketty, priorizando a produção e não a especulação; se houvesse enfim assegurado a governabilidade prioritariamente pelo apoio dos movimento sociais, como fez Evo Morales na Bolívia…Se o governo não voltar a beber na sua fonte de origem – os movimento sociais e as propostas originários do PT – as forças conservadoras voltarão a ocupar o Planalto”.

E agora concluo eu: temos posto a perder a revolução pacífica e popular feita a partir de 2003 quando ocorreu não a troca do poder, mas a troca da base social que sustenta o Estado: o povo organizado, antes à margem e agora colocado no centro. O PT pode suportar a rejeição dos poderosos. O que não pode é defraudar o povo e os humildes que tanta confiança e esperança colocaram nele. E muitos, como eu e Frei Betto que nunca nos inscrevemos no PT (preferimos o todo e não a parte que é o partido) mas sempre apoiamos sua causa, por vê-la justa e afim às propostas sociais da Igreja da Libertação, sentimos abatimento e decepção. Não precisava ser assim. E foi pela imoralidade, pela falta de amor ao povo e pela ausência de conexão orgânica com os movimento sociais.

Nem por isso desistiremos. No expectro político atual não vislumbramos nenhum projeto que fuja da submissão ao capitalismo neoliberal, que faça a sociedade menos malvada e que apresente lideranças confiáveis que tornem melhor a vida do povo. A vida nos ensina e as Escrituras cristãs não se cansam de repetir: quem caiu sempre pode se levantar; quem pecou sempre pode se redimir depois de clara conversão para o primeiro amor. Até se diz que quem estava morto, pode ser ressuscitado, como Lázaro e o jovem de Naim.

O PT tem que recomeçar lá em baixo, humilde e aberto a aprender dos erros e da sabedoria do povo trabalhador. Valem ainda os ideais primeiros: inclusão social de milhões de marginalizados, desenvolvimento social com distribuição de renda e redistribuição da riqueza nacional, cuidado para com a natureza com seus bens e serviços ameaçados e a sempre ansiada justiça social. Mas tudo isso não terá sustentabilidade se não vier acompanhado por uma reforma política, tributária e pesado investimento na agroecologia na impossibilidade atual de fazer a reforma agrária.

Para que isso ocorra, precisamos acreditar na justeza desta causa; fortalecer-se face à batalha que será travada contra o PT por aqueles que vivem batendo panelas cheias porque nunca querem mudanças por medo de perder benefícios; mas jamais usar as armas que eles usam – mentiras e distorções – mas usar aquelas que eles não podem usar: a verdade, a transparência, a humildade de reconhecer os erros e a vontade de melhorar dia a dia, de querer um Brasil soberano e um povo feliz porque justo, não mais destinado a penar nas perifierias existenciais mas a brilhar.Vale o que o Dom Quixote sentenciou: “não devemos aceitar as derrotas sem antes dar as batalhas”.

Leonardo Boff é teólogo, ecólogo e escritor, veja A Grande Transformação, Vozes, Petrópolis 2014.

EDUCAÇÃO: Período integral é parte da estratégia para reduzir desigualdades

Por Flávia Siqueira

“Não se pode tomar a educação integral como uma tábua de salvação, mas ela é uma pauta que faz parte de uma agenda de consolidação de direitos”, diz a professora.

Jaqueline Moll pesquisadora e professora associada da 
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Jaqueline Moll é pesquisadora e professora associada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Coordenou no Ministério da Educação a implantação do Programa Mais Educação, no período de 2008 a 2013, como estratégia para a indução da política de educação em tempo integral no Brasil.

A professora conversou com a reportagem do site da revista Educação pouco antes de sua palestra na Bett Brasil Educar 2015. Veja, a seguir, algumas reflexões da educadora sobre o papel da escola em período integral e as estratégias para ampliar esse modelo no Brasil.

Muitos veem a educação em tempo integral como uma solução social que vai tirar as crianças da rua, de espaços de violência. Essa é realmente uma das funções da escola de período integral?

O debate sobre a escola em tempo integral e de uma formação humana que não ocorra apenas no campo intelectual, embora ele seja muito importante, não é uma ideia nova no Brasil – ela passa por Anísio Teixeira, pelas Escolas Classe em Brasília, pelos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) no Rio, por experiências de vários municípios do Brasil a partir do que foi o artigo 34 da Lei de Diretrizes e Bases (LDB). É uma ideia que vem sendo trazida sobretudo de países ocidentais que de fato construíram o sentido da escola como espaço de oportunidades sociais.

Numa sociedade desigual como a nossa, a escola é um dos espaços importantes para construir uma perspectiva de equidade, seguindo aquela ideia do Mário Quintana de que democracia é dar a todos o mesmo ponto de partida. A escola pode ser um espaço para oferecer as mesmas condições. Sabe-se que crianças que vivem em contextos mais pobres, cujos pais são herdeiros da tradição de não escolarização no Brasil, chegam à escola em condições aquém das que poderiam ter.

► Só isso é capaz de quebrar o ciclo de pobreza e violência?

Não vamos encontrar, nos países que se destacam no Pisa, escolas com menos de sete horas diárias. Antes de comparar resultados, é preciso analisar as condições que produzem os resultados. Entre elas está, sim, uma escola de mais tempo, com professores de dedicação exclusiva e boas condições no espaço escolar. Outro elemento é a inserção quase completa das mulheres no mundo do trabalho. Nesse contexto, onde estarão as crianças? Na escola.

Nossa situação de desigualdade no Brasil é muito aviltante. Nós bebemos numa tradição escravocrata, em que há uma visão sempre muito diminuída sobre o outro. Somos um país com um déficit enorme do ponto de vista do desenvolvimento humano. E, sim, há aqueles que veem na escola de período integral um jeito de tirar as crianças da rua, de colocá-las num ambiente de segurança enquanto as mães trabalham – que é um argumento importante. Mas não é essa a visão que nós temos.

► Qual é a sua visão?

Na construção do programa Mais Educação, nós pensamos a escola de tempo integral como um dos elementos importantes no enfrentamento das desigualdades sociais e educacionais. Os filhos das famílias médias e altas não têm só quatro horas de aula, não têm só o turno. Praticamente todos têm atividades complementares, seja no campo da música, dos esportes, das línguas estrangeiras, das artes. Esse é um dos elementos que aprofundam as diferenças entre jovens de crianças de classe média e alta e as crianças das classes populares.

Não se trata de ter mais horas para ensinar a mesma coisa, não se trata de replicar o absurdo de uma escola com os tempos divididos em 45 ou 50 minutos, com as áreas de conhecimento divididas como se estivéssemos no início da modernidade.

Trabalhamos com uma perspectiva de horizontes ampliados, de redesenho dos tempos educativos, com projetos que façam sentido para os jovens e as crianças. Com projetos que nos anos finais dos ensinos fundamental e médio já caminhem para escolhas laborais, para a consciência cidadã e dos problemas que temos como sociedade.

Há muita violência quando uma criança cresce sem ter acesso a um espaço educativo decente, organizado, limpo, acolhedor. Nossa perspectiva nunca foi de guardar as crianças, mas de buscar a escola como um dos instrumentos que caminham para o enfrentamento das desigualdades sociais. Não se pode tomar a educação integral como uma tábua de salvação do trabalho escolar e para os problemas da sociedade, mas ela é uma pauta que faz parte de uma agenda de consolidação de direitos.

► E do ponto de vista operacional? Para ampliar o acesso à educação integral, teremos que enfrentar um déficit de professores?

Em qualquer lugar do mundo, ninguém completa o tempo só com professores. Evidentemente que temos que caminhar para ter professores de dedicação exclusiva nas escolas, mas não é preciso montar um modelo baseado apenas nisso. O Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid), por exemplo, tem articulado com as escolas do Mais Educação e doEnsino Médio Inovador a presença na escola de estudantes do ensino superior.

O Mais Educação trabalhou com monitores como uma estratégia de transição. Ele vai fazer o trabalho do professor? Não. Ele será um dos atores desse processo sob a coordenação do professor. Nenhuma escola, em nenhum lugar do mundo, tem só professores o tempo todo. Se, no Mais Educação, tivéssemos dito que seria necessário dobrar imediatamente o tempo de uma parte dos professores, nós não teríamos conseguido avançar nessa agenda.

► Existem outras alternativas?

Não se pode falar em um modelo só. O Brasil tem 190 mil escolas de educação básica, em sua grande maioria públicas. Então nós vamos ter vários modelos. Na Espanha, por exemplo, eles têm os professores tutores, que acompanham grupos de estudantes. Porque a ideia é mudar a própria organização da trajetória educativa. Não se trata de sair de aulas de 45 minutos para aulas de 5 horas, mas de engajar os alunos em projetos de estudo que englobem várias áreas do conhecimento, que deem uma dimensão prática para o que se trabalha na escola.

7 desafios para quem quer criar uma startup de educação

Por Carmen Guerreiro

Alexandre Sayad, do Media Education Lab
Em palestra na Bett Brasil Educar, Alexandre Sayad, do Media Education Lab, dividiu sua experiência como empreendedor da área.

Muito se discute sobre como uma carreira em educação é pouco atrativa, pela falta de valorização do profissional. Mas será esse o caso para todos os profissionais de educação? Assim como em outras áreas, o empreendedorismo em educação tem sido a veia da área que faz brilhar os olhos de muitos jovens em início de carreira. É o que explicou Alexandre Sayad, sócio-fundador do Media Education Lab, em sua palestra sobre startups de educação na Bett Brasil Educar na última quinta-feira, 21.

A maioria dos que se aventuram em criar uma nova empresa que alia educação e tecnologia, segundo Sayad, tem menos de 25 anos. E até mesmo por isso, muitas startups falham no início - segundo ele, por falta de experiência de muitos jovens, e defasagem entre expectativa e realidade.

Pensando nisso, o especialista destacou os maiores desafios para quem quer empreender em educação:

1. Educação para todos e para cada um: "A gente sabe que os alunos Pedro, João, José, Maria e Letícia aprendem de maneira diferente, mas temos que ensinar todos eles", observa. "É uma briga de foice, mas talvez o ponto mais promissor das startups é da personalização do ensino, porque é um caminho que não tem volta diante do cenário de tecnologia hoje, e é uma tendência que de fato vai resolver algumas questões que um ser humano sozinho, diante de uma sala com 30, 40 pessoas, não consegue."

2. A lógica de gestão da escola não é a mesma de qualquer empresa. É preciso conhecer seu funcionamento, na ponta. Segundo Sayad, só quem está na sala de aula sabe realmente como a educação funciona.

3. Ter um olhar sistêmico. É importante, para o empreendedor, não acreditar que as inovações são panaceias, ou seja, soluções absolutas para determinado problema. "Se você tem o olhar sistêmico, entender que cada problema é muito complexo e que não vai conseguir acabar com ele todo com uma só tacada."

4. Conhecer outros players, evitar a sobreposição e aprender a colaborar. Para Sayad, é importante tecer uma rede de parceiros, especialmente de fora da educação. "Areja o diálogo", diz. Sobre a colaboração, ele defende que 
não é algo inato às pessoas, e sim uma habilidade. "E é uma habilidade que vc desenvolve na escola."

5. Usar a tecnologia como meio e se apoderar dela: o digital deve ser uma ferramenta, não o objetivo de uma atividade ou projeto pedagógico.

6. Errar cedo e acertar o percurso: arriscar e errar faz parte da educação.

7. Não podemos desprezar a nossa experiência com a educação, mas é preciso ouvir quem está vivendo ela hoje. "A educação é uma plataforma segurada por muitos atores, e um deles é o aluno, que a gente precisa escutar", diz.

sábado, 23 de maio de 2015

Tecnologia: aliada ou inimiga do pensamento crítico?

Por Flávia Siqueira

'Debate analisa se essa ainda é uma questão válida na educação'

A tecnologia é um estímulo ou um obstáculo para o pensamento crítico? Essa pergunta pautou a mesa de debate que reuniu os professores e pesquisadores David Cavallo, Lucio Teles e Christian Di Maggio na Bett Brasil Educar 2015.

Cavallo, pesquisador norte-americano do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e referência no tema, é um entusiasta do uso de tecnologia na educação. Para ele, não é possível desenvolver o pensamento crítico apenas ouvindo - é necessário fazer e criar e, para isso, a tecnologia é essencial.

Ele ilustra com um exemplo típico das aulas de física: é mais eficiente ensinar os princípios do atrito estático em um plano inclinado por meio de um projeto em que os alunos construam um modelo real do que usando apenas desenhos na lousa.

“Nesse caso, o projeto provavelmente não dará certo na primeira vez. Então, o aluno terá que recorrer ao pensamento crítico para descobrir por que o que ele fez não está funcionando e como resolver”, afirma o pesquisador.

Em seguida, o professor Lucio Teles, da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), apresentou reflexões de estudiosos sobre a ligação entre pensamento crítico e acesso à tecnologia. Não há consenso: enquanto parte dos acadêmicos veem os recursos digitais como ferramentas cognitivas úteis, outros os apontam como fonte de declínio do pensamento e de superficialidade.

Cavallo afirma que não há como romper com a tecnologia: ela está sendo usada, por bem ou por mal. “A tecnologia é muitas coisas, não é uma só. Tecnologia é o novo, qualquer coisa criada após nascermos.” No passado, por exemplo, a caneta e a impressão tipográfica foram (ou poderiam ser) consideradas novas tecnologias.

É o uso que fazemos da tecnologia, portanto, que está em questão. E, se quisermos ter uma visão menos fragmentada do tema, é necessário fazer um exercício e tentar observar a realidade com os olhos das novas gerações. “Falamos muito em nativos digitais, mas para um nativo digital essa definição dele mesmo faz sentido?”, questiona Di Maggio, consultor e funcionário técnico do Ministério da Educação italiano. “Não, pois é o mundo dele. Decidir entre dizer sim ou não à tecnologia não é um problema verdadeiro.”

A questão, afirma Cavallo, é que a abordagem “industrial” da alfabetização e do ensino em massa não está mais funcionando. Di Maggio argumenta no mesmo sentido: décadas atrás, a escola nos dava acesso a informações que não tínhamos em casa; hoje, o cenário se inverteu – os jovens vão para a escola e não encontram lá o que eles têm em casa ou na tela de um celular.

Mas o cenário brasileiro não é árido como muitos podem pensar, aponta Cavallo. Segundo o professor, não faltam bons professores, boas ideias e bons projetos no Brasil. O problema está na distribuição dessas soluções, que ainda estão longe de chegar a todos.

Por fim, partiu do público uma das reflexões mais claras sobre o tema: não cabe ao professor optar ou não pela tecnologia, mas orientar os alunos sobre como usá-la para construir conhecimento e não cair na superficialidade.

domingo, 19 de abril de 2015

COMO REPRODUZIMOS A CULTURA DO CAPITAL

''Chave para a sustentação da cultura do capital é a cultura do consumo... Quem não tem, quer ter, quem tem, quer ter mais e quem tem mais diz: nunca é suficiente.''

No artigo anterior – A cultura capitalista é anti-vida e anti-felicidade – tentamos, teoricamente, mostrar que a força de sua perpetuidade e reprodução reside na exacerbação de um dado de nossa natureza que consiste no afã de auto-afirmar-se, de fortificar o próprio eu para não desaparecer ou ser engolido pelos outros. Mas ela recalca e até nega o outro dado, igualmente, natural, o da integração do eu e do individuo num todo maior, no nós, na espécie, da qual é um representante.

Mas é insuficiente determo-nos apenas nesse tipo de reflexão. Ao lado daquele dado originário, vigora outra força que garante a perpetuação da cultura capitalista. 

É o fato de nós, a maioria da sociedade, internalizarmos os “valores” e o propósito básico do capitalismo que é a expansão constante da lucratividade que permite um consumo ilimitado de bens materiais. Quem não tem, quer ter, quem tem, quer ter mais e quem tem mais diz: nunca é suficiente. E para a grande maioria, a competição e não a solidariedade e a supremacia do mais forte prevalecem sobre qualquer outro valor, nas relações sociais, especialmente, nos negócios.

Chave para a sustentação da cultura do capital é a cultura do consumo, da permanente aquisição de produtos novos: um novo celular com mais aplicativos, um modelo mais sofisticado de computador, um estilo de sapato ou de vestido diferentes, facilidades no crédito bancário para possibilitar a compra-consumo, aceitação acrítica das propagandas de produtos etc.

Criou-se uma mentalidade, onde todas estas coisas são naturalizadas. Nas festas entre amigos ou familiares e nos restaurantes consome-se à tripa forra, enquanto, ao mesmo tempo, os noticiários relatam os milhões que passam fome. Não são muitos os que se dão conta desta contradição, pois a cultura do capital educa para ver primeiro a si mesmo e não se preocupar dos outros e do bem comum. Este então, já o dissemos vários vezes, vive no limbo há muito tempo.

Todos somos reféns, alguns mais e outros menos, deste tipo de mentalidade e de prática. Por isso nos custa tanto inaugurar comportamentos anti-sistêmicos e anti-consumismo e assim abrir caminho para o novo alternativo.

Por esta razão não basta atacar a cultura do consumo. Se o problema é sistêmico, temos que lhe opor outro sistema, anticapitalista, anti-produtivista, anti-crescimento linear e ilimitado. Ao TINA capitalista (there is no Alternative): “não há outra alternativa” temos que contrapor outra TINA humanista (there is a new Alternative):” há uma nova alternativa”.

Por todas as partes, surgem rebentos alternativos dos quais cito, como exemplo, apenas trẽs: o “bien vivir”dos povos andinos que consiste na harmonia e no equilíbrio de todos os fatores, na família, na sociedade (democracia comunitária), com a natureza (as águas, os solos, as paisagens) e com a Pachamama, a Mãe Terra. A economia não se orienta pela acumulação mas pela produção do suficiente e do decente para todos.

Segundo exemplo: está se fortalecendo mais e mais o ecosocialismo que nada tem a ver com o socialismo uma vez existente (que era na verdade um capitalismo de Estado) mas com os ideais do socialismo clássico de igualdade, solidariedade, da subordinação do valor de troca ao valor de uso com os ideais da moderna ecologia, como vem excelentemente apresentada entre nós pelo brasileiro Michael Löwy em seu O que é o ecosocialismo (Cortez 2015) e outros em vários países como as contribuições significativas de James O’Connor e de Jovel Kovel.

Aí se postula a economia em função das necessidades sociais e das exigências da proteção do sistema-vida e do planeta como um todo. Um socialismo democrátaico, segundo O’Connor, teria como objetivo uma sociedade racional fundada no controle democrático, na igualdade social e na predominância do valor de uso. Löwy acrescenta ainda “que tal sociedade supõe a propriedade coletiva dos meios de produção, um planejamento democrático que permita à sociedade definir os objetivos da produção e os investimentos, e um nova estrutura tecnológica das forças produtivas”(op.cit. p.45-46).

O socialismo e a ecologia partilham dos valores qualitativos, irredutíveis ao mercado (como a cooperação, a redução do tempo de trabalho para viver o reino da liberdade de conviver, de criar, de dedicar-se à cultura e à espiritualidade e ao resgate da natureza devastada). Esse ideal está no âmbito das possibilidades históricas e orienta práticas que o antecipam.

Um terceiro modelo de cultura eu chamaria de a “via franciscana”. Francisco de Assis, atualizado por Francisco de Roma é mais que um nome ou um ideal religioso; é um projeto de vida, um espírito e modo de ser. Entende a pobreza não como um não ter mas como capacidade de sempre desprender-se de si mesmo para dar e mais uma vez dar, a simplicidade de vida, o consumo como sobriedade compartida, a humildade contra todo tipo de arrogância, o cuidado dos desvalidos, a confraternização universal com todos os seres da natureza, respeitados como irmãos e irmãs, a alegria de viver, de dançar e de cantar mesmo na hora da morte até cantilenae amatoriae da Provence, cantigas de enamoramento. Em termos políticos seria um socialismo da suficiência e da decência e não da abundância, portanto, um projeto radicalmente anti-capitalista e anti-acumulador.

Utopias? Sim, mas necessárias para não afundarmos na crassa materialidade, utopias que podem se tornar a inspiradora referência após a grande crise sistêmica ecológico-social que virá inevitavelmente como reação da própria Terra que já não aguenta tanta devastação. Tais valores culturais sustentarão um novo ensaio civilizatório, finalmente mais justo, espiritual e humano.

Fonte:


quarta-feira, 18 de março de 2015

MOVIMENTOS EM ÉPOCA E MOTIVAÇÕES DIFERENTES

''Democracia é algo muito sério pra virar playgroud de golpistas''

É preciso refutar essa comparação chula entre o Movimento Redemocratização na praça da sé com os participantes do 'Movimento Quero Mais' da avenida paulista. O primeiro foi um ato de coragem histórica, de rompimento, de consciência
objetiva centrado na ânsia de restabelecer o direito de colocar os pés na rua e escolher não só o representante na principal cadeira na nação, mas a direção do caminhar com a ampla representação da sociedade. Enquanto o segundo representa o desejo exclusivo de seletos setores da sociedade sob a articulação do partido da imprensa golpista e seus articulista contratados para fomentar a frente de mobilizações, monitorar pela cor da pele e roupa usada de quem poderia participar.

O Primeiro foi o maior de todos os movimentos já realizado em torno de uma pauta unitária, ciente e propositiva, e o segundo para além das dúvidas na motivação de cada um, o retrato da ilustração clássica dos desejos de uma força politica derrotada nas ultimas eleições presidenciais. Se o país precisa de reformas e avanços frente a estagnação, os escanda-los que ai estão enraizados há décadas precisa também da clareza de seus cidadãos quanto ao que precisam, querem e propõe. Democracia é algo muito sério pra virar playgroud de golpistas com patrocínio de grandes petroleiras da Shell à Chevron, da CIA norte americana ao braço golpista da imprensa nacional! 

Neste sarapatel ufanista da comparação que a imprensa insiste em apresentar a necessidade primeira é dicotomizar quantidade, qualidade e propositividade de épocas e motivações diferentes. Tudo o mais é mero festim do caos que na essência atrapalha aquilo que é essencial e urgente nas mudanças que o país mais precisa. Não cair no lacismo relaxado e comodo de reproduzir o que querem os setores retrógrados da imprensa no país é de grande necessidade para quem quer mesmo superar desafios e avançar.

Neuri A. Alves – Professor Curioso e Pesquisador

terça-feira, 17 de março de 2015

Crise Brasil: a farra acabou

''Quem não semeia não colhe. O governo quis colher onde não semeou.'' 

O país não apresenta perspectivas de crescimento em 2015. A inflação aumenta a cada mês e, o dólar, a cada dia. Não há investimentos à vista. Direitos sociais, como abono desemprego e pensão viuvez, sofreram cortes. Os juros
voltam a subir. E a corrupção na maior empresa brasileira, a Petrobras, administrada pelo governo, deixa o PT acuado e aprofunda a crise política.

A farra acabou. Foram 11 anos (2003-2014) de bonança: crescimento econômico; investimentos estrangeiros; inflação e câmbio sob controle; crédito facilitado; aumento real do salário mínimo; desemprego baixo. 

Graças aos programas sociais, 36 milhões de brasileiros saíram da miséria. As ruas se entupiram de veículos novos. Qualquer barraco de favela está equipado com TV em cores, geladeira, fogão, máquina de lavar (graças à desoneração da linha branca) e telefones celulares. E Dilma, na campanha presidencial de 2014, prometeu que nada disso mudaria. 

Agora, tudo muda. O novo lema do governo – “Brasil, Pátria Educadora” – foi anunciado em um dia e, no outro, R$ 14 bilhões foram cortados do orçamento da educação. 

Onde o governo errou? Errou ao adotar um populismo cosmético. Se você tem renda suficiente para pagar aluguel e sustentar a família, não pode oferecer aos filhos motos, carros e férias no exterior. A conta não fecha. Um dia a casa cai e o rombo terá que ser coberto, ainda que a família perca quase todos os bens. 

'Quem não semeia não colhe. O governo quis colher onde não semeou.' Em 12 anos, não promoveu nenhuma reforma de estrutura. Nem agrária, nem tributária, nem política. 

Isso me lembra o velho Araújo. Vargas, presidente, todo ano, a 21 de abril, mudava simbolicamente a capital do país para Ouro Preto. Araújo, que residia em casa maior que a sua conta bancária, ofereceu ao presidente, em sua passagem por Belo Horizonte, um banquete. 

Na mesa, tudo do bom e do melhor. O que não havia em Minas, veio do Rio e de São Paulo. Do banquete, a família guarda duas recordações: a feliz, a comilança regada a champanha francesa. A triste, a falência do velho Araújo.

Havia alternativa para o PT? Sim, se não houvesse jogado a sua garantia de governabilidade nos braços do mercado e do Congresso; se tivesse promovido a reforma agrária, de modo a tornar o Brasil menos dependente da exportação de commodities e mais favorecido pelo mercado interno; se ousasse fazer a reforma tributária recomendada por Piketty, priorizando a produção e não a especulação; se houvesse, enfim, assegurado a governabilidade, prioritariamente, pelo apoio dos movimentos sociais, como fez Evo Morales na Bolívia. 

A crise econômica tende a se aprofundar. Já a política se arrastará até 2018, ano de eleições presidenciais. Se o governo não voltar a beber na sua fonte de origem – os movimentos sociais e as propostas originárias do PT –, as forças conservadoras voltarão a ocupar o Planalto. 

Frei Betto é escritor, autor do romance policial “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros livros. Página e Twitter do autor: http://www.freibetto.org/ e twitter:@freibetto. 

Fonte: http://www.correiocidadania.com.br.

segunda-feira, 16 de março de 2015

O PROFESSOR RASGOU O LIVRO DE HISTÓRIA NA OFICINA DE LEITURA?

''Precisamos compreender como se aprende a ler e o que há de fantástico na leitura para reeducar leitores fracassados e chegar a um nível de leitura eficaz.''

Gosto demais dessa categoria, acho que o professor, educador, formador é a mais encantadora opção de vida que se faz, afora os dissabores que se enfrenta, mas a gente se encanta, se espanta e divide o pão sofrido das dificuldades. E na essência, chegamos servir como varinha mágica das angustias curiosas da criança, do adolescente, do jovem que lá na academia ostenta os status de autossuficiente. Porque o conhecimento tem que servir para encantar o aluno, principalmente nas séries iniciais e para desabrochar o ser social no jovem adolescente ao final do ciclo escolar.

Mas confesso, essas manifestações dos últimos dias serviram também para certificar-nos que precisamos estudar mais - não dá para achar que aquele certificado da acadêmica resolveu todos os nossos problemas, inquietações e limites no grande turbilhão da dúvida e das incertezas pertinentes. 

Digo isso, sem insinuar, mas para afirmar mesmo que precisamos ler mais, e isso não se justifica com falta de tempo, até porque sei de tantos colegas que costumam ler beste sellers da atualidade, ou curiosidades como da tríade 50 Tons de Cinza entre outros, mas tem dificuldade de ler um livro sobre o movimento histórico do país que critica. Esclarecimento não é só dever de qualquer formador de opinião, mas também de acúmulo para cidadania.

Pois se na democracia é um dever cidadão a gente manifestar insatisfações com a realidade, como professores acima de tudo é um dever também tratar dessas questões com conhecimento de causa, independente da disciplina ao qual esteja habilitado para lecionar, da opção ideológica político ou partidária, ou ainda da neutralidade assumida na questão. Vi cada pérola nesses dias que faz repensar: - Qual educação realmente nós queremos para o Brasil?

Uma boa provocação nos faz o professor Gabriel Perissé em seu artigo 'A necessária arte de ler' nos dizendo: 

Precisamos compreender a leitura como uma arte para, depois, pragmaticamente, despertar o prazer da leitura em meio à crise da palavra escrita. Precisamos compreender como se aprende a ler e o que há de fantástico na leitura para reeducar leitores fracassados e chegar a um nível de leitura eficaz.

Precisamos compreender cientificamente o ato da leitura para orientar as famílias, lugar natural em que nasce o amor ao livro, à língua e o desejo de ler, a um preço justo. 

A leitura inteligente, que faz pensar, amar e sofrer com coerência poética, é caminho de liberdade existencial, uma bela terapia. Quem ler verá. Quem souber ler terá a força criativa de organizar com os olhos o volume e o peso do caos. 

Pois o professor que pouco ou nada lê, corre o risco de acabar como leitura na observação do outro sem saber - sei bem que ler é algo mais profundo do que o exposto aqui, mas isso é uma forma de provocar e convocar para ler também. 

Viver numa democracia, não significa direito de rasgar os livros da história do própria país, sem ao menos pegá-los nas mãos - boa leitura, com oficina ou não!


Neuri A. Alves – Professor Curioso e Pesquisador

segunda-feira, 2 de março de 2015

A PRAGA DA VIOLÊNCIA COLETIVA

''A maldade não está essencialmente nas pessoas, mas nos sistemas de organização social que a transformam em ódio coletivo e a justificam.''

Nunca subestime o poder de pessoas estúpidas em grandes grupos.

Um aluno um dia me perguntou o que eu achava do homem: naturalmente bom mas pervertido pela sociedade, na linha do “bom selvagem” de Rousseau, ou esta desgraça mesmo que vemos por aí, em estado natural? Na realidade, não acho nem uma coisa nem outra. Acho que temos todos imensos potenciais para o bem e para o mal, para o divino e a barbárie. Cabe a nós, que trabalhamos com o estudo da sociedade e em particular das instituições, pensar o que faz a balança pender mais para um lado ou para outro. Pois deixando de lado alguns traumas e deformações individuais, domínio dos psiquiatras, aqui nos interessa a misteriosa bestialidade coletiva de grandes grupos sociais.

Muitos dizem que a solução está na educação e na cultura. Tenho minhas dúvidas, pois sou de família polonesa, e vi refletido nas angústias dos meus pais o que tinham vivido frente ao nazismo. Ninguém irá pensar que os alemães eram um povo de baixo nível educacional ou cultural. E no entanto, com que entusiasmo vestiram as botas e as camisas negras ou marrons, com que elevado sentimento de dever cumprido matavam pessoas por serem diferentes, por um critério real ou imaginário. Cerca de 50% dos médicos alemães aderiram ao partido nazista. Isto é que é realmente preocupante. Estupidez é uma doença que pega.

Poder dar vazão ao que há de mais podre dentro de nós, de mais escuro em termos de ódio contido, de mais baixo em termos humanos, em nome de elevadas aspirações éticas, parece ser muito satisfatório. Os nazistas agiam em nome da pureza da raça. E erguiam bem alto a bandeira do “Gott mit uns”, Deus está conosco. Tornar-se de certa maneira o braço executivo da cólera divina parece ser profundamente agradável. Há gente disposta a morrer por esta satisfação.

Quem não leu O Martelo da Feiticeira, manual de interrogatório dos inquisidores católicos perdeu uma importante fonte de conhecimento sobre os nossos lados escuros. O manual recomenda, por exemplo, que os religiosos encarregados de torturar as possíveis feiticeiras as torturassem nuas, pois se tornam mais frágeis, e de costas para os torturadores, pois a era tal a perversidade destas mulheres que de frente para os torturadores poderiam comovê-los com suas súplicas e expressões de desespero. Eram religiosos, e o faziam em nome de Cristo.

Somos hoje mais civilizados? Sinto-me profundamente abalado, chocado, pelo bárbaro assassinato dos jornalistas do Charlie Hebdo, em Paris, por profissionais da morte que matam em nome de Deus, e que claramente mostraram nos seus gritos que se sentiam como justiceiros que haviam cumprido o seu dever. São monstros? Se fossem, seria muito mais simples compreender e prevenir. Mas são seres humanos em torno dos quais se construiu uma muralha de valores que os protege de qualquer crítica. Se sentem pertencentes a uma comunidade que os apoia e recompensa, ou seja, praticam a barbárie em nome do bem. Podemos matar os terroristas, mas transformar a dinâmica que os forma é bem mais complexo.

Podemos tratar um psicopata, e proteger a sociedade dos riscos individuais. E uma sociedade doente? Quem não viu Os fantasmas de Abu-Ghraib, veja, é profundamente instrutivo. O documentário é montado a partir de selfies e de filmagens por celular de práticas de tortura no Iraque por jovens americanos, contra supostos inimigos. Tortura praticada no Iraque em nome da defesa dos direitos humanos, por um exército invasor, e por funcionários de empresas privadas de segurança terceirizadas para esta tarefa. Estes jovens são monstros? As imagens das torturas e dos risonhos rapazes circulam em todo o mundo islâmico. Com que impacto e efeito multiplicador?

Hoje temos tortura sistemática aplicada pelo sistema repressivo (Mossad, Shin Bet e outros) em Israel. Em Guantánamo quando os prisioneiros tentam morrer para escapar ao sofrimento se lhes introduz à força alimento pelo nariz ou pelo anus, tudo em nome do bem, como em nome de Deus os fanáticos do ISIS decapitam prisioneiros ou os do Boko Haram raptam crianças.

A maldade não está essencialmente nas pessoas, mas nos sistemas de organização social que a transformam em ódio coletivo e organizam a sua expressão em nome da justiça, de Deus, da pátria, da pureza racial ou o que seja.

Ladislau Dowbor - Catedrático da PUC-SP - Graduação em Economie Politique - Universite de Lausanne (1968), Mestre em Economia Social e doutorado em Ciências Econômicas.

Fonte: 
http://dowbor.org

domingo, 22 de fevereiro de 2015

O QUE PRECISA SER INCORPORADO AO PROCESSO DE EDUCAÇÃO

''Urge nos reinventar como humanos, no sentido de inaugurar uma nova forma de habitar o planeta com outro tipo de civilização.''

Geralmente o processo educativo da sociedade com suas instituições como a rede de escolas e de universidades estão sempre atrasadas em relação às mudanças que acontecem. Não antecipam eventuais processos e custam-lhes fazer as mudanças necessárias para estar à altura deles.

Entre outras, duas são as grandes mudanças que estão ocorrendo na Terra: a introdução da comunicação global via internet e redes sociais e a grande crise ecológica que põe em risco o sistema-vida e o sistema-Terra. Podemos eventualmente desaparecer da face da Terra. Para impedir esse apocalipse a educação deve ser outra, diversa daquela que dominou até agora.

Não basta o conhecimento. Precisamos de consciência: uma nova mente e um novo coração. Precisamos também de uma nova prática. Urge nos reinventar como humanos, no sentido de inaugurar uma nova forma de habitar o planeta com outro tipo de civilização. Como dizia muito bem Hannah Arendt: ”podemos nos informar a vida inteira sem nunca nos educar”. Hoje temos que nos reeducar e no reinventar como humanos.

Por isso, acrescento às dimensões acima referidas, estas duas: aprender a cuidar e aprender a se espiritualizar.

Mas antes faz-se mister, previamente, resgatar a inteligência cordial, sensível ou emocional. Sem ela, falar do cuidado e da espiritualidade faz pouco sentido. A causa reside no fato de que todo sistema moderno de ensino se funda na razão intelectual, instrumental e analítica. Ela é uma forma de conhecer e de dominar a realidade, fazendo-a mero objeto. Sob o pretexto de que a razão sensível impediria a objetividade do conhecimento, foi recalcada. Com isso surgiu uma visão fria do mundo. Ocorreu uma espécie de lobotomia que nos impede de nos sentir parte da natureza e de perceber a dor os outros.

Sabemos que a razão intelectual, como a temos hoje, é recente, possui cerca de 200 mil anos quando surgiu o homo sapiens com seu cérebro neo-cortical. Mas antes dele, surgiu há cerca de 200 milhões de anos, o cérebro límbico, por ocasião da emergência dos mamíferos. Com eles, entrou no mundo o amor,o cuidado, o sentimento que se devotam à cria. Nós humanos, esquecemos que somos mamíferos intelectuais. Logo, somos fundamentalmente portadores de emoções, paixões e afetos. No cérebro límbico reside o nicho da ética, dos sentimentos oceânicos como os religiosos. Antes ainda há 300 milhões de anos, irrompeu o cérebro reptilínio que responde por nossos reações instintivas; mas não é o caso de abordá-lo aqui.

O que importa é que hoje temos que enriquecer nossa razão intelectual com a razão cordial, muito mais ancestral, se quisermos fazer valer o cuidado e a espiritualidade.

Sem essas duas dimensões não iremos nos mobilizar para cuidar da Terra, da água, do clima, das relações inclusivas. Precisamos cuidar de tudo, sem o que as coisas se deterioram e perecem. E então iríamos encontro de um cenário dramático.

Outra tarefa é resgatar a dimensão da espiritualidade. Ela não deve ser identificada com a religião. Ela subjaz à religião porque é anterior a ela. A espiritualidade é uma dimensão inerente ao ser humano como a razão, a vontade e sexualidade. É o lado do profundo, de onde emergem as questões do sentido terminal da vida e do mundo.

Infelizmente estas questões foram tidas como algo privado e sem grande valor. Mas sem sua incorporação, a vida perde irradiação e alegria. Mas há um dado novo: os neurólogos concluíram que sempre que o ser humano aborda estas questões do sentido, do sagrado e de Deus, há uma aceleração sensível nos neurônios do lobo frontal. Chamaram a isso “ponto Deus” no cérebro, uma espécie de órgão interior pelo qual capitamos a Presença de uma Energia poderosa e amorosa que liga e re-liga todas as coisas.

Avivar esse “ponto Deus” nos faz mais solidários, amorosos e cuidadosos. Ele se opõe ao consumismo e materialismo de nossa cultura. Todos, especialmente os que estão na escola, devem ser iniciados nessa espiritualidade, pois nos torna mais sensíveis aos outros, mais ligados à mãe Terra, à natureza e ao cuidado, valores sem os quais não garantiremos um futuro bom para nós.

Inteligência cordial e espiritualidade são as exigências mais urgentes que a atual situação ameaçadora nos faz.

Leonardo Boff é colunista do JBonline e escreveu Saber cuidar, Vozes 2000 e O cuidado necessário e Vozes 2013.

Fonte: 
https://leonardoboff.wordpress.com

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

TRÊS FORMAS DE CRITICAR

Por Gabriel Perissé em 08/03/2011 na edição 632 Observatório da imprensa

Critiquemos a educação nacional. Mas há modos e modos de fazê-lo. Um desses modos consiste em lamentar a situação, dando-a como insustentável e insolúvel. O artigo "Como vai a educação brasileira", assinado por Otaviano Helene e Lighia B. Horodynski-Matsushigue, em Le Monde Diplomatique Brasil (nº 43, de fevereiro/2011), segue essa linha, considerando deplorável o nosso sistema educacional. Os avanços, se admitidos, são vistos como insignificantes. Os professores estão desmotivados. Na verdade, a educação não vai.

Um dos pontos críticos e decisivos dessa questão são os baixos salários dos professores do ensino público. Salários indignos desmotivam os que estão lecionando e não motivam novos ingressantes. O salário de um professor de escola pública com diploma universitário equivale, em média, a dois terços do que recebem profissionais de outras áreas com o mesmo nível de escolaridade. Se um jovem economista pode começar sua carreira ganhando R$ 2.500 um professor (mesmo não tão jovem ou não tão inexperiente) poderá receber, depois de passar em disputado concurso público, salário inicial de R$ 1.600.

Constatemos esse fato, que é mesmo incontestável. A crítica, porém, não pode desconsiderar que a esse ponto se chegou ao longo de várias décadas. A gestão do MEC dos últimos oito anos denuncia o mesmo fato e, entre outras ações, criou o piso salarial nacional dos professores (Lei 11.738/08), prometendo auxiliar financeiramente estados e municípios. O fato, porém, é que muitas prefeituras e governos estaduais se recusam a cumprir a lei e, estranhamente, parecem desdenhar a ajuda federal.

A crítica faixa preta

O segundo tipo de crítica vem na forma de exaltação de soluções estrangeiras, insinuando ou insistindo que no Brasil viriam a calhar. André Petry, de NovaYork, envia à revista Vejadesta semana (edição 2207, de 9/3/2011) matéria em que o herói é um educador negro, cujo mérito (inegável) foi sobrepor-se às dificuldades e criar saídas para si e para outros. A mensagem é clara: o grande responsável pelo fracasso dos alunos (norte-americanos, de baixa renda, enfrentando situações de risco social...) são os maus professores. O leitor acabará formulando a pergunta óbvia: por que não esperar que todos os nossos professores façam por merecer matéria semelhante?

O educador Geoffret Canada é faixa preta em tae kwon do e afirma que os alunos precisam de heróis:

"Essas crianças me veem como um gigante, um Superman ou Batman. Num mundo tão frio, tão duro, as crianças precisam de heróis. Heróis dão esperança e, sem esperança, essas crianças não têm futuro. Então, eu faço o papel de herói para elas, mesmo que, para isso, tenha de recorrer a truques baratos."

Para quem conhece o "projeto educacional" da Veja (ver, por exemplo, nesteObservatório, meu artigo "Palpites dogmáticos"), fica evidente a intenção. Começo de ano letivo, observem só o que um único herói pode fazer. Mas tem mais. A revista menciona o modelo das "escolas-charter". Não é a primeira vez. Nem será a última. A julgar pelo fascínio que as "lições de Nova York" exercem sobre o grupo Abril, essa discussão vai longe.

Em suma, se tivermos docentes que lutem direito, saibam competir, sejam administrados por um novo modelo de gestão... a educação irá!

A crítica mundo cão

Um terceiro tipo de crítica, em que realismo, ironia e humor se mesclam, surge em matérias criativas como a da revista Piauí de fevereiro deste ano – "O Brasil é aqui", de Raquel Freire Zangrandi.

Uma narrativa sobre o cotidiano de uma escola da rede municipal carioca. Um documentário cinematográfico em papel. Sem papas na língua. Sem rodeios e sem frases motivacionais. Refletindo a distância infinita entre boas intenções didáticas e a realidade dos alunos e professores. Um buraco diz tudo:

"Às sete e meia da manhã, vinte minutos depois do horário marcado, começa a aula de português. No quadro-negro que hoje em dia é branco, uma aluna passa exercícios sobre classificação de predicados. O quadro tem um buraco de 30 centímetros de diâmetro bem no meio de sua superfície de fórmica. Está assim há algumas semanas, desde que um aluno o alvejou com um tubo de corretivo líquido."

Os problemas na educação crescem a olhos vistos. O rombo no quadro era "oval em agosto", um mês depois "tornou-se retangular". Em outubro, "o buraco aberto no quadro já atinge 1 metro de comprimento". O buraco simboliza o descaso. A lentidão. A inércia. A burocracia. Que prazer haverá em ensinar/aprender fatoração ou análise sintática diante desse buraco negro que está a ponto de nos engolir!?

As três formas de criticar a educação nacional partem da comprovação de circunstâncias que se repetem. Certamente nem tudo é infernal. Nem tudo é fim do mundo. Há registros de bons resultados, escolas em que a educação ainda vai.

Contudo, em diferentes pontos do país, encontramos professores desmotivados, alunos dispersos, violentos, perdidos, gestores perplexos e famílias carentes, ausentes. Um cenário vulnerável a comentários taxativos, cruéis, injustos, exagerados, como o do jornalista André Forastieri, em seu blog: "As escolas brasileiras são uma porcaria, do maternal ao doutorado".

***

Gabriel Perissé , Doutor em Educação pela USP e escritor;

Fonte: http://www.observatoriodaimprensa.com.br

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

A EFEMERIDADE DA ÉTICA É A SENSAÇÃO DE JUSTIÇA.

''A operação 'Lava Jato' deveria ser chamada de 'Mata Rato'' pois há um imenso descontrole secular de roedores devorando a estrutura do Estado, sem estar dentro dele.''


No Brasil os vultosos números da corrupção são de igual proporcionalidade ao que a imprensa suja recebe ilegalmente para estimular pânico e golpe de Estado há mais de uma década. Ou o que juízes e delegados recebem para encenar fatos, boatos, e enfeitar cenários. 

O que há de novo? - Nada, se todo processo de investigação virá espetáculo midiático de fatos contados, boatos narrados, cochichos ameaçados e privilégios à ''delatores safados''. Como diria o escritor Fernando Veríssimo 'aqui o fundo do poço é um pouco mais além'', (e não é no volume morto), mas no 'pré sal’ vivo até demais do interesse posterior. 

Aqui corrupção é um poço raso de doze anos, queria ver a busca nas profundezas do Pré Sal que começa na camada de Dom João VI no ano de 1808 até o poço escuro do Sociólogo das Privatizações e dai em diante fechar com as moedas em gotas que são contadas agora. 

Aqui o fim é sempre um recomeço: de benefícios para uns, passeio na prisão para outros, pão e circo midiático aos consumidores do oportunismo caótico e a falsa sensação de justiça e verdade aos que não já não sabem quem esta com a verdade. - Se quem investiga por aportes de benefícios mesmo em nome da justiça ou quem se coloca na condição de vitima com dedo em riste! 

Aqui desde a chegada da família real a corrupção tem viés de investimento, enquanto Saúde, Educação e Moradia despesa do Estado. ''A operação 'Lava Jato' deveria ser chamada de 'Mata Rato' pois há um imenso descontrole secular de roedores devorando a estrutura do Estado, sem estar dentro dele.'' Pois ratos tem em todo lugar de um campo arado para o plantio a um templo onde o demônio é escorraçado. 

A única diferença pode estar nos lugares onde alimentam suas pretensões, por isso uns comem milho, outros caviar, outros pão e circo e outros roem os dedos apontados para o suborno, delato, e o silêncio. Um rato em silêncio é sempre um rato acumulando benefícios. Talvez por isso tenhamos a nítida impressão que após cada tempestade midiática tudo se esfria como uma brisa ética efêmera com sensação de justiça - isso explica por que os ratos se multiplicam em quantidade, qualidade, número, vez, voz, vergonha, escândalos e silêncio! 

Neuri A. Alves 
Professor e Pesquisador.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

A INTOLERÂNCIA NO BRASIL ATUAL E NO MUNDO

''Todo esforço de supressão termina no terror dos que presumem ter a verdade e a impõem aos demais. O excesso de verdade acaba sendo pior que o erro.''

O assassinato dos chargistas franceses do Charlie Hebdo recentemente e a última eleição presidencial no Brasil trouxeram à luz um preconceito latente no mundo e na cultura brasileira: a intolerância. Restrinjo-me a esta pois a outra, a do Charlie Hebdo foi abordada num artigo anterior. A intolerância no Brasil é parte daquilo que Sergio Buarque de Holanda chama de “cordial” no sentido de ódio e preconceito, que vem do coração como a hospitalidade e simpatia. Em vez de cordial eu preferia dizer que o povo brasileiro é passional.

O que se mostrou na última campanha eleitoral foi o “cordial-passional” tanto como ódio de classe (desprezo do pobre) como o de discriminação racial (nordestino e negro). Ser pobre, negro e nordestino implicava uma pecha negativa e aí o desejo absurdo de alguns de dividir o Brasil entre o Sul “rico” e o Nordeste “pobre”. Esse ódio de classe se deriva do arquétipo da Casa Grande e da Senzala introjetada em altos setores sociais, bem expresso por uma madame rica de Salvador: “os pobres não contentes com receber a bolsa família, querem ainda ter direitos”. Isso supõe a idéia de que se um dia foram escravos, deveriam continuar a fazer tudo de graça, como se não tivesse havido a abolição da escravatura. Os homoafetivos e outros da LGBT são hostilizados até nos debates oficiais entre os candidatos, revelando uma intolerância “intolerável”.

Para entender um pouco mais profundamente a intolerância importa ir um pouco mais a fundo na questão. A realidade assim como nos é dada é contraditória em sua raiz; complexa, pois é convergência dos mais variados fatores; nela há caos originário e cosmos (ordem), há luzes e sombras, há o sim-bólico e o dia-bólicos. Em si, não são defeitos de construção, mas a condição real de implenitude de tudo que existe no universo. Isso obriga a todos a conviver com as imperfeições e as diferenças. E a sermos tolerantes com os que não pensam e agem como nós. Traduzindo numa linguagem mais direta: são pólos opostos, mas pólos de uma mesma e única realidade dinâmica. Estas polaridades não podem ser suprimidas. 'Todo esforço de supressão termina no terror dos que presumem ter a verdade e a impõem aos demais. O excesso de verdade acaba sendo pior que o erro.'

O que cada um (e a sociedade) deve sempre saber é distinguir um e outro pólo e fazer a sua opção. O indicado é optar pelo pólo de luz, do sim-bólico e do justo. Então o ser humano se revela um ser ético que se responsabiliza por seus atos e pelas consequências boas ou más que deles se derivam.

Alguém poderia pensar: mas então vale tudo? Não há mais diferença? Não se prega um vale tudo nem se borram as diferenças. Deve-se, sim, fazer distinções. O joio é joio e não trigo. O trigo é trigo, não joio. O torturador não pode ter o mesmo destino que sua vítima. O ser humano não pode igualar a ambos nem confundi-los. Deve discernir e optar pelo trigo, embora o joio continua existindo, mas sem ter a hegemonia.

Para fazer coexistir sem confundir estes dois princípios devemos alimentar em nós a tolerância. A tolerância é capacidade de manter, positivamente, a coexistência difícil e tensa dos dois pólos, sabendo que eles se opõem mas que com-põem a mesma e únca realidade dinâmica. Impõe-se optar pelo pólo luminoso e manter sob controle o sombrio.

O risco permanente é a intolerância. Ela reduz a realidade, pois assume apenas um pólo e nega o outro. Coage a todos a assumir o seu pólo e a anula o outro, como o faz de forma criminosa o Estado Islâmico e a Al Qaeda. O fundamentalismo e o dogmatismo tornam absoluta a sua verdade. Assim eles se condenam à intolerância e passam a não reconhecer e a respeitar a verdade do outro. O primeiro que fazem é suprimir a liberdade de opinião, o pluralismo e impôr o pensamento único. Os atentados como o de Paris têm por base esta intolerância.

É imperioso evitar a tolerância passiva, aquela atitude de quem aceita a existência com o outro não porque o deseje e veja algum valor nisso, mas porque não o consegue evitar.

Há que se incentivar a tolerância ativa que consiste na coexistência, na atitude de quem positivamente convive com o outro porque tem respeito por ele e consegue ver os valores da diferença e assim pode se enriquecer.

A tolerância é antes de mais nada uma exigência ética. Ela representa o direito que cada pessoa possui de ser aquilo que é e de continuar a sê-lo. Esse direito foi expresso universalmente na regra de ouro “Não faças ao outro o que não queres que te façam a ti”. Ou formulado positivamente:”Faça ao outro o que queres que te façam a ti”. Esse preceito é óbvio.

O núcleo de verdade contido na tolerância, no fundo, se resume nisso: cada pessoa tem direito de viver e de conviver no planeta Terra. Ela goza do direito de estar aqui com sua diferença específica em termos de visões de mundo, de crenças e de ideologias. Essa é a grande limitação das sociedades européias: a dificuldade de aceitar o outro, seja árabe, muçulmano ou turco e na sociedade brasileira, do afro-descendente, do nordestino e do indígena. As sociedades devem se organizar de tal maneira que todos possam, por direito, se sentir incluídos. Daí nasce a paz, que segundo a Carta da Terra, é ”a plenitude criada por relações corretas consigo mesmo, com outras pessoas, com outras culturas, com outras vidas, com a Terra e com o Todo maior da qual somos parte”(n.16 f).

A natureza nos oferece a melhor lição: por mais diversos que sejam os seres, todos convivem, se interconectam e formam a complexidade do real e a esplêndida diversidade da vida.

Leonardo Boff é colunista do JBonline, teólogo e filósofo

Fonte: https://leonardoboff.wordpress.com