segunda-feira, 7 de março de 2016

AMEAÇAS À MÃE TERRA E COMO ENFRENTÁ-LAS

''Se não começarmos com mudanças substanciais o futuro comum Terra-Humanidade corre risco. Vivemos tempos de urgência e de irreversibilidade.''

Há quatro ameaças que pesam sobre a nossa Casa Comum e que exigem de nós especial cuidado.

A primeira é a visão pobre da Terra sem vida e sem propósito dos tempos modernos. Ela foi entregue à exploração impiedosa em vista do enriquecimento. Tal visão que trouxe benefícios inegáveis, acarretou também um desequilíbrio em todos os ecossistemas que provocaram a atual crise ecológico generalizada. Nesse afã foram eliminados povos inteiros como na América Latina, devastaram-se a floresta atlântica e, em parte, a Amazônia e o cerrado.

Em janeiro de 2015 18 cientistas publicaram na famosa revista Science um estudo sobre “Os limites planetários: um guia para um desenvolvimento humano num mundo em mutação”. Elencaram 9 dados fundamentais para a continuidade da vida. Entre eles estavam o equilíbrio dos climas, a manutenção da biodiversidade, preservação da camada de ozônio, e controle da acidificação dos oceanos entre outras. Todos os itens encontram-se em estado de erosão. Mas dois são os mais degradados, que eles chamam de “limites fundamentais”: a mudança climática e a extinção das espécies. O rompimento destas duas fronteiras fundamentais pode levar a civilização ao colapso.

Cuidar da Terra neste contexto significa que ao paradigma da conquista que devasta natureza devemos opor o paradigma do cuidado que preserva a natureza. Este cura as feridas passadas e evita as futuras. O cuidado nos leva a conviver amigavelmente com todos os demais seres e a respeitar os ritmos da natureza. Devemos, sim, produzir o que precisamos para viver, mas com cuidado e dentro dos limites suportáveis de cada região e com a riqueza de cada ecossistema. À Terra como baú de recursos devemos opor a compreensão atual da Terra como Grande Mãe e Gaia, super-organismo vivo.

A segunda ameaça consiste na máquina de morte das armas de destruição em massa: armas químicas, biológicas e nucleares. Elas já estão montadas e podem destruir toda a vida do planeta por 25 formas diferentes. Como a segurança nunca é total devemos cuidar para que não sejam usadas em guerras e que o mecanismos de segurança sejam cada vez mais severos.

À esse ameaça devemos opor uma cultura da paz, do respeito aos direitos da vida, da natureza e da Mãe Terra, a distensão e do diálogo entre os povos. Ao invés do ganha-perde, viver o ganha-ganha buscando convergências nas diversidades. Isso significa criar equilíbrio e gerar o cuidado.

A terceira ameaça é a falta de água potável. De toda água que existe na Terra apenas 3% é água doce, o resto é salgada. Destes 3%, 70% vão para a agricultura, 20% para a indústria e somente destes 0,7%, 10% vão para a dessetentação humana e animal É um volume irrisório o que explica que mais de um bilhão de pessoas vivem com insuficiência de água potável.

Cuidar da água da Terra é cuidar das florestas, pois são elas as protetoras naturais de todas as águas. Cuidar da água exige zelar para que as nascentes sejam cercadas de árvores e todos os rios tenham sua mata ciliar, pois são elas que alimentam as nascentes. Ocorre que mais da metade das florestas húmidas foram desmatadas, alterando os climas, secando rios ou diminuindo a água dos aquíferos. O que melhor podemos sempre fazer é reflorestar.

A quarta grande ameaça é representada pelo aquecimento crescente da Terra. Pertence à geofísica do planeta que ele conheça fases de frio e fases de calor que sempre se alternam. Ocorre que este ritmo natural foi alterado pela excessiva intervenção humana em todas as frentes da natureza e da Terra. O dióxido de carbono, o metano e outros gases do processo industrialista criaram uma nuvem que circunda toda a Terra e que retém o calor aqui em baixo. Estamos próximos a 2 graus Celsius. Com esta temperatura pode-se ainda administrar os ciclos da vida.

A COP21 de Paris do final de 2015 criou um consenso entre as 192 nações de fazer tudo para não chegar a dois graus Celsius tendendo a 1,5 o nível da sociedade pré-industrial. Se ultrapassar este a espécie humana estará perigosamente ameaçada.Pena que tais decisões não tenham valor legal mas sejam apenas voluntárias.

Não sem razão que os cientistas criaram uma nova palavra para qualificar nosso tempo: o antropoceno. Este configuraria uma nova era geológica, na qual o grande ameaçador da vida, o verdadeiro Satã da Terra, é o próprio ser humano em sua irresponsabilidade e falta de cuidado.

Outros aventam a hipótese segundo a qual a Mãe Terra não nos quereria mais vivendo em sua Casa. Arranjaria um modo de nos eliminar, seja por um desastre ecológico de proporções apocalípticas seja por alguma super-bactéria poderosíssima e inatacável, permitindo assim que as outras espécies não se sentissem mais ameaçadas por nós e possam continuar no processo da evolução.

Contra o aquecimento global devemos buscar fontes alternativas de energia, como a da biomassa, a solar e a eólica, pois a fóssil, o petróleo, o motor de nossa civilização industrial, produz, em grande parte, o dióxido de carbono. Devemos viver os vários êrres (r) da Carta da Terra: reduzir, reusar e reciclar, reflorestar, respeitar e rejeitar todo o apelo ao consumo. Tudo o que possa poluir o ar deve ser evitado, para impedir o aquecimento global.

Se não começarmos com mudanças substanciais o futuro comum Terra-Humanidade corre risco. Vivemos tempos de urgência e de irreversibilidade. A Terra nunca mais será como antes. Temos que cuidar para que as transformações que lhe temos introduzido sejam benéficas para a vida e não o seu holocausto.

Leonardo Boff é colunista do JB on line e escreveu Os direitos do corção. Paulus 2016.


Fonte: https://leonardoboff.wordpress.com

domingo, 6 de março de 2016

Para que serve a hostilização ao PT?

''A igreja já seduziu o povo para este comportamento, os nazistas já fizeram isto e hoje fazem isto com o PT.''

Nota-se uma crescente e contínua campanha de hostilização ao Partido dos Trabalhadores e também de seus militantes e simpatizantes. Sendo que agora passaram a atacar um símbolo desta organização, o presidente Lula. Mas qual razão desta hostilização? Alguns responderão que isto está sendo orquestrado pela grande mídia e por organizações políticas de oposição. De fato existem indícios. Mas o que quero refletir aqui é sobre o porquê de tão grande adesão a esta forma de linchamento público de um grupo e mesmo de uma pessoa que é um símbolo deste grupo e que extrapola a esfera de relações dentro desta organização. 


Acredito que o fermento de tudo isto está na ignorância coletiva que uma parte significativa do povo brasileiro tem sobre história e a memória deste país e deles mesmos. Penso que os grandes veículos de comunicação através suas operações psico-informativas desconstruíram e reconstruíram a memória política e social deste país e deste povo, ao menos de uma grande parcela. Penso que para pessoas ignorantes quanto aos assuntos sociais e políticos, ter algo como bruxas, judeus, terroristas e outros que conspiram trazendo o mal, sempre foi algo bem aceito. Porquê ? 

Simples, era mais fácil para alguém na época das “bruxas” considerá-las como um objeto a ser hostilizado, como depositárias do mal, do que aceitar os conflitos nas suas relações sociais primárias pessoais e secundárias impessoais. Se persigo o mal , se combato o mal, posso acreditar que sou o bem e faço o bem. Esta coisa não passa de uma catarse coletiva, terapia coletiva, em que de forma neurótica as pessoas depositam todos os males do mundo nas costas de um grupo social, deixando de enxergar tudo aquilo de ruim que elas mesmas fazem para os outros e para si mesmas. Alguém deve ser o cordeiro imolado para que a ordem divina retorne. 

A psicologia chama isto de mecanismo de projeção neurótica. A igreja já seduziu o povo para este comportamento, os nazistas já fizeram isto e hoje fazem isto com o PT. Peguem suas tochas, queimem grupos e pessoas e esqueçam a desgraça de suas vidas de seus empregos, de seus casamentos, esqueçam os impostos que sonegam, a puxada de tapete no colega, as intrigas e insatisfações em suas famílias, os coitos repetitivos e esqueçam mais do que tudo a desgraça das suas ignorâncias. Buda já afirmava: " O mal não existe, o que existe é a ignorância".

Narendranath Martins Costa - Professor de História - Graduado pela Universidade Federal de Santa Maria/RS

Fonte: https://www.facebook.com/narendranath.costa

quinta-feira, 3 de março de 2016

PRAGMATISMO ANTIÉTICO DO MERCADO

''A ética existe apenas enquanto discurso para iludir os ingênuos, assim como os “selos verdes” que emolduram a propaganda das grandes empresas devastadoras do meio ambiente.''


Foto: Frei Betto
Nas páginas iniciais do primeiro livro da Bíblia, o Gênesis, o tema da ética sobressai: no centro do Jardim do Éden havia uma árvore do bem e do mal. A árvore é o símbolo óbvio de que toda a organização da vida humana deve ser planejada em torno de princípios éticos.

Nascemos para a liberdade. Se somos livres, temos sempre diante dos olhos um leque de opções. Podemos optar pela opressão ou pela libertação; pela mentira ou pela verdade; pela competitividade ou pela solidariedade.

Cada uma de nossas opções, tanto pessoais quanto sociais, se funda em uma raiz ética ou antiética. Pois, como acentua Santo Tomás de Aquino, estamos todos, sem exceção, em busca do bem maior, mesmo quando praticamos o mal. E o bem maior é a felicidade.

A ética exige, porém, uma resposta de cada um de nós: busco a minha felicidade, ainda que obtida mediante a infelicidade alheia, ou busco a felicidade de todos, ainda que a minha felicidade seja coroada pelo sacrifício da própria vida?

Sabemos que no mundo capitalista, globocolonizado, o desenvolvimento, como bem analisou Marx, sempre significou maior acumulação de riquezas em mãos privadas. Nunca foi realizado em função das reais necessidades da maioria da população. Abrem-se ruas asfaltadas e iluminadas em loteamentos de terrenos vazios, destinados a condomínios de luxo, enquanto as ruas populosas das periferias das cidades não merecem nenhum tipo de calçamento e nelas proliferam valas infectadas de dejetos humanos.

Talvez o mais significativo exemplo da lógica perversa que rege o desenvolvimento capitalista seja o fato extraordinário de o ser humano, ao custo de US$ 6 bilhões, ter colocado os pés na face da lua. No entanto, ainda não logrou colocar nutrientes essenciais na barriga de milhões de crianças da América Latina, da África e da Ásia.

A razão instrumental da modernidade fracassou por ceder ao pragmatismo do mercado e se distanciar de valores como a ética. No capitalismo, qualquer sistema axiológico constitui um estorvo. A ética existe apenas enquanto discurso para iludir os ingênuos, assim como os “selos verdes” que emolduram a propaganda das grandes empresas devastadoras do meio ambiente.

É o caso da Companhia Vale, no Brasil, e a Samarco, a ela vinculada, que em novembro de 2015, devido ao rompimento de uma barragem, ocasionou o maior desastre ecológico da história do Brasil, envenenando o rio Doce, uma de nossas vias fluviais mais importantes e causando um prejuízo avaliado em, no mínimo, R$ 20 bilhões.

Desenvolvimento, no mundo capitalista, é antes um negócio que um programa de aprimoramento da qualidade de vida da população. Vide a especulação imobiliária. Enquanto 1/3 da população do Rio de Janeiro habita em favelas, ou seja, 2 milhões de pessoas, na orla marítima milhares de casas e apartamentos permanecem fechados quase todo o ano, e são abertos apenas quando as férias de seus proprietários coincidem com o período de verão.

No DNA do desenvolvimento capitalista há um vírus que parece imbatível: a corrupção. O Brasil se destaca hoje, infelizmente, como país onde a corrupção contaminou tanto o governo como nossas maiores empresas, como a Petrobras. Há que lembrar que o mesmo ocorre em inúmeros países. A diferença – meritória para o Brasil – é que os governos Lula e Dilma não moveram um dedo para impedir a Polícia Federal e o Ministério Público de denunciarem e investigarem corruptos e corruptores no poder público e na iniciativa privada, incluindo presidentes de grandes empreiteiras e ministros do governo do Partido dos Trabalhadores.

Toda a história do desenvolvimento brasileiro é marcada pelo casamento entre corrupção e impunidade. Felizmente a Justiça promove o divórcio, estabelece transparência e favorece prisões e punições, processo esse que, infelizmente, está longe de chegar ao fim.

Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Cristovam Buarque e Veríssimo, entre outros, de “O desafio ético” (Garamond).

quarta-feira, 2 de março de 2016

NA MINHA SALA DE AULA EU SOU A DEFESA DOS QUE QUEREM

''Eu simbiose professor e aluno sou o centro do interesse dos que querem apreender e não dos que se negam entender''

Na minha sala de aula aluno não faz o que quer... não usa celular, não fuma maconha, na tira a camisa, não joga baralho, não entra sem material escolar, não entra de biquini ou sunga, shortinho desfiado, minissaia, regata fitness e quinquilharias mais.

A sala de aula tem que ser terra sagrada, trincheira para soldados que sonham e dispostos a vencer, para mestres que ensinam e mestres que aprendem, replicam e aperfeiçoam o mestre. É lugar para revolucionar a dúvida e levantar colunas de certeza, prévias, frágeis flexíveis aos ajustes e aperfeiçoamento do tempo. Quem não esta disposto a permanecer ali não deve ser forçado, por isso convidados a ser retirar. 

A democracia não é só direito a escolha, mas também o dever de indicar o caminho aos que ainda não sabem, não querem ou relutam assimilar alimentando-se de suas contradições - por si mesmos ou por conveniência dos país e responsáveis.

Na minha sala de aula, país irresponsáveis, diretores incompetentes, gestor pedagógico de delinquente classe média ou revoltado inconsequente não tem poder de decisão, de imposição. 

Eu simbiose professor e aluno sou o centro do interesse dos que querem apreender e não dos que se negam entender e acham que é local de desfile de tipinho, Lan house de celulares, acadêmia para corpinhos definidos a exposição, passarela de moda, vale da fumacinha ou cheirinho, ante-sala do hedonismo e orgias de corpos cobertos de desejos e cabeças nuas de valores e limites.

Se querem é assim, não dependo de estar ali, dependo dos que querem estar ali e por esses eu renuncia o que necessário for e enfrento os desafios que muitos procuram correr. Na minha sala de aula eu sou a defesa dos que querem aprender e me ensinar.

Neuri A. Alves - Professor, Pesquisador e Assessor de Formação e Educação Popular 

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

UMA CULTURA CUJO CENTRO É O CORAÇÃO

''A essência do ser humano é o coração que deve ser cuidado para ser afável, compreensivo e amoroso. Toda a educação que se prolonga ao largo da vida é cultivar a dimensão do coração.''


Leonardo Boff
A nossa cultura, a partir do assim chamado século das luzes (1715-1789) aplicou de forma rigorosa a compreensão de René Descartes (1596-1650) de que o ser humano é “senhor e mestre” da natureza podendo dispor dela ao seu bel-prazer. Conferiu um valor absoluto à razão e ao espírito científico. O que não conseguir passar pelo crivo da razão, perde legitimidade. Daí se derivou uma severa crítica a todas as tradições, especialmente à fé cristã tradicional.

Com isso se fecharam muitas janelas do espírito que permitem também um conhecimento sem necessariamente passar pelos cânones racionais. Já Pascal notara esse reducionismo falando nos seusPensées da logique du coeur ( “o coração tem razões que a razão desconhece”) e do esprit de finesse que se distingue do esprit de géométrie, vale dizer, da razão calculatória e instrumental analítica.

O que mais foi marginalizado e até difamado foi o coração, órgão da sensibilidade e do universo das emoções, sob o pretexto de que ele atrapalharia “as ideias claras e distintas” (Descartes) do olhar científico. Assim surgiu um saber sem coração, mas funcional ao projeto da modernidade que era e continua sendo o de fazer do saber um poder e um poder como forma de dominação da natureza, dos povos e das culturas. Essa foi a metafísica (a compreensão da realidade) subjacente a todo o colonialismo, ao escravagismo e eventualmente à destruição dos diferentes, como das ricas culturas dos povos originários da América Latina (lembremos Bartolomé de las Casas com sua História da destruição das Índias) e também do capitalismo selvagem e predador.

Curiosamente a epistemologia moderna que incorpora a mecânica quântica, a nova antropologia, a filosofia fenomenológica e a psicologia analítica tem mostrado que todo conhecimento vem impregnado das emoções do sujeito e que sujeito e objeto estão indissoluvelmente vinculados, às vezes por interesses escusos (J. Habermas).

Foi a partir de tais constatações e com a experiência desapiedada das guerras modernas que se pensou no resgate do coração. Finalmente é nele que reside o amor, a simpatia, a compaixão, o sentido de respeito, base da dignidade humana e dos direitos inalienáveis. Michel Maffesoli na França, David Goleman nos USA, Adela Cortina na Espanha, Muniz Sodré no Brasil e tantos outros pelo mundo afora se empenharam no resgate da inteligência emocional ou da razão sensível ou cordial. Pessoalmente estimo que, face à crise generalizada de nosso estilo de vida e de nossa relação para com a Terra, sem a razão cordial não nos moveremos para salvaguardar a vitalidade da Mãe Terra e garantir o futuro de nossa civilização.

Isso que nos parece novo e uma conquista – os direitos do coração – era o eixo da grandiosa cultura maya na América Central, particularmente na Guatemala. Como não passaram pela circuncisão da razão moderna, guardam fielmente suas tradições que vêm pelas avós e pelos avôs, ao largo das gerações. O escrito maior o Popol Vuh e os livros de Chilam Balam de Chumayel testemunham essa sabedoria.

Participei mais vezes de celebrações mayas com os seus sacerdotes e sacerdotisas. É sempre ao redor do fogo. Começam invocando o coração dos ventos, das montanhas, das águas, das árvores e dos ancestrais. Fazem suas invocações no meio de um incenso nativo perfumado e produtor de muita fumaça.

Ouvindo-os falar das energias da natureza e do universo, parecia-me que sua cosmovisão era muito afim, guardadas as diferenças de linguagem, da física quântica. Tudo para eles é energia e movimento entre a formação e a desintegração (nós diríamos a dialética do caos-cosmos) que conferem dinamismo ao universo. Eram exímios matemáticos e haviam inventado o número zero. Seus cálculos do curso das estrela se aproximam em muito ao que nós com os modernos telescópios alcançamos.

Belamente dizem que tudo o que existe nasceu do encontro amoroso de dois corações, do coração do Céu e do coração da Terra. Esta, a Terra, é Pacha Mama, um ser vivo que sente, intui, vibra e inspira os seres humanos. Estes são os “filhos ilustres, os indagadores e buscadores da existência”, afirmações que nos lembram Martin Heidegger.

A essência do ser humano é o coração que deve ser cuidado para ser afável, compreensivo e amoroso. Toda a educação que se prolonga ao largo da vida é cultivar a dimensão do coração. Os Irmãos de La Salle mantém na capital Guatemala uma imenso colégio –Prodessa – onde jovens mayas vivem na forma de internato, onde se recupera, bilíngue, e sistematiza a cosmovisão maya, ao mesmo tempo em que assimilam e combinam saberes ancestrais com os modernos especialmente ligados à agricultura e a relações respeitosas para com a natureza.

Apraz-me concluir com um texto que uma mulher sábia maya me repassou no final de um encontro só com indígenas mayas em meados de fevereiro.”Quando tens que escolher entre dois caminhos, pergunta-te qual deles tem coração. Quem escolhe o caminho do coração jamais se equivocará” (Popol Vuh).

Fonte: https://leonardoboff.wordpress.com

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

COMO REINVENTAR O TEMPO E O ESPAÇO DA ESCOLA

Mais convivência, soluções democráticas e contato com a natureza podem mudar espaços de convivência e aprendizagem.

Gabriel Jareta

Foto: Gustavo Morita
Uma árvore pode ser um elemento de escolarização, tal qual um quadro-negro ou uma carteira? A sala de aula pode prescindir de paredes e divisões? Algumas experiências escolares dizem que sim – e que as relações com a natureza e o aprofundamento da convivência entre os estudantes podem ser tão importantes quanto os elementos tradicionais da escola. “À luz da produção científica no campo da educação, é descabido manter a expressão ‘sala de aula’ no discurso pedagógico. Falemos, antes, de espaços de aprendizagem. De espaços de convivência reflexiva, de que as escolas carecem”, afirma o pedagogo José Pacheco, idealizador da Escola da Ponte e colunista de Educação.

A escola, criada em 1976, e localizada em Vila das Aves, Portugal, é uma das experiências mais bem-acabadas da gestão democrática escolar, em contraposição à organização tradicional da escola. Ao promover uma educação “horizontal” e com protagonismo dos alunos, a Escola da Ponte é um reflexo das ideias de Pacheco sobre a educação escolar. “Uma escola não educa para a cidadania, educa na cidadania, em espaços onde se exercite uma liberdade responsável”, diz. E completa: “Reflitamos sobre competências-chave do século 21: interagir em grupos heterogêneos da sociedade, agir com autonomia, usar ferramentas interativamente, competências que, dificilmente, o modelo de ensino convencional logra desenvolver”.

► MUNDO EXTERIOR

A concepção democrática da escola muitas vezes inclui a derrubada (às vezes metafórica, às vezes literal) dos muros que dividem as salas entre si e que separam a escola da comunidade ao redor. Nas palavras de Pacheco, a busca é por “recriar o espaço e o tempo de aprender”. Numa escala mais viável para o dia a dia das escolas brasileiras, o contato das turmas de estudantes com o mundo exterior pode se dar com uma aula eventual ao ar livre ou em um ambiente fora da escola. Isso inclui outro elemento em falta no ambiente escolar que, na opinião de alguns educadores, é fundamental para a escola: uma relação mais próxima
com a natureza.

“Muitas escolas têm árvores, plantas, mas elas não fazem parte da experiência das pessoas, estão lá apenas como objeto decorativo. E muitas vezes elas nem mesmo podem ser tocadas, porque as crianças podem estragá-las. Escolas de educação infantil cobrem o chão com piso emborrachado, para as crianças não correrem riscos. Mesmo em muitos parques é proibido subir nas árvores”, observa Rita Mendonça, autora do livro Atividades em áreas naturais, publicado pelo Instituto Ecofuturo. Bióloga de formação, Rita trabalha junto a professores para desenvolver projetos de educação voltados para a natureza.

Para ela, uma única árvore na escola é capaz de abrir possibilidades de ensino que os professores e diretores muitas vezes não são capazes de perceber. “Mesmo quando você leva elementos da natureza para a sala de aula, as crianças ficam ativadas com todos os sentidos”, diz. Rita afirma que diversas disciplinas podem ser trabalhadas usando a natureza – a própria matemática, lembra, é uma abstração do mundo natural. “A vida real é a vida corpórea, a vida da natureza, essa é a vida real”, aponta.

► SILÊNCIO

De acordo com Rita, as aulas na natureza tornam os alunos mais calmos, cooperativos e com reações mais espontâneas, valores que deveriam ser considerados importantes na escola. Segundo os relatos de professores com quem ela trabalhou, aqueles alunos mais agitados e irrequietos ficam mais tranquilos e participam com mais interesse de atividades que exigem concentração e silêncio. “Aquilo que a gente pensa dentro da sala é o mesmo que a gente pensa fora dela? O contato com a natureza favorece o desenvolvimento cognitivo, a criatividade e a prontidão para resposta”, diz. Mesmo para os professores, é muito exaustivo tentar manter as crianças e jovens em silêncio e concentradas por muito tempo dentro da sala de aula.

Na opinião da educadora, os espaços escolares atuais têm uma abundância grande de objetos – inclusive tecnológicos – mas não oferecem tempo e espaço adequados para os alunos. Além disso, pais e professores não estão sendo capazes de olhar para as reações das crianças e entender o que elas significam, sem uma compreensão da dimensão emocional da educação. “A gente está se colocando a serviço da tecnologia, e não a tecnologia ao nosso serviço. Isso causa um desequilíbrio”, diz. Esse desequilíbrio, segundo ela, poderia ser atenuado ao tirar as crianças do ambiente fechado da sala, mesmo que por um breve período: fazer uma aula em uma praça, por exemplo, sair para as ruas ou quebrar um pouco o concreto da escola. “A natureza não é previsível: pode passar um passarinho cantando, pode chover, pode alguém tropeçar. Trabalhar essa disponibilidade para o imprevisível é muito importante”, afirma Rita.

COMO AUMENTAR A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA ATÉ 2030

Coordenadora de educação da Unesco no Brasil fala sobre avanços nos últimos 15 anos e destaca passos a serem dados para que a qualidade acompanhe a expansão do acesso

Mariana Ezenwabasili

Os 195 países-membros da Organização para a Educação, a Ciência e a Cultura das Nações Unidas (Unesco) estão em um novo ciclo de trabalhos para a melhoria da educação em seus territórios. Vencido o prazo de validade do Marco de Ação de Dakar, registrado no documento Educação para todos: cumprindo nossos compromissos coletivos e norteador das metas internacionais da área entre os anos 2000 e 2015, entra vigor neste ano o Marco de Ação de Educação 2030 (versão em inglês).

O novo texto-guia da educação mundial para os próximos quinze anos foi aprovado no fim de 2015, durante a 38ª Conferência Geral da Unesco, em Paris, na França. Suas metas têm base no que foi decidido na Conferência Mundial de Educação, realizada em maio do ano passado, na cidade de Incheon, na Coreia do Sul. Entre elas, destaca-se: a previsão de que os países da Unesco invistam, no mínimo, entre 4% e 6% de seu Produto Interno Bruto (PIB) em educação, e garantam à população uma educação primária e secundária gratuita e de qualidade com duração de nove anos.

Rebeca Otero, coordenadora de Educação da Unesco no Brasil, esteve presente em todas as etapas de elaboração e assinatura dos novos documentos. Ela destaca que, enquanto muitos países não conseguiram cumprir várias das metas entre 2000 e 2015, o Brasil progrediu. “Mas, por exemplo, a garantia de qualidade e de acesso à educação infantil, a isso a gente não conseguiu chegar”, diz.

Na entrevista a seguir, Rebeca pondera aspectos positivos e negativos das políticas educacionais brasileiras frente às de outros países, e fala sobre por que a expansão do acesso à Educação Básica por aqui não foi acompanhada da melhoria do ensino e, consequentemente, da aprendizagem.

Muitos países não conseguiram cumprir as metas estabelecidas para a educação no mundo entre os anos de 2000 e 2015. O que explica isso?

A maior parte das nações não conseguiu chegar às metas do ciclo de 2000 a 2015. No entanto, tem alguns pontos que a Unesco avalia como importantes e que prejudicaram o cumprimento. Um deles é o financiamento. Não ter uma meta de financiamento [no documento Educação para todos: cumprindo nossos compromissos coletivos] fez com que os países não alocassem recursos [na área]. Por isso, nesse novo pacto de ação há um compromisso com esse tema. Estamos tentando trabalhar um pouco melhor essa questão do investimento, porque sem ele realmente fica difícil alcançar as metas.

Estamos aprimorando o monitoramento do cumprimento das metas para que, durante o próprio período de quinze anos, antes que se diga “ah, não alcançou”, os países já possam ir trabalhando as suas dificuldades. O entendimento é que os países querem fazer, querem avançar. Os que não cumpriram as metas tiveram falta de vontade política e outras dificuldades mesmo. Existem países muito carentes, muito precários. Em vários deles, há necessidades de que haja doações de recursos em nível mundial, uma forma de contribuir para que alcancem as metas.

E o Brasil, cumpriu as metas estipuladas para o período? O que esperar daqui para a frente?

O Brasil teve bastante avanço. Não chegou a cumprir todas as metas, mas avançou em várias delas: cumpriu a de acesso à educação primária, a de paridade de gênero para o acesso ao ensino também. Mas, por exemplo, a garantia de qualidade e de acesso à educação infantil, a isso a gente não conseguiu chegar. Já estamos quase lá: temos 80% de crianças matriculadas na pré-escola. O Brasil avançou muito também nos sistemas de avaliação, que vão contribuir com a qualidade para a melhoria do aprendizado. Mas, no geral, ainda precisamos trabalhar várias das metas. Agora, o foco está nas novas metas, que contemplam também o que não foi alcançado antes. Se o Brasil cumprir exatamente o seu Plano Nacional de Educação, vai conseguir avançar muito e ter um papel bastante relevante em nível mundial.

Como observa o processo de universalização de acesso à Educação Básica no país? Acha que a medida foi suficiente e eficiente?

O Brasil deu acesso, ou seja, as pessoas estão na escola no ensino fundamental, há vaga para meninos e para meninas. No entanto, tem um problema de qualidade dentro da escola. Os mais novos vão à escola, mas não conseguem aprender como deveriam para que saiam de lá com o desempenho desejado. No geral, o Brasil ainda tem um problema de qualidade e estamos correndo atrás. Estamos tentando, mas ainda falta. Mas, então, como contornar a falta de qualidade na educação? Para a Unesco, isso tem muito a ver com a questão da formação do professor e com os fatores associados à educação que estão relacionados a questões sociais, à violência, às drogas, essas coisas que permeiam também, em especial, as áreas mais vulneráveis da população do nosso território, áreas onde temos uma qualidade menor da educação.

Temos de melhorar a qualidade dos professores. Não é que os nossos professores não sejam bons, eles são bons, mas precisam se qualificar ainda mais para responder a esse novo aluno do século 21. Esse professor precisa saber mexer com as tecnologias, estar atualizado, não estar sobrecarregado, ser valorizado, precisa ter um plano de carreira. Tudo isso é bastante importante. Também precisamos alocar professores onde eles são mais necessários e atrair os jovens que querem ser docentes para a carreira. E essa carreira tem de ser atrativa, tem de ter formação continuada, tem de ser respeitada pela população.

O Marco de Ação de Educação 2030 prevê a cooperação internacional para a formação docente em países subdesenvolvidos e em desenvolvimento. O Brasil precisa dessa ajuda?

O Brasil tem capacidade de formar os seus professores, tem diversas universidades. A gente precisa melhorar essa formação inicial, fazer com que ela seja mais atual, mais moderna, tenham componente pedagógico maior e não só conteúdo teórico. E já temos um grupo muito bom de universidades que trabalham na formação docente inicial. Então, vejo que o Brasil pode, sozinho, resolver os seus próprios problemas com relação aos docentes, não precisa apelar para uma formação que vai ser dada por algum país. Claro que é importante também fazer um intercâmbio entre professores de vários países, fazer redes de troca de conhecimento e metodologias.

Isso também deve estar no horizonte. Mas, no geral, se o Brasil fizer um bom investimento na área docente junto às universidades, aos centros de formação, às secretarias de Educação que promovem a formação continuada, se melhorar os salários e a carreira, nossos professores rapidamente vão ter um salto muito grande de qualidade, e a nossa educação também.

É produtivo fazer marcos gerais de educação para países com históricos sociais e culturais diferentes?

Por causa dessas diferenças as metas são bem gerais. Tem, por exemplo, um compromisso com uma educação de nove anos gratuita que deve ser oferecida em todos os países. No caso do Brasil, isso é muito pouco, porque já temos mais do que isso [em termos de oferecimento de anos de estudos]. Então, para o nosso país, é importante entender que as metas são gerais e dadas para o nível global. Ou seja, até 2030 todos os países deverão ter nove anos de educação livre, gratuita para todas as pessoas; até 2030, queremos ter o acesso à educação infantil de qualidade, em especial a pré-escola, garantida em todos os países-membros da Unesco e signatários do documento. Como as metas são muito gerais, cada país tem de desenvolver o seu plano nacional de educação.

A Unesco vai acompanhar a elaboração dos planos nacionais, que devem contemplar, no mínimo, o que foi estabelecido no Marco de Ação. No caso do Brasil, temos um Plano Nacional de Educação para os próximos dez anos. Ele contempla tudo o que o Marco de Ação solicita e ainda inclui mais quesitos. Nosso PNE tem pontos sobre a formação de professores, sobre um financiamento que chega a 10% do PIB, um percentual maior do que 4% ou 6% [como previsto no Marco de Ação]. Isso quer dizer que o PNE tem toda uma especificidade para o Brasil, e é assim que deve funcionar.

Por que os últimos marcos de ação da educação mundial priorizam a Educação Básica?

Realmente, nas metas do documento Educação para todos: cumprindo nossos compromissos coletivos, estipuladas em 2000 e válidas até hoje, havia questões sobre a ampliação da educação infantil nas escolas e nas creches. Isso é um ponto bastante importante, porque a primeira infância é fundamental para o desenvolvimento cognitivo da criança nos anos posteriores. A criança que passa por uma boa educação infantil tem muito mais chances de ter um aprendizado melhor nos últimos anos da Educação Básica. A Unesco sugere que os governos foquem bastante essa etapa e tentem expandi-la e ampliá-la. No sistema educacional brasileiro, isso é responsabilidade dos municípios, e muitas vezes as cidades não têm recursos suficientes. Isso tem de ser discutido em algum momento.

A inclusão escolar voltada especificamente para pessoas com necessidades especiais está prevista no atual Marco de Ação como prioridade internacional?

O documento é pautado pela inclusão. É um princípio presente no texto que a educação tem de ser inclusiva, tem de ser para todos, e, obviamente, isso inclui as pessoas com deficiência. Com relação ao Brasil, estamos avançados nesse sentido, temos uma legislação que obriga as escolas a incluir as crianças especiais no seu programa regular. No entanto, ainda existem desafios a serem superados: a estrutura dessas escolas para acolher essas crianças e a formação de professores. Em aspectos gerais, a escola tem de ser inclusiva, tem de estar preparada para receber os cadeirantes, os cegos, os surdos. Não é fácil, mas, a cada desafio, a escola vai se estruturando e se definindo. Também é direito dessas pessoas ter acesso à educação.

Uma curiosidade: recentemente, a área estatística da Unesco chegou a divulgar a intenção de criar uma avaliação mundial de educação. Como anda esse processo?

Essa ideia de avaliação ainda está um pouco tímida. Além do acompanhamento dos indicadores das metas dos marcos de ação, a Unesco desenvolve apenas alguns estudos relacionados à avaliação. Por enquanto, temos desenvolvido alguns estudos e feito comparações entre países. No campo da América Latina e do Caribe, desenvolvemos um estudo que se chama Terce e pode ser encontrado em nosso site [www.unesco.org]. Esse estudo faz uma comparação entre países da América Latina e do Caribe, equiparando currículos. Ou seja, compara currículos similares de diferentes nações. Para a elaboração, foi medida a aprendizagem dos alunos a partir da aplicação de uma prova, uma avaliação.

Também foram estudados fatores associados à educação que influenciam na aprendizagem, como classe social, condição socioeconômica e escolaridade dos pais. Esse é um exemplo do início do desenvolvimento de uma avaliação maior. Mas não há um processo global de avaliação coordenado pela Unesco. O Pisa [Programa Internacional de Avaliação de Alunos, sigla em inglês] é um processo mais global, mas ele só pega países da OCDE [34 nações] e alguns outros. No caso do nosso Terce, só foram avaliados países que concordaram em participar do estudo. Assim, também temos feito estudos na Ásia e na África que estão contribuindo para a construção de um processo avaliativo mais global. Mas, do meu ponto de vista, isso ainda está bastante longe de acontecer.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

AS ROSAS PEDEM ÁGUA, MAS MORREM AFOGADAS EM SANGUE

''Em qualquer relação onde houver agressão física, não há mais espaço para o amor, para a paixão, para a reconciliação.''
É triste a gente ler as notícias da cidade onde fixamos nossas raízes e saber que mais uma mulher é assassinada covardemente – sim, covardemente por aquele que dizia ser seu companheiro. A tristeza não vem do fato da morte em si, mas saber que ela é apenas mais um número da estatística e que neste momento dezenas, centenas, milhares estão sendo agredidas em suas casas, por telefone, em seu trabalho e vão ter a vida ceifada em breve por pilantras que sabem da impunidade, da lentidão da justiça e o descaso com a vida.

A gente não precisa ir longe para ver os trastes má intencionados que tem por aí, psicopatas a procura de um corpo para seus desejos e não uma companheira para sonharem juntos. Basta passar em alguns bares, frequentar essas casas de dança urbana ou escutar o papo dos machões caçadores. Eles não estão em busca de uma companheira, mas de uma mercadoria para manipulação, domínio e agressão. E para isso basta apenas um olhar de consentimento, de carência, de submissão da vítima após uma dança, um apertão, uma pegada, um olhar malicioso, pretensioso ou uma passagem por esses ambientes.

Não quero com isso jogar nas mulheres a culpa pela violência sofrida até porque vejo a negligência do Estado como ferramenta do terror. Quero sim dizer que as mulheres merecem mais que o tempo de espera em solidão, merecem mais que um corpo conhecido numa dança de domingo à tarde no forró da esquina, de uma piada galanteadora de um Dom Juan da violência. As mulheres merecem desfrutar dos critérios da boa escolha, tempo para conhecer e direito de decidir sem pressão qualquer para início de relacionamento e fim do mesmo se assim for necessário como direito constituído a liberdade de escolha.

Nenhuma mulher morrerá de fome alimentar, fome afetiva, fome social e qualquer tipo de solidão neste mundo, ou será menos sofrido enfrentar essa realidade do que ser agredida por um bandido. Essa autonomia tem que prevalecer, ser critério primeiro para livrarem-se dos milhares de tranqueiras que circulam por aí a procura de seu objeto sexual. Há um universo de interrogações colocadas a sombra do terror em vigência, perguntas que saltam a indignação, que pedem passagem, respostas concretas, ações apontando mudanças – são como gritos coletivos:

- Até quando as agressões físicas, verbais, e ameaças cotidianas serão entendidas apenas como briga de casal?

- Até quando a justiça entenderá a necessidade de intervenção somente por reincidência e sangue?

- Até quando as mulheres se submeteram a conquistas de papo fajuto de pilantras cachaceiros, zoneiros e pé de cana, metidos a pé de valsa nesses lugares de dança onde caçam suas vítimas?

- Até quando as agressões serão entendidas como briga de casal sem intervenção ou denúncias por parte de vizinhos, amigos, familiares, que sabem das agressões sofridas pela vítima?

- Até quando será permitido que pilantras façam de suas companheiras produtos de suas perversões, posse e direito de bater e matar?

- Até quando a estatística servirá apenas para escrever livros, balizar seminários de debates e fóruns pelo fim da violência doméstica?

- Até quando os filhos serão telespectadores deste cinema de terror gravado dentro da própria casa?

- Até quando a punição permanecerá apenas com prisão e não por pena de morte?

Basta executar alguns covardes em praça pública, aos olhos de todos e veremos que as estatísticas perdem o rumo que hoje seguem a passos largos, sem qualquer instrumento que as possam frear.

Enquanto as mulheres permaneceram reticentes a primeira agressão verbal, a segunda agressão será para afirmar covardia e a terceira para matar.

Enquanto as mulheres se deixarem levar pelo papo fajuto de pilantras que andam por aí como Dom Juan na pele de bichos pouca coisa mudará.

Enquanto as mulheres se deixarem levar pelo olhar do bandido que cobiça, agindo como caçador voraz que vai para cima com pinta de pegador, não estará apenas abrindo porta para suprir humanas carências afetivas, mas abrindo a porta do inferno para o demônio entrar - está cheio deste tipo por aí.

Enquanto no Brasil o crime desse nível de crueldade for punido apenas com cadeia para vagabundo jogar baralho e dar despesas ao Estado não podemos esperar resultados eficientes. Talvez agora somente a abertura da temporada de caça a todos os covardes pode surtir efeitos - faça sua lista. Ou continuaremos com estes relacionamentos afetivo regados com terror e regidos pela dura promessa: ‘até que a morte nos separe’!

Em qualquer relação onde houver agressão física, não há mais espaço para o amor, para a paixão, para a reconciliação. Isso não é determinismo pois os número da violência doméstica retratam essa dura realidade. Nestas relações a morte se torna a irmã gêmea do perdão (perdoar para morrer), não há perdão onde há dor latente – os números dizem isso até como retrato de uma justiça de Estado falida e inoperante.

Não há como chorar pela morte de todas as mulheres porque elas morrem as centenas, milhares neste momento em que escrevo, ...não há como gritar por cada uma, somente por todas, mas os gritos se calam, as vozes ficam roucas e aí é preciso a voz do Estado. Mas onde é o Estado? - é um campo de violência sobre os instrumentos de combate a violência. A negligência é por excelência a ferramenta da morte, fazendo de estatísticas o nosso doloroso jardim de espinhos, onde as rosas pedem água e então: Sangram, Sangram e
 Sangram.


Prof.Ms.Neuri Adílio Alves – Filosofia PUC/PR, Ms. Antropologia Filosófica/PUCCamp, Assessor de Educação e Formação Popular Fetraf/SC.

sábado, 6 de fevereiro de 2016

OS EQUIVOCOS DO PT E O SONHO DE LULA

''O PT deve ao povo brasileiro uma autocrítica nunca feita integralmente. Para se transformar numa fênix que ressurge das cinzas, deverá voltar às bases e junto com o povo reaprender a lição de uma nova democracia participativa, popular e justa que poderá resgatar a dívida histórica que os milhões de oprimidos ainda esperam desde a colônia e da escravidão.''

Durante quatro a cinco décadas houve vigorosa movimentação das bases populares da sociedade discutindo que “Brasil queremos”, diferente daquele que herdamos. Ele deveria nascer de baixo para cima e de dentro para fora, democrático, participativo e libertário. Mas consideremos um pouco os antecedentes histórico-sociais para entendermos por quê esse projeto não conseguiu prosperar.

É do conhecimento dos historiadores, mas muito pouco da população, como foi cruenta a nossa história tanto na Colônia, na Independência como no reinado de Dom Pedro I, sob a Regência e nos inícios do reinado de Dom Pedro II. As revoltas populares, de mamelucos, negros, colonos e de outros foram exterminadas a ferro e fogo, a maioria fuzilada ou enforcada. Sempre vigorou espantoso divórcio entre o Poder e a Sociedade. Os dois principais partidos, o Conservador e o Liberal, se digladiavam por pífias reformas eleitorais e jurídicas, porém jamais abordaram as questões sociais e econômicas.

O que predominou foi a Política de Conciliação entre os partidos e as oligarquias mas sempre sem o povo. Para o povo não havia conciliação mas submissão. Esta estrutura histórico-social excludente predominou até aos nossos dias.

No entanto, pela primeira vez, uma coligação de forças progressistas e populares, hegemonizadas pelo PT, vindo de baixo, chegou ao poder central. Ninguém pode negar o fato de que se conseguiu a inclusão de milhões que sempre foram postos à margem. Far-se-iam em fim as reformas de base?

Um governo ou governa sustentado por uma sólida base parlamentar ou assentado no poder social dos movimentos populares organizados.

Aqui se impunha uma decisão. Na Bolívia, Evo Morales Ayma buscou apoio na vasta rede de movimentos sociais, de onde ele veio como forte líder. Conseguiu, lutando contra os partidos. Depois de anos, construiu uma base de sustentação popular, de indígenas, de mulheres e de jovens a ponto de dar um rumo social ao Estado e lograr que mais da metade do Senado seja hoje composta por mulheres. Agora os principais partidos o apoiam e a Bolívia goza do maior crescimento econômico do Continente.

Lula abraçou a outra alternativa: optou pelo Parlamento no ilusório pressuposto de que seria o atalho mais curto para as reformas que pretendia. Assumiu o Presidencialismo de Coalizão. Líderes dos movimentos sociais foram chamados a ocupar cargos no governo, enfraquecendo, em parte, a força popular.

Para Lula, mesmo mantendo ligação com os movimentos de onde veio, não via neles o sustentáculo de seu poder, mas a coalizão pluriforme de partidos. Se tivesse observado um pouco a história, teria sabido do risco desta política de Coalização que atualiza a política de Conciliação do passado.

A Coalizão se faz à base de interesses, com negociações, troca de favores e concessão de cargos e de verbas. A maioria dos parlamentares não representa o povo mas os interesses dos grupos que lhes financiam as campanhas. Todos, com raras exceções, falam do bem comum, mas é pura hipocrisia. Na prática tratam da defesa dos bens particulares e corporativos. Crer no atalho foi o sonho de Lula que não pode se realizar.

Por isso, em seus oito anos, não conseguiu fazer passar nenhuma reforma, nem a política, nem a econômica, nem a tributária e muito menos a reforma agrária. Não havia base.

A “Carta aos Brasileiros” que na verdade era uma Carta aos Banqueiros, obrigou Lula a alinhar-se aos ditames da macroeconomia mundial. Ela deixava pouco espaço para as políticas sociais que foram aproveitadas tirando da miséria 36 milhões de pessoas. Nessa economia, o mercado dita as normas e tudo tem seu preço. Assim parte da cúpula do PT, metida nessa Coalizão, perdeu o contato orgânico com as bases, sempre terapêutico contra a corrupção. Boa parte do PT traiu sua bandeira principal que era a ética e a transparência.

E o pior, traiu as esperanças de 500 anos do povo. E nós que tanta confiança depositávamos no novo, com as milhares comunidades de base, as pastorais sociais e os grupos emergentes… Elas aprenderam articular fé e política. A mensagem originária de Jesus de um Reino de justiça a partir dos últimos e da fraternidade viável, apontava de que lado deveríamos estar: dos oprimidos. A política seria uma mediação para alcançar tais bens para todos. Por isso, as centenas de CEBs não entraram no PT; fundaram células dele e grupos, como instrumento para a realização deste sonho.

O partido cometeu um equívoco fatal: aceitou, sem mais, a opção de Lula pelo problemático presidencialismo de coalizão. Deixou de se articular com as bases, de formar politicamente seus membros e de suscitar novas lideranças.

E aí veio a corrupção do “mensalão” sobre o qual se aplicou uma justiça duvidosa que a história um dia tirará ainda a limpo. O “petrolão” pelos números altíssimos da corrupção, inegável, condenável e vergonhosa, desmoralizou parte do PT e parte das lideranças, atingindo o coração do partido.

O PT deve ao povo brasileiro uma autocrítica nunca feita integralmente. Para se transformar numa fênix que ressurge das cinzas, deverá voltar às bases e junto com o povo reaprender a lição de uma nova democracia participativa, popular e justa que poderá resgatar a dívida histórica que os milhões de oprimidos ainda esperam desde a colônia e da escravidão.

Apesar de tudo, e quer queiramos ou não, o PT representa, como disse o ex-presidente uruguaio Mujica, quando esteve entre nós, a alma das grandes maiorias empobrecidas e marginalizadas do Brasil. Essa alma luta por sua libertação e o PT redimido continua sendo seu mais imediato instrumento.

Quem cai sempre pode se levantar. Quem erra sempre pode aprender dos erros. Caso queira permanecer e cumprir sua missão histórica, o PT faria bem em seguir este percurso redentor.


Fonte: https://leonardoboff.wordpress.com

sábado, 30 de janeiro de 2016

Antoine de Saint-Exupéry, a vida do espírito e a ética da Terra

''...esquecemos de cultivar a vida do espírito que é nossa dimensão mais radical, onde se albergam as grandes perguntas, se aninham os sonhos mais ousados e se elaboram as utopias mais generosas.''


Se é verdade que os transtornos climáticos são antropogênicos, quer dizer, possuem sua gênese nos comportamentos irresponsáveis dos seres humanos (menos dos pobres e muito mais das grandes corporações industriais), então fica claro que a questão é antes ética do que científica. Vale dizer, a qualidade de nossas relações para com a natureza e para com a Casa Comum não eram e não são adequadas e boas.


Citando o Papa Francisco em sua inspiradora encíclica Laudato Si: sobre o cuidado da Casa Comum” (2015): “ Nunca maltratamos e ferimos a nossa Casa Comum como nos últimos dois séculos… Essas situações provocam os gemidos da irmã Terra, que se unem aos gemidos dos abandonados do mundo, com um lamento que reclama de nós outro rumo”(n.53).

Esse outro rumo implica, urgentemente, uma ética regeneradora da Terra. Esta ética deve ser fundada em alguns princípios universais, compreensíveis e praticáveis por todos. É o cuidado essencial, que é uma relação amorosa para com a natureza; é o respeito por cada ser porque possui um valor em si mesmo; é a responsabilidade compartida por todos pelo futuro comum da Terra e da humanidade; é a solidariedade universal pela qual nos entreajudamos; e, por fim, é a compaixão pela qual fazemos nossas as dores dos outros e da própria natureza.
Esta ética da Terra deve devolver-lhe a vitalidade vulnerada afim de que possa continuar a nos presentear com tudo o que sempre nos presenteou durante todos os tempos de nossa existência sobre este planeta.

Mas não é suficiente uma ética da Terra. Precisamos fazê-la acompanhar por uma espiritualidade. Esta lança suas raízes na razão cordial e sensível. De lá nos vem a paixão pelo cuidado e um compromisso sério de amor, de responsabilidade e de compaixão para com a Casa Comum.

O conhecido e sempre apreciado Antoine de Saint-Exupéry, num texto póstumo, escrito em 1943, Carta ao General “X” afirma com grande ênfase: ”Não há senão um problema, somente um: redescobrir que há uma vida do espírito que é ainda mais alta que a vida da inteligência, a única que pode satisfazer o ser humano”(Macondo Libri 2015, p. 31).

Num outro texto, escrito em 1936, quando era correspondente do “Paris Soir”, durante a guerra da Espanha, leva como título “É preciso da um sentido à vida”. 

Aí retoma o tema da vida do espírito. Para isso, afirma, “precisamos nos entender reciprocamente; o ser humano não se realiza senão junto com outros seres humanos, no amor e na amizade; no entanto, os seres humanos não se unem apenas se aproximando uns dos outros, mas se fundindo na mesma divindade. Temos sede, num mundo feito deserto, sede de encontrar companheiros com os quais condividimos o pão” (Macondo Libri 2015, p.20). E termina a Carta ao General “X”: ”Temos tanta necessidade de um Deus”(op.cit. 36).

Efetivamente, só a vida do espírito satisfaz plenamente o ser humano. Ela representa um belo sinônimo para espiritualidade, não raro identificada ou confundida com religiosidade. A vida do espírito é mais, é um dado originário de nossa dimensão profunda, um dado antropológico como a inteligência e a vontade, algo que pertence à nossa essência.

Sabemos cuidar da vida do corpo, hoje um verdadeiro culto celebrado em tantas academias de ginástica. Os psicanalistas de várias tendências nos ajudam a cuidar da vida da psique, de como equilibrar nossas pulsões, os anjos e demônios que nos habitam para levarmos uma vida com relativo equilíbrio.

Mas na nossa cultura, praticamente, esquecemos de cultivar a vida do espírito que é nossa dimensão mais radical, onde se albergam as grandes perguntas, se aninham os sonhos mais ousados e se elaboram as utopias mais generosas. A vida do espírito se alimenta de bens não tangíveis como é o amor, a amizade, a compaixão, o cuidado e a abertura ao infinito. Sem a vida do espírito divagamos por aí, desenraizados e sem um sentido que nos oriente e que torna a vida apeticida.

Uma ética da Terra não se sustenta sozinha por muito tempo sem esse supplément d’ameque é a vida do espírito. Ela nos convoca para o alto e para ações salvadoras e regeneradoras da Mãe Terra.

Leonardo Boff é ecoteólogo e escreveu Saber cuidar: ética do humano-compaixão pela Terra, Vozes 1999.

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Ampliar densidade de polinizadores aumenta produção agrícola

Estudo comprova que o maior número de polinizadores em pequenas propriedades melhora rendimento de culturas.

Promover a biodiversidade pode ser um caminho sustentável para ampliar a oferta de alimentos no mundo, principalmente a produção vinda de pequenos agricultores. Um estudo publicado neste mês na revista Science comprova que a diferença de produtividade entre pequenas áreas agrícolas com baixa e alta produção poderia ser melhorada 24%, em média, somente com o aumento do número de visitantes florais (polinizadores). Em grandes propriedades, para a melhora ocorrer, deve-se diversificar também as espécies desses visitantes. O estudo contou com a participação de pesquisadores do Núcleo de Apoio à Pesquisa (NAP) em Biodiversidade e Computação (BioComp), sediado na USP.

Os polinizadores são os “responsáveis” por levar o pólen de uma flor para a outra para que ocorra a fecundação da planta. Eles podem ser de variados tipos, desde animais até mesmo o vento. No entanto, a maioria e os mais frequentes são os insetos, principalmente as abelhas.

Os pesquisadores do NAP BioComp organizaram o banco de dados resultante da coleta de informações nas propriedades rurais. Foram analisados 344 campos de 33 diferentes sistemas de produção de culturas dependentes de polinizadores em pequenas e grandes propriedades na Ásia, África e América Latina. Essas culturas englobam algodão, canola, caju, maçã, melão, tomate, café, manga, pepino, nabo, framboesa, girassol, cardamomo, entre outros.

“Algumas espécies de plantas necessitam da presença do polinizador para que o fruto e a semente sejam formados. Se você não tiver o polinizador, a planta não gera o fruto ou o gera, mas com uma eficiência muito menor, então, essas plantas são chamadas de dependentes de polinizador”, explica Antonio Saraiva, professor da Escola Politécnica (Poli) da USP, coordenador do NAP BioCamp e um dos autores do estudo.

Por isso, a quantidade de visitas do polinizador à planta reflete na produtividade. No estudo, os pesquisadores identificaram a relação entre o aumento da produção nas pequenas propriedades agrícolas (aquelas com até 2 hectares) por causa da densidade de visitantes. Para as áreas maiores, apenas a quantidade de visitantes florais não aumentou a produtividade, mas sim a diversificação das espécies visitantes.

“Quando temos propriedades maiores, é comum a presença de polinizadores com longo alcance de voo que, em geral, não são específicos de uma planta. Esses polinizadores podem visitar várias plantas numa área maior. Por isso, para aumentar os visitantes florais em grandes áreas, é preciso diversificar as espécies para provocar o aumento da visitação na mesma planta”, informa o professor.


► SEGURANÇA ALIMENTAR

O estudo alerta que muitos sistemas de produção agrícola têm negligenciado a importância do polinizador. “Há um estímulo para práticas de manejo da produção relacionadas principalmente ao solo, mas praticamente se esquece da importância da polinização. E a pesquisa comprova que, somente com o aumento dos polinizadores, temos um incremento de 24% na produção das pequenas propriedades”, destaca Saraiva.

A produtividade dos pequenos agricultores tem um impacto direto na questão da segurança alimentar. A pesquisa publicada na Science indica que há mais de 2 bilhões de pessoas em países em desenvolvimento dependentes da produção de alimentos vindas das pequenas propriedades.

O professor Saraiva lembra ainda para os cuidados com a preservação dos polinizadores, que em sua maioria são as abelhas. Estudos apontam para a relação entre o desaparecimento delas e o uso indiscriminado de agrotóxicos.

“Como os polinizadores estão sendo ameaçados, é preciso rever essa tendência, sugestões para isso seriam plantios de faixas com plantas com flores para que os polinizadores possam se alimentar em épocas em que a cultura em si não tem flor; uso mais adequado dos pesticidas em períodos quando há menos polinizadores; restaurar áreas naturais nas redondezas das culturas porque elas servem de abrigo e alimento para os polinizadores quando as culturas não estão com flores.”


► ESTUDO

O artigo Mutually beneficial pollinator diversity and crop yield outcomes in small and large farms publicado na Science é resultado de um trabalho desenvolvido por pesquisadores de 18 países, com base em dados de culturas de 12 nações (Argentina, Brasil, Colômbia, África do Sul, Gana, Quênia, China, Índia, Indonésia, Nepal, Paquistão e Noruega).

O ponto de partida foi um projeto de pesquisa desenvolvido entre 2010 e 2014. Chamado de “Conservação e Manejo de Polinizadores para Agricultura Sustentável através de uma Abordagem Ecossistêmica”, ele contou com financiamento do Fundo Mundial para o Meio Ambiente (Global Environment Facility – GEF) e foi executado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). A proposta foi estudar a polinização em culturas de cada um dos 12 países.

No Brasil, o projeto teve como ponto focal o Ministério do Meio Ambiente e teve a participação de diversas instituições de pesquisa. No site Polinizadores do Brasil, há mais informações sobre a participação brasileira.

Hérika Dias / Agência USP de Notícias


Fonte:http://www5.usp.br/103792

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

COMO SEMPRE, A APARÊNCIA DOS PROBLEMAS.

''A queda da taxa de juros ainda é um sonho distante enquanto a inflação não chegar ao centro da meta.''

Prof. Elias Jabbour
Estão apostando em uma rodada de aumento da taxa básica SELIC. A funcionalidade deste instrumento no combate à inflação é tema de discussão. O que é bom, evidente. A questão, como sempre aqui no Brasil, é que insistimos em nos contentar com a aparência do fenômeno – ainda mais se essa aparência for motivo de análise por parte de algum “grande intelectual”. Não se percebe que nos atuais marcos da estratégia consagrada na década de 1990 — os dois preços básicos da economia devem combinar ou se revezar ao objetivo mater — a estabilidade monetária, não ao desenvolvimento.

A taxa de câmbio no atual patamar é ótima à recuperação de espaços da nossa indústria, reverte déficits em nossas contas correntes. Por outro lado, num país onde a indústria foi solapada, a inflação é inevitável. Nos acostumamos a importar de tudo, inclusive o preço do crescimento expandido pelo consumo foi mais desindustrialização com a taxa de câmbio chegando no final de 2010 tendo um dólar valendo em torno de R$ 1,50. Ou seja, em nenhum momento a estratégia estabilizatória foi abandonada. E sim, fortalecida e transformada em política oficial de Estado.

Com exceção do ano de 2012 onde se exacerbou outro vício brasileiro: tomar a solução dos problemas partindo de pressupostos teóricos errados, fruto da fusão entre a visão de mundo das duas principais correntes do pensamento econômico brasileiro – monetaristas e estruturalistas: (“a inflação é de demanda”; “a oferta de bens agrícolas é inelástica”; “O problema é a taxa de juros”; “o problema é o câmbio”; “o problema é a desigualdade”; “o Brasil é um atraso”; “tudo é estagnação”). Sem falar da máxima socialdemocrata que se repete como uma quintessência: “crescimento e desenvolvimento não são a mesma coisa”. No fundo quase todos creem na “estabilidade monetária” como algo essencial, uma conquista!

O que fica desta combinação entre altas taxas de juros e câmbio desvalorizado? Fenômeno quase novo. Creio que significa a junção entre maior competitividade industrial, porém com um sistema nacional de financiamento da produção no rumo de um colapso iminente. Nossas empresas continuarão a se financiar em moeda estrangeira, jogando peso considerável contra a nossa soberania. A queda da taxa de juros ainda é um sonho distante enquanto a inflação não chegar ao centro da meta. E deverá chegar tamanha a violência sobre a demanda em curso.

Ao menos um espaço fiscal no horizonte capaz de reordenar os investimentos sociais ao mesmo nível de 2014. As frestas políticas existem e observo duas, já expostas em artigo anterior: o saco cheio dos nossos amigos da ABIMAQ e as possibilidades abertas pelo Novo Banco de Desenvolvimento. Bons princípios ao acúmulo de forças. Não suficiente, se as premissas que norteiam nosso país não mudarem. Refiro-me ao debate de ideias.

Grande política não se faz com grandes ideias. Grandes ideias não surgem sem criatividade. Ambas as coisas estão completamente ausentes do debate econômico brasileiro. Debate este que nunca esteve num nível tão baixo e assustador. Parece que estamos sempre em busca de algum “grande intelectual” falar algo com sentido para daí desafogarmos nossa ânsia por alguma verdade que nos conforte. A questão da taxa de câmbio como a atual deus ex machina do debate é o maior exemplo disso, independente de se deixar de lado a taxa de juros e – independente, também – da análise compartilhada, aquela não toma o desenvolvimento como expressão da combinação virtuosa entre os aludidos dois preços básicos da economia. Lembro-me que uns anos atrás falava-se da taxa de juros e esquecia-se o câmbio. E assim caminhamos.

No alto da insignificância de um professor universitário continuarei a afirmar que a estabilidade monetária não é pressuposto para nada, que o problema não é macroeconômico e sim de institucionalidades, que mesmo com juros em patamares internacionais o crescimento dificilmente virá (fruto dessas institucionalidades criadas na década de 1990), que nosso país está condenado a ajustes fiscais e reformas da previdência cíclicas. Um dia, quando tudo for tentado, quem sabe aparecerá algum grande intelectual progressista para colocar o debate em seus devidos termos sem precisar pagar o “dinheiro de caronte”, assinando recibo das “conquistas” pós-Plano Real. Só não vale falar que os preços dos alimentos — e sua alta – é fruto da relação entre oferta e demanda e da seca que assola grandes regiões produtoras (o ano de 2015 fechou com safra recorde de grãos: 209,5 milhões de toneladas…). E o preço dos produtos da cesta básica não para de subir.

Elias Jabbour, Professor, Doutor de Economia na UERJ. Um dos grandes estudiosos sobre Economia e Mercado Chinês.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

PESQUISADORA DENUNCIA FARSA NA CRISE DA PREVIDÊNCIA SOCIAL





'' Se os movimentos sociais não estiverem bem organizados para pressionarem na defesa de seus interesses pode haver mais perdas de proteção social, como ocorreu em reformas anteriores.''


Em tese de doutorado, pesquisadora denuncia a farsa da crise da Previdência Social no Brasil forjada pelo governo com apoio da imprensa.

ENTREVISTA - DENISE GENTIL

A crise forjada da Previdência

Por Coryntho Baldez

Com argumentos insofismáveis, Denise Gentil destroça os mitos oficiais que encobrem a realidade da Previdência Social no Brasil. Em primeiro lugar, uma gigantesca farsa contábil transforma em déficit o superávit do sistema previdenciário, que atingiu a cifra de R$ 1,2 bilhões em 2006, segundo a economista.

O superávit da Seguridade Social - que abrange a Saúde, a Assistência Social e a Previdência - foi significativamente maior: R$ 72,2 bilhões. No entanto, boa parte desse excedente vem sendo desviada para cobrir outras despesas, especialmente de ordem financeira - condena a professora e pesquisadora do Instituto de Economia da UFRJ, pelo qual concluiu sua tese de doutorado "A falsa crise da Seguridade Social no Brasil: uma análise financeira do período 1990 - 2005" (leia a tese na íntegra).

Nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, ela ainda explica por que considera insuficiente o novo cálculo para o sistema proposto pelo governo e mostra que, subjacente ao debate sobre a Previdência, se desenrola um combate entre concepções distintas de desenvolvimento econômico-social.

Jornal da UFRJ: A idéia de crise do sistema previdenciário faz parte do pensamento econômico hegemônico desde as últimas décadas do século passado. Como essa concepção se difundiu e quais as suas origens?

Denise Gentil: A idéia de falência dos sistemas previdenciários públicos e os ataques às instituições do welfare state (Estado de Bem- Estar Social) tornaram-se dominantes em meados dos anos 1970 e foram reforçadas com a crise econômica dos anos 1980. O pensamento liberal-conservador ganhou terreno no meio político e no meio acadêmico. A questão central para as sociedades ocidentais deixou de ser o desenvolvimento econômico e a distribuição da renda, proporcionados pela intervenção do Estado, para se converter no combate à inflação e na defesa da ampla soberania dos mercados e dos interesses individuais sobre os interesses coletivos. Um sistema de seguridade social que fosse universal, solidário e baseado em princípios redistributivistas conflitava com essa nova visão de mundo. O principal argumento para modificar a arquitetura dos sistemas estatais de proteção social, construídos num período de crescimento do pós-guerra, foi o dos custos crescentes dos sistemas previdenciários, os quais decorreriam, principalmente, de uma dramática trajetória demográfica de envelhecimento da população. A partir de então, um problema que é puramente de origem sócio-econômica foi reduzido a um mero problema demográfico, diante do qual não há solução possível a não ser o corte de direitos, redução do valor dos benefícios e elevação de impostos. Essas idéias foram amplamente difundidas para a periferia do capitalismo e reformas privatizantes foram implantadas em vários países da América Latina.

Jornal da UFRJ: No Brasil, a concepção de crise financeira da Previdência vem sendo propagada insistentemente há mais de 15 anos. Os dados que você levantou em suas pesquisas contradizem as estatísticas do governo. Primeiramente, explique o artifício contábil que distorce os cálculos oficiais.


Denise Gentil: Tenho defendido a idéia de que o cálculo do déficit previdenciário não está correto, porque não se baseia nos preceitos da Constituição Federal de 1988, que estabelece o arcabouço jurídico do sistema de Seguridade Social. O cálculo do resultado previdenciário leva em consideração apenas a receita de contribuição ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) que incide sobre a folha de pagamento, diminuindo dessa receita o valor dos benefícios pagos aos trabalhadores. O resultado dá em déficit. Essa, no entanto, é uma equação simplificadora da questão. Há outras fontes de receita da Previdência que não são computadas nesse cálculo, como a Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), a CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido), a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira) e a receita de concursos de prognósticos. Isso está expressamente garantido no artigo 195 da Constituição e acintosamente não é levado em consideração.

Jornal da UFRJ: A que números você chegou em sua pesquisa?

Denise Gentil: Fiz um levantamento da situação financeira do período 1990-2006. De acordo com o fluxo de caixa do INSS, há superávit operacional ao longo de vários anos. Em 2006, para citar o ano mais recente, esse superávit foi de R$ 1,2 bilhões.

O superávit da Seguridade Social, que abrange o conjunto da Saúde, da Assistência Social e da Previdência, é muito maior. Em 2006, o excedente de recursos do orçamento da Seguridade alcançou a cifra de R$ 72,2 bilhões.

Uma parte desses recursos, cerca de R$ 38 bilhões, foi desvinculada da Seguridade para além do limite de 20% permitido pela DRU (Desvinculação das Receitas da União).

Há um grande excedente de recursos no orçamento da Seguridade Social que é desviado para outros gastos. Esse tema é polêmico e tem sido muito debatido ultimamente. Há uma vertente, a mais veiculada na mídia, de interpretação desses dados que ignora a existência de um orçamento da Seguridade Social e trata o orçamento público como uma equação que envolve apenas receita, despesa e superávit primário. Não haveria, assim, a menor diferença se os recursos do superávit vêm do orçamento da Seguridade Social ou de outra fonte qualquer do orçamento.

Interessa apenas o resultado fiscal, isto é, o quanto foi economizado para pagar despesas financeiras com juros e amortização da dívida pública.

Por isso o debate torna-se acirrado. De um lado, estão os que advogam a redução dos gastos financeiros, via redução mais acelerada da taxa de juros, para liberar recursos para a realização do investimento público necessário ao crescimento. Do outro, estão os defensores do corte lento e milimétrico da taxa de juros e de reformas para reduzir gastos com benefícios previdenciários e assistenciais. Na verdade, o que está em debate são as diferentes visões de sociedade, de desenvolvimento econômico e de valores sociais.


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Jornal da UFRJ: Há uma confusão entre as noções de Previdência e de Seguridade Social que dificulta a compreensão dessa questão. Isso é proposital?

Denise Gentil: Há uma grande dose de desconhecimento no debate, mas há também os que propositadamente buscam a interpretação mais conveniente. A Previdência é parte integrante do sistema mais amplo de Seguridade Social.

É parte fundamental do sistema de proteção social erguido pela Constituição de 1988, um dos maiores avanços na conquista da cidadania, ao dar à população acesso a serviços públicos essenciais. Esse conjunto de políticas sociais se transformou no mais importante esforço de construção de uma sociedade menos desigual, associado à política de elevação do salário mínimo. A visão dominante do debate dos dias de hoje, entretanto, freqüentemente isola a Previdência do conjunto das políticas sociais, reduzindo-a a um problema fiscal localizado cujo suposto déficit desestabiliza o orçamento geral. Conforme argumentei antes, esse déficit não existe, contabilmente é uma farsa ou, no mínimo, um erro de interpretação dos dispositivos constitucionais.

Entretanto, ainda que tal déficit existisse, a sociedade, através do Estado, decidiu amparar as pessoas na velhice, no desemprego, na doença, na invalidez por acidente de trabalho, na maternidade, enfim, cabe ao Estado proteger aqueles que estão inviabilizados, definitiva ou temporariamente, para o trabalho e que perdem a possibilidade de obter renda. São direitos conferidos aos cidadãos de uma sociedade mais evoluída, que entendeu que o mercado excluirá a todos nessas circunstâncias.

Jornal da UFRJ: E são recursos que retornampara a economia?

Denise Gentil: É da mais alta relevância entender que a Previdência é muito mais que uma transferência de renda a necessitados. Ela é um gasto autônomo, quer dizer, é uma transferência que se converte integralmente em consumo de alimentos, de serviços, de produtos essenciais e que, portanto, retorna das mãos dos beneficiários para o mercado, dinamizando a produção, estimulando o emprego e multiplicando a renda. Os benefícios previdenciários têm um papel importantíssimo para alavancar a economia. O baixo crescimento econômico de menos de 3% do PIB (Produto Interno Bruto), do ano de 2006, seria ainda menor se não fossem as exportações e os gastos do governo, principalmente com Previdência, que isoladamente representa quase 8% do PIB.

Jornal da UFRJ: De acordo com a Constituição, quais são exatamente as fontes que devem financiar a Seguridade Social?


Denise Gentil: A seguridade é financiada por contribuições ao INSS de trabalhadores empregados, autônomos e dos empregadores; pela Cofins, que incide sobre o faturamento das empresas; pela CSLL, pela CPMF (que ficouconhecida como o imposto sobre o cheque) e pela receita de loterias. O sistema de seguridade possui uma diversificada fonte de financiamento. É exatamente por isso que se tornou um sistema financeiramente sustentável, inclusive nos momentos de baixo crescimento, porque além da massa salarial, o lucro e o faturamento são também fontes de arrecadação de receitas. Com isso, o sistema se tornou menos vulnerável ao ciclo econômico. Por outro lado, a diversificação de receitas, com a inclusão da taxação do lucro e do faturamento, permitiu maior progressividade na tributação, transferindo renda de pessoas com mais alto poder aquisitivo para as de menor.

Jornal da UFRJ: Além dessas contribuições, o governo pode lançar mão do orçamento da União para cobrir necessidades da Seguridade Social?

Denise Gentil: É exatamente isso que diz a Constituição. As contribuições sociais não são a única fonte de custeio da Seguridade. Se for necessário, os recursos também virão de dotações orçamentárias da União. Ironicamente tem ocorrido o inverso. O orçamento da Seguridade é que tem custeado o orçamento fiscal.

Jornal da UFRJ: O governo não executa o orçamento à parte para a Seguridade Social, como prevê a Constituição, incorporando-a ao orçamento geral da União. Essa é uma forma de desviar recursos da área social para pagar outras despesas?

Denise Gentil: A Constituição determina que sejam elaborados três orçamentos: o orçamento fiscal, o orçamento da Seguridade Social e o orçamento de investimentos das estatais. O que ocorre é que, na prática da execução orçamentária, o governo apresenta não três, mas um único orçamento chamandoo de "Orçamento Fiscal e da Seguridade Social", no qual consolida todas as receitas e despesas, unificando o resultado. Com isso, fica difícil perceber a transferência de receitas do orçamento da Seguridade Social para financiar gastos do orçamento fiscal. Esse é o mecanismo de geração de superávit primário no orçamento geral da União. E, por fim, para tornar o quadro ainda mais confuso, isola-se o resultado previdenciário do resto do orçamento geral para, com esse artifício contábil, mostrar que é necessário transferir cada vez mais recursos para cobrir o "rombo" da Previdência. Como a sociedade pode entender o que realmente se passa?

Jornal da UFRJ: Agora, o governo pretende mudar a metodologia imprópria de cálculo que vinha usando. Essa mudança atenderá completamente ao que prevê a Constituição, incluindo um orçamento à parte para a Seguridade Social?


Denise Gentil: Não atenderá o que diz a Constituição, porque continuará a haver um isolamento da Previdência do resto da Seguridade Social. O governo não pretende fazer um orçamento da Seguridade. Está propondo um novo cálculo para o resultado fiscal da Previdência. Mas, aceitar que é preciso mudar o cálculo da Previdência já é um grande avanço. Incluir a CPMF entre as receitas da seguridade é um reconhecimento importante, embora muito modesto. Retirar o efeito dos incentivos fiscais sobre as receitas também ajuda a deixar mais transparente o que se faz com a política previdenciária. O que me parece inadequado, entretanto, é retirar a aposentadoria rural da despesa com previdência porque pode, futuramente, resultar em perdas para o trabalhador do campo, se passar a ser tratada como assistência social, talvez como uma espécie de bolsa. Esse é um campo onde os benefícios têm menor valor e os direitos sociais ainda não estão suficientemente consolidados.

Jornal da UFRJ: Como você analisa essa mudança de postura do Governo Federal em relação ao cálculo do déficit? Por que isso aconteceu?

Denise Gentil: Acho que ainda não há uma posição consolidada do governo sobre esse assunto. Há interpretações diferentes sobre o tema do déficit da Previdência e da necessidade de reformas. Em alguns segmentos do governo fala-se apenas em choque de gestão, mas em outras áreas, a reforma da previdência é tratada como inevitável. Depois que o Fórum da Previdência for instalado, vão começar os debates, as disputas, a atuação dos lobbies e é impossível prever qual o grau de controle que o governo vai conseguir sobre seus rumos. Se os movimentos sociais não estiverem bem organizados para pressionarem na defesa de seus interesses pode haver mais perdas de proteção social, como ocorreu em reformas anteriores.

Jornal da UFRJ: A previdência pública no Brasil, com seu grau de cobertura e garantia de renda mínima para a população, tem papel importante como instrumento de redução dos desequilíbrios sociais?

Denise Gentil: Prefiro não superestimar os efeitos da Previdência sobre os desequilíbrios sociais. De certa forma, tem-se que admitir que vários estudos mostram o papel dos gastos previdenciários e assistenciais como mecanismos de redução da miséria e de atenuação das desigualdades sociais nos últimos quatro anos. Os avanços em termos de grau de cobertura e de garantia de renda mínimapara a população são significativos. Pela PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), cerca de 36,4 milhões de pessoas ou 43% da população ocupada são contribuintes do sistema previdenciário. Esse contingente cresceu de forma considerável nos últimos anos, embora muito ainda necessita ser feito para ampliar a cobertura e evita que, no futuro, a pobreza na velhice se torne um problema dos mais graves. O fato, porém, de a população ter assegurado o piso básico de um salário mínimo para os benefícios previdenciários é de fundamental importância porque, muito embora o valor do salário mínimo esteja ainda distante de proporcionar condições dignas de sobrevivência, a política social de correção do salário mínimo acima da inflação tem permitido redução da pobreza e atenuado a desigualdade da renda.

Cerca de dois milhões de idosos e deficientes físicos recebem benefícios assistenciais e 524 mil são beneficiários do programa de renda mensal vitalícia. Essas pessoas têm direito a receber um salário mínimo por mês de forma permanente.

Evidentemente que tudo isso ainda é muito pouco para superar nossa incapacidade histórica de combater as desigualdades sociais. Políticas muito mais profundas e abrangentes teriam que ser colocadas em prática, já que a pobreza deriva de uma estrutura produtiva heterogênea e socialmente fragmentada que precisa ser transformada para que a distância entre ricos e pobres efetivamente diminua. Além disso, o crescimento econômico é condição fundamental para a redução da pobreza e, nesse quesito, temos andado muito mal. Mas a realidade é que a redução das desigualdades sociais recebeu um pouco mais de prioridade nos últimos anos do que em governos anteriores e alguma evolução pode ser captada através de certos indicadores.

Jornal da UFRJ: Apesar do superávit que o governo esconde, o sistema previdenciário vem perdendo capacidade de arrecadação. Isso se deve a fatores demográficos, como dizem alguns, ou tem relação mais direta com a política econômica dos últimos anos?

Denise Gentil: A questão fundamental para dar sustentabilidade para um sistema previdenciário é o crescimento econômico, porque as variáveis mais importantes de sua equação financeira são emprego formal e salários. Para que não haja risco do sistema previdenciário ter um colapso de financiamento é preciso que o país cresça, aumente o nível de ocupação formal e eleve a renda média no mercado de trabalho para que haja mobilidade social. Portanto, a política econômica é o principal elemento que tem que entrar no debate sobre "crise" da Previdência. Não temos um problema demográfico a enfrentar, mas de política econômica inadequada para promover o crescimento ou a aceleração do crescimento.

Publicado no Jornal da UFRJ

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