domingo, 27 de setembro de 2015

Qual destino para o Brasil: recolonização ou projeto próprio?

''O propósito dos países centrais que dispõem de várias formas de poder, especialmente, a militar de recolonizar toda a América Latina.''

Há uma indagação que se faz no Brasil mas também no exterior que se expressa por esta pergunta: qual o destino da sétima economia mundial e qual o futuro de sua incomensurável riqueza de bens naturais?

Analistas dos cenários mundiais do talante de Noam Chomsky ou de Jacques Attali nos advertem: a potência imperial norte-americana segue esse motto, elaborado nos salões dos estrategistas do Pentâgono:”um só mundo e um só império”. Não se toleram países, em qualquer parte do planeta, que possam pôr em xeque seus interesses globais e sua hegemonia universal. Curiosamente, o Papa Francisco em sua encíclicla “sobre o cuidado da Casa Comum”, como que revidando o Pentágono propõe:”um só mundo e um só projeto coletivo”.

No Brasil esse debate se dá principalmente no campo da macroeconomia: o Brasil se alinhará às estratégias político-sociais-economico-ideológicas impostas pelo Império e com isso terá vantagens significativas em todos os campos, mas aceitando ser sócio menor e agregado (opção dos neoliberais e dos conservadores) ou o Brasil procurará um caminho próprio, consciente de suas vantagens ecológicas, do peso de seu mercado interno com uma população de mais de duzentos milhões de pessoas e da criatividade de seu povo. Aprende a resistir às pressões que vêm de cima, a lidar inteligentemente com as tensões, a praticar uma política do ganha-ganha (o que supõe fazer conceções) e assim a manter o caminho aberto para um projeto nacional próprio que contará para o devenir da nossa e da futura civilização (opção do PT, das esquerdas e dos movimentos sociais).

Isso deve ficar claro: há um propósito dos países centrais que dispõem de várias formas de poder, especialmente, a militar (podem matar a todos) de recolonizar toda a América Latina para ser um reserva de bens e serviços naturais (água potável, milhões de hectares férteis, grãos de todo tipo, imensa biodiversidade, grandes florestas úmidas, reservas minerais incomensuráveis etc). Ela deve servir principalmente os países ricos, já que em seus territórios quase se esgotaram tais “bondades da natureza” como dizem os povos originários. E vão precisar delas para manterem seu nível de vida.

Estimamos que dentro de um futuro não muito distante, a economia mundial será de base ecológica. Finalmente não nos alimentamos de computadores e de máquinas, mas de água, de grãos e de tudo o que a vida humana e a comunidade de vida demandam. Daí a importância de manter a América Latina, especialmente, o Brasil no estágio o mais natural possível, não favorecendo a industrialização nem algum valor agregado a suas commodities.

Seu lugar deve ser aquele que foi pensado desde o início da colonização: o de ser uma grande empresa colonial que sustenta o projeto dos povos opulentos do Norte para continurem sua dominação que vem desde o século XVI quando se iniciaram as grandes navegações de conquista de territórios pelo mundo afora. Analiticamente, esse processo foi denunciado por Caio Prado Jr, por Darcy Ribeiro e, ultimamente, com grande força teórica, por Luiz Gonzaga de Souza Lima com seu livro ainda não devidamente acolhido A refundação do Brasil: rumo à sociedade biocentrada (RiMa, São Bernardo 2011).

Em razão desta estratégia global, as políticas ambientais dominantes reduzem o sentido da biodiversidade e da natureza a um valor econômico. A tão propalada “economia verdade” serve a este propósito econômico e menos à preservação e ao resgate de áreas devastadas. Mesmo quando isso ocorre, se destina à macroeconomia de acumulação e não à busca de um outro tipo de relação para com a natureza.

O que cabe constatar é o fato de que o Brasil não está só. As experiências recentes dos movimentos populares socioambientais se recusam a assumir simplesmente a dominação da razão econômica, instrumental e utilitarista que tudo uniformiza. Por todas as partes estão irrompendo outras modalidades de habitar a Casa Comum a partir de identidades culturais diferentes. Os conhecimentos tradicionais, oprimidos e marginalizados pelo pensamento único técnico-científico, estão ganhando força na medida em que mostram que podemos nos relacionar com a natureza e cuidar da Mãe Terra de uma forma mais benevolente e cuidadosa. Exemplo disso é o “bien vivier y convivir” dos andinos, paradigma de um modo de produção de vida em harmonia com o Todo, com os seres humanos entre si e com a natureza circundante.

Aqui funciona a racionalidade cordial e sensível que enriquece e, ao mesmo tempo, impõe limites à voracidade da fria razão instrumenal-analítica que, deixada em seu livre curso, pode pôr em risco nosso projeto civilizatório. Trata-se de uma nova compreensão do mundo e da missão do ser humano dentro dele, como seu guardador e cuidador. Oxalá este seja o caminho a ser trilhado pela humanidade e pelo Brasil.

Fonte: https://leonardoboff.wordpress.com/

sábado, 26 de setembro de 2015

Frei Betto encontra Fidel Castro

Para azar dos meus inimigos, continuo vivo’, diz Fidel a Frei Betto

Em visita de uma hora e meia, escritor brasileiro constata que, embora mais magro, ex-presidente cubano, de 88 anos e desde janeiro de 2014 sem aparecer em público, está muito lúcido, desmentindo os rumores sobre sua morte. Fidel Castro se mostrou otimista.
O escritor Frei Betto esteve com Fidel e, em entrevista a SANDRA COHEN, disse que o ex-líder cubano está bem de saúde, lúcido e elogiou Obama e o Papa. O escritor Frei Betto desembarcou semana passada em Havana, empolgado com as primeiras negociações entre representantes dos governos de Cuba e EUA e também apreensivo com rumores de que a saúde do ex-presidente Fidel Castro, de 88 anos e que não é visto em público desde janeiro de 2014, havia se deteriorado.
Anteontem à tarde, no entanto, após uma visita que durou uma hora e meia, saiu aliviado da casa de Fidel: encontrou-o bem mais magro, em relação à ultima vez em que se viram em fevereiro passado, mas “absolutamente lúcido”, como relatou ao GLOBO. Acompanhados o tempo inteiro por Dalia, mulher do ex-presidente, os dois conversaram sobre a reaproximação com os EUA, boatos de sua morte e até física quântica.
Em Havana, para o Congresso Mundial de Pedagogia e palestras, Frei Betto, que é colunista do GLOBO, ouviu elogios de Fidel ao presidente americano, Barack Obama, e ao Papa Francisco. A visita ganhou destaque ontem na imprensa cubana. “O encontro aconteceu em um clima afetuoso, característico das amplas e fraternais relações existentes entre Fidel e Betto”, noticiou o “Granma”, o jornal oficial, em sua edição on-line. Fidel só não quis tirar foto: “As chances de não sairmos bem são bem maiores do que as de sairmos bem”, alegou ao amigo.

Como se deu o encontro com Fidel Castro? 

Frei Betto: Toda vez que venho a Cuba, Fidel me convida à sua casa, estive com ele em fevereiro passado. Ontem (27/01/2015) ele mandou me buscar no hotel e fiquei lá durante uma hora e meia. Há muito tempo ele não aparece em público. E no dia 3, morreu o Fidel Castro Odinga, filho de Raila Odinga ex-premier do Quênia, gerando também rumores de que ele havia morrido. Comentei com ele sobre essa coincidência. Fidel riu e disse que já morreu várias vezes, e acrescentou: “Para azar dos meus inimigos, continuo vivo.”
Ele está muito bem e bem mais magro. A cabeça está perfeita. Fidel é muito detalhista, anota tudo. Quis saber onde estou hospedado, o que eu fiz, com quem falei, e sempre anotando. Ele é o homem do detalhe. Me perguntou sobre o Papa Francisco, com quem estive em abril do ano passado, e quis um relato detalhado do encontro. Disse que tinha lido meu livro “A obra do artista, uma visão holística do Universo” (José Olympio), que foi traduzido em Cuba. E mostrou-se entusiasmado. Fidel gosta muito de cosmologia e física quântica, e o livro aborda isso. Conversou sobre as hipóteses de universos paralelos. Estava muito empolgado com o assunto e me pediu mais bibliografia sobre essa linha. Eu me comprometi a buscar mais livros sobre a evolução do Universo, e de física quântica para ele.
Comentei sobre a carta que ele mandou para a Federação dos Estudantes Universitários, em que aborda o reatamento das relações com os Estados Unidos. Eu disse que o diálogo é importante, é o encontro do caminhão consumista com o Lada (marca de veículos russos) da austeridade. Por enquanto, vai ser muito difícil a sintonia, porque um fala em FM e outro em AM. Ele concordou.
O que mais ele disse sobre o movimento de aproximação entre Cuba e EUA?

Frei Betto: Ele acha fundamental, mas disse que não pode perder de vista que os EUA ainda continuam com o objetivo de colonizar Cuba. Por outro lado, avaliou que primeiro é preciso acabar com o bloqueio econômico e tirar o país da lista dos países terroristas, que os EUA demonstrem medidas concretas de boa vontade. Ele está muito feliz com o prestígio que Obama está tendo nessa segunda gestão, e com o fato de o Congresso americano estar com baixa popularidade.
Ele se mostrou entusiasmado com Obama?

Frei Betto: Exatamente. Ele é um entusiasta do Obama e acha muito positivo o que o presidente americano vem fazendo. Mas, ao mesmo tempo, diz que o processo é muito longo. Os EUA tomaram uma série de medidas contra Cuba, que precisam ser canceladas.
Ele mencionou alguma dificuldade nessas primeiras negociações ocorridas semana passada em Havana?
Frei Betto: Não, mas se disse muito otimista. E ressaltou: “Mesmo sendo inimigos, nós temos que dialogar”. Mas sempre observando que é um longo caminho.
Vocês conversaram sobre as mudanças internas em Cuba?

Frei Betto: Não. Abordamos muito política a internacional. Falamos sobre o atentado na França e ele disse que gostou muito da reação do Papa Francisco. Concordou com Francisco e disse: “A liberdade de expressão tem limites. Você pode se expressar, mas não tem o direito de humilhar ou ofender”. Fidel elogiou a atitude do Papa, quando disse que, se xingassem sua mãe, devolveria com um murro.
E quais foram suas outras impressões sobre o estado de saúde de Fidel?

Frei Betto: Ele estava tão bem que eu lhe propus tirar uma foto. Ele não quis, mas brincou: “As chances de não sairmos bem são bem maiores do que as de sairmos bem”. Eu acredito que ele não quis porque não havia fotógrafo oficial e a foto teria que ser improvisada por alguém. Mas me autorizou a divulgar o teor da nossa conversa. Foi um alívio para mim tê-lo encontrado tão bem. Muitos amigos daqui diziam que há muito tempo não tinham notícias dele, e especulavam que poderia ter piorado, estar doente ou no hospital. Quando os prisioneiros cubanos regressaram ao país, esperava-se que aparecessem em fotos com Fidel, e isso não aconteceu. Disseram-me que eles se encontraram com Fidel, mas em privado. 
Minha interpretação para isso é de que Cuba está tendo uma atitude muito respeitosa diante do reconhecimento de Obama de que o bloqueio não funcionou. Eles não querem tripudiar em cima disso. Estão tratando esse assunto com muito respeito. Interessa para Cuba o fim do bloqueio, interessa o reatamento com os EUA. A previsão é de que virão três milhões de americanos por ano para o país. E a preocupação é que não haja infraestrutura para absorver tanta gente.
Fidel estava andando?

Frei Betto: Desde que cheguei, ele permaneceu o tempo inteiro sentado à mesa de trabalho, vestido com traje esportivo, e sempre fazendo anotações. Está bem magro, mas absolutamente lúcido. Durante a conversa, fomos acompanhados pela Dalia, sua mulher.
Como o senhor acha que os cubanos estão encarando o degelo nas relações com os EUA?

Frei Betto: Os cubanos, em geral, estão otimistas e ao mesmo tempo apreensivos. Sabem que será um grande choque cultural. Às vezes eu pergunto se estão preparados para a tsunami e recebo de volto uma pergunta: será que estamos preparados? A questão agora é saber como os valores da Revolução serão preservados.
Quais as mudanças que o senhor notou em Cuba em relação à sua última viagem, no ano passado?

Frei Betto: Noto que Cuba vive um momento de euforia, o prestígio de Raul é impressionante. Ouvi várias vezes frases do tipo: “A nossa sorte é que os dois estão vivos, pois sabem como conduzir esse momento”. O processo de abertura econômica é inicial, está começando. Mas sinto otimismo de que isso vai melhorar as condições de vida do país.

"A FUNÇÃO DA ESCOLA NÃO É INSTRUIR. É DESCOBRIR"

Aluno e parceiro de Paulo Freire, o professor Moacir Gadotti defende: o educador precisa se reinventar constantemente.


Aluno e parceiro do mestre em pedagogia Paulo Freire, o professor Moacir Gadotti defende a ideia de que o educador precisa se reinventar constantemente. Referência em educação, Gadotti faz uma análise atual da escola no país e diz que não há uma idade certa para se aprender. Na próxima quarta-feira, dia 23, ele participa como conferencista do 13º Congresso Internacional de Tecnologia na Educação, que acontece até sexta-feira, no Centro de Convenções de Pernambuco. Na conferência, ele falará sobre Educar para um outro mundo possível. O Diario conversou com Gadotti, que adiantou detalhes da palestra e também comentou sobre analfabetismo e a formação de educadores. Fez ainda uma reflexão sobre o papel do professor para fazer com que os alunos se sintam cada vez mais envolvidos no processo de aprendizagem. “Temos que nos reinventar diante de múltiplas metamorfoses provocadas pelo advento das novas tecnologias da informação e do mundo digital”, resume o educador, que lecionou da pré-escola a pós graduação em 46 anos de magistério.

O senhor diz que a escola precisa ser reencantada, encontrar motivos para que o aluno vá para os bancos escolares com satisfação, alegria. Como fazer isso, em lugares onde a realidade é bem complicada com problemas estruturais graves, como por exemplo, a falta de material escolar?

O grande educador pernambucano Paulo Freire nos ensinou que aprender é gostoso, mas exige esforço. Por isso, o papel da escola é despertar o desejo de aprender. O professor precisa saber muitas coisas para ensinar. Mas, o mais importante não é o que é preciso saber para ensinar, mas, como devemos ser para ensinar. O aluno quer saber, mas nem sempre quer aprender o que lhes é ensinado. O aluno precisa ser autor, ser rebelde, criador. A função da escola não é instruir. É descobrir. A escola do futuro será ousada, corajosa, formando para a autonomia, para o sonho e para a liberdade. A escola precisa, para ser eficaz, perguntar-se mais, despertar novas perguntas e não oferecer respostas para perguntas que ninguém fez. Se não temos perguntas que nos desafiem, não acharemos o caminho, não aprenderemos a superar as dificuldades da realidade desafiadora do presente.

Educar é também aproximar o ser humano do que a humanidade produziu. Se isso era importante no passado, hoje é ainda mais decisivo numa sociedade baseada no conhecimento e na tecnologia. Então como o professor deve agir?

Todos temos o direito de nos apropriar do que a humanidade já conquistou. As novas tecnologias estão nestas conquistas. Hoje é difícil imaginar que já vivemos sem Internet e sem celular. Se nos tirarem isso, hoje, certamente nosso mundo entraria em colapso. Com a rapidez com que ocorrem as mudanças, é difícil imaginar o que vem por aí. Devemos estar abertos a profundas mudanças. Nesse contexto, o papel do professor está mudando de lecionador para organizador da aprendizagem. Torna-se fundamental aprender a pensar autonomamente, saber comunicar-se, saber pesquisar, aprender a trabalhar colaborativamente, saber organizar o próprio trabalho, ter disciplina, ser sujeito da construção do conhecimento, estar aberto a novas aprendizagens, saber articular o conhecimento científico com o saber sensível, o saber técnico e o saber popular.

O ofício de professor corre risco de extinção?

Não. Muito pelo contrário. Mas, sim, um certo professor desaparecerá: o professor lecionador, como disse antes. Porque o professor, hoje, deve ser um problematizador do futuro e não um facilitador do presente, um repassador de conteúdos. Aprender não é ter acesso a computadores, a uma informação. Aprender é contextualizar a informação, atribuir-lhe sentido, construir conhecimento. O professor não é um aplicador de textos, um repassador de informações, um “facilitador”. É muito mais um “problematizador”. Facilitador é o computador. O que distingue um professor é a autoria. O multiplicador apenas replica o que aprendeu. Um computador pode fazer melhor isso do que um ser humano. O papel do professor não é repetir mecanicamente dados, informações e processos. É produzir conhecimento e reinventar a realidade.

Então como o professor pode fazer para evitar que seja um mero executor do currículo oficial?

Essa é uma pergunta complicada porque vivemos numa época em que os governos, nas suas três esferas, vêm perdendo a hegemonia do projeto educacional. Empresas e fundações privadas estão impondo políticas de educação instrucionistas a governos que não têm projetos pedagógicos. Não discutem valores, projeto de democracia, não formam para a cidadania mas apenas para o mercado. Sistemas educacionais privados transformaram os professores das redes públicas em máquinas de ensinar, meros executores de tarefas previamente apostiladas. Devemos reagir a essa mercantilização da educação. Esses sistemas desvalorizam o professor, a professora. Os professores estão excluídos de toda discussão do tema da qualidade. Eles não têm voz. O que se busca é uma estandardização da qualidade, da avaliação, da aprendizagem.

Qual a diferença do professor de hoje e daquele professor do passado?

Ser professor hoje, no século 21, não é nem mais difícil nem mais fácil do que era no século passado. É diferente. Diante da velocidade com que a informação obsolesce e morre, seu papel está mudando: ele não só transforma a informação em conhecimento e em consciência crítica, mas também forma pessoas. Ele faz fluir o saber, porque constrói sentido para a vida das pessoas e para a humanidade. Por isso, ele continuará imprescindível. Seu papel continua sendo “ensinar”, no seu sentido etimológico, do latim “insignare”, que significa “marcar com um sinal”, indicar um caminho, um sentido. Ser professor é, essencialmente, ser profissional do sentido.

Por que o senhor diz que não há tempo próprio para aprender?

Não foram poucas as iniciativas governamentais nos últimos 60 anos, que tentaram eliminar o analfabetismo no Brasil. Apesar disso, continuamos com milhões de jovens, adultos e idosos que não sabem ler e escrever um bilhete simples. E aí se introduz o conceito de “alfabetização na idade certa” como se existisse uma idade apropriada para aprender. Para mim, isso foi um grande equívoco, gerando preconceito contra os que não conseguirem se alfabetizar nesta idade. Cria-se o mito de que existe uma idade certa para aprender, contrariando tudo o que a Unesco defende: uma aprendizagem ao longo de toda a vida.

Apesar dos avanços registrados, ainda convivemos com atrasos como o analfabetismo. O que o senhor aconselha para superarmos esse grande desafio?

Sabemos que, entre nós, o direito à educação não é garantido para todos e todas. Apenas um em cada quatro brasileiros, acima de 15 anos, tem domínio completo da leitura e da escrita. Mas, felizmente, esse desafio foi equacionado pelo Plano Nacional de Educação (PNE). A saída está em executá-lo. A garantia desse direito depende muito, hoje, da mobilização em favor do cumprimento das metas 9 e 10 do PNE. Vivemos uma democracia na qual muitas promessas são feitas e não cumpridas. A Constituição de 1988 garantia que o analfabetismo seria eliminado em 10 anos. O PNE 2001-2011 fez a mesma promessa que não foi cumprida. O PNE 2014-2024 retoma essa meta. Resta saber agora se novo PNE é para valer. Depende de nós.

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

UMA OUTRA FORMA DE RESOLVER OS CONFLITOS

''Chegará o dia em que os seres humanos assumirão a inteligência cordial e espiritual, teremos inaugurado o reino da paz e da concórdia. O lobo seguirá lobo mas não ameaçará mais ninguém.''

A humanidade, especialmente, sob o patriarcado, conheceu conflitos de toda ordem. A forma predominante de resolvê-los foi e é a utilização da violência, para dobrar o outro e enquadrá-lo numa determinada ordem. Esse é o pior dos caminhos, pois deixa nos vencidos um rastro de amargura, humilhação e de vontade de vingança. Estes sentimentos suscitam uma espiral da violência que hoje ganha especialmente a forma de terrorismo, expressão da vingança dos humilhados. Será esta o única forma de os seres humanos resolverem suas contendas?

Houve alguém que se considerava “um louco de Deus”(pazzus Dei), Francisco de Assis que poderia ser também o atual Francisco de Roma que perseguiu outro caminho. O anterior era o de ganha-perde. Este último, o ganha-ganha, esvaziando as bases para o espírito belicoso. Tomemos exemplos da prática de Francisco de Assis. Sua saudação usual era desejar a todos: “paz e bem”. Pedia aos seguidores:”Todo aquele que se aproximar, seja amigo ou inimigo, ladrão ou bandido, recebam-no com bondade”(Regra não bulada,7).

Consideremos a estratégia de Francisco face à violência. Tomemos duas legendas, que, como legendas, guardam o espírito melhor que a letra dos fatos: os ladrões do Borgo San Sepolcro e o lobo de Gubbio (Fioretti, c. 21).

Um bando de ladrões se escondiam nos bosques e saqueavam a redondeza e os transeuntes. Movidos pela fome foram ao eremitério dos frades para pedir comida. São atendidos mas não sem remorsos destes: ”Não é justo que demos esmola à esta casta de ladrões que tanto mal faz neste mundo”. Apresentam a questão a Francisco. Este sugeriu a seguinte estratégia: levar ao bosque pão e vinho e gritar-lhes:”Irmãos ladrões, vinde cá; somos irmãos e lhes trouxemos pão e vinho. Felizes, comem e bebem. Em seguida falem-lhe de Deus; mas não lhes peçam que abandonem a vida que levam porque seria pedir demais; apenas peçam que ao assaltar, não façam mal às pessoas. Numa outra vez, aconselha Francisco, levem coisa melhor: queijo e ovos. Mais felizes ainda os ladrões se refestelam. Mas ouvem a exortação dos frades: “larguem esta vida de fome e sofrimento; deixem de roubar; convertam-se ao trabalho que o bom Deus vai providenciar o necessário para o corpo e para a alma”. Os ladrões, comovidos por tanta bondade, deixam aquela vida e alguns até se fizeram frades.

Aqui se renuncia ao dedo em riste acusando e condenando em nome da aproximação calorosa e da confiança na energia escondida neles de ser outra coisa que ladrões. Supera-se todo maniqueísmo que distribui a bondade de um lado e a maldade do outro. Na verdade, em cada um se esconde um possível ladrão e um possível frade. Com terno afeto se pode resgatar o frade escondido dentro do ladrão. E ocorreu.

Claramente aparece esta estratégia da renúncia da violência na legenda do lobo de Gubbio que atacava a população da pequena cidade. Supera-se de novo a esquematização: de um lado o “lobo grandíssimo, terrível e feroz” e do outro o povo bom, cheio de medo e armado. Dois atores se enfrentam cuja única relação é a violência e a destruição mútua. A estratégia de Francisco não é buscar uma trégua ou um equilíbrio de forças sob a égide do medo. Nem toma partido de um lado ou de outro, num falso farisaísmo: “mau é o outro, não eu, e por isso deve ser destruído”. 'Ninguém se pergunta se dentro de cada um não pode se esconder um lobo mau e e ao mesmo tempo um bom cidadão?'

O caminho de Francisco é desocultar esta união dos opostos e aproximar a ambos para que possam fazer um pacto de paz. Vai ao lobo e lhe diz:  ”irmão lobo, és homicida péssimo e mereces a forca; mas também reconheço que é pela fome que fazes tanto mal. Vamos fazer um pacto: a população vai te alimentar e tu deixarás de ameaçá-la”. Em seguida se dirige à população e lhes prega:”voltem-se para Deus, deixem de pecar.

Garantam alimento suficiente ao lobo e assim Deus os livrará dos castigos eternos e do lobo mau”. Diz a legenda que a cidadezinha mudou de hábitos, decidiu alimentar o lobo e este passeava entre todos, como se fosse um manso cidadão.

Houve intérpretes que leram essa legenda como uma metáfora da luta de classes. Pode ser. O fato é que a paz conseguida não foi a vitória de um dos lados, mas a superação dos lados e dos partidos. Cada um cedeu, verificou-se o ganha-ganha e irrompeu a paz que não existe em si, mas que é fruto de uma construção coletiva entre os cidadãos e o lobo.

Conclusão: Francisco não acirrou as contradições nem remexeu a dimensão sombria onde se acoitam os ódios. Confiou na capacidade humanizadora da bondade, do diálogo e da mutua confiança. Não foi um ingênuo. Sabia que vivemos na “regio dissimilitudinis”, no mundo das desigualdades (Fioretti c. 37). Mas não se resignou a está situação decadente. Intuía que para além da amargura, vigora no fundo de cada criatura uma bondade ignorada a ser resgatada. E o foi.

Chegará o dia em que os seres humanos assumirão a inteligência cordial e espiritual, cuja base biológica, os novos neurólogos identificaram e que completa a razão intelectual que divide e atomiza. Então teremos inaugurado o reino da paz e da concórdia. O lobo seguirá lobo mas não ameaçará mais ninguém.

Leonardo Boff escreveu Francisco de Assis: ternura e vigor, Vozes 2000.

Fonte: https://leonardoboff.wordpress.com

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

EDUCAÇÃO: NOVO MODELO PEDAGÓGICO PARA UM NOVO TEMPO

Escolas jesuítas da Catalunha apostam na renovação do modelo pedagógico para se adaptar aos novos tempos. Experiências espanholas mostram como pensam os jesuítas do século 21.

''O modelo escolhido para substituir o antigo foi o das escolas democráticas, onde os alunos estão no centro de um aprendizado ativo.''

Espaços aconchegantes e motivadores: a mudança no ambiente
esteve entre as principais medidas adotadas.
Repensar a escola não é um desafio qualquer. Pelo contrário, requer daqueles que o propõem uma postura flexível, autocrítica e aberta às possibilidades de entender a educação a partir de diferentes pontos de vista. Imbuídos desse espírito, diretores da Fundação Jesuítas Educação da Catalunha, na Espanha, lideraram nos últimos anos um processo de reformulação do modelo pedagógico até então adotado. O que motivou a iniciativa foi o reconhecimento da defasagem do sistema, incompatível com as novas maneiras de ter acesso ao conhecimento e de transmiti-lo, com as novas necessidades profissionais e com a complexidade da realidade atual. Adaptar as escolas não seria suficiente; era preciso transformá-las.

O modelo escolhido para substituir o antigo foi o das escolas democráticas, onde os alunos estão no centro de um aprendizado ativo. De saída, a Fundação iniciou em 2009 um processo participativo chamado Horizonte 2020 (em catalão, Horitzó 2020) com o objetivo de propor debates sobre como deveria ser a escola ideal para enfrentar os desafios do século 21. Mais de 13 mil pessoas relacionadas direta ou indiretamente à rede de escolas jesuítas foram convidadas a participar, entre elas alunos, pais, professores, diretores, gestores, empresários, funcionários de instituições, políticos e membros da Igreja. Nas atividades propostas, o grupo foi incitado a refletir sobre três questões fundamentais: que escola queremos? Que futuro desejamos? Como deve ser a escola em 2020?

Em um primeiro momento, os participantes foram orientados a pensar exclusivamente no futuro que desejavam, deixando de lado o "como" fazê-lo. A ênfase estava em explorar o sonho e a imaginação de cada um dos envolvidos para que pudessem surgir ideias sem limitações. De acordo com a Fundação, o objetivo era que, ao final desse processo, fosse construído coletivamente um Ratio Studiorum (veja texto ao lado) do século 21: um conjunto de orientações que, baseadas nos princípios e valores da pedagogia inaciana (inspirada na experiência de Santo Inácio de Loyola, 1491-1556, fundador da Companhia de Jesus), além dos conhecimentos da pedagogia, da psicologia e da neurociência, servisse de orientação para educar as crianças e jovens.

Ao todo, foram apresentadas 56 mil ideias. Dessas, 17 propostas foram selecionadas para servir de base para a formulação do modelo sincrético que começou a ser implementado no ano passado. De setembro de 2014 a junho de 2015, cinco das oito escolas que integram a Fundação adotaram parcialmente as novas bases. As etapas escolhidas para iniciar esse processo foram a educação infantil e um período concreto da educação fundamental: a transição da educação primária à secundária no sistema educativo espanhol.

A eleição dessas etapas não foi ocasional. No caso da etapa infantil, a Fundação considerou fundamental incidir nesse período para construir as bases para o desenvolvimento das inteligências múltiplas, necessárias para transformar informações em conhecimento. Já no caso do ensino fundamental, haviam diagnosticado uma perda de estímulo e interesse entre os alunos de 9 a 12 anos devido à desconexão entre a realidade e o modelo pedagógico aplicado nas escolas.

Mudanças
A aplicação do projeto Horizonte 2020 na educação infantil resultou, na prática, na implementação do Modelo Pedagógico da Etapa Infantil (Mopi), baseado em onze pilares: equipe docente integrada, criativa e inovadora; alunos protagonistas; espaços flexíveis e dinâmicos; participação das famílias; recursos digitais; tempo flexível; avaliação dinâmica; metodologia diversa; estimulação precoce das inteligências; contato com o inglês e integração de valores. De todos os pontos, o de maior destaque foi a necessidade de substituir os espaços antigos por outros, mais acolhedores e motivadores, com a intenção de desenvolver projetos globais e diversos para a estimulação das inteligências múltiplas.

Já na transição dos 9 aos 12 anos, o resultado foi a criação da Nova Etapa Intermediária (NEI). Em vez de estudar por matérias - com exceção de matemática, música e educação física -, os alunos passaram a realizar projetos transversais e coletivos trabalhados semanalmente a partir de materiais elaborados pelos professores; só há livros nas aulas de inglês e francês. Os alunos passaram a ser agrupados em turmas de 60 (e não mais de 30) e a contar com o apoio de três tutores de disciplinas diferentes. Os espaços também foram alterados: ficaram mais amplos, luminosos e coloridos.

O uso do tempo foi igualmente reformulado. Sem horários fixos, os alunos passaram a desenvolver as atividades debatidas no início da manhã, com avaliação ao final da jornada. O recreio tampouco ficou com um horário estabelecido: os estudantes passaram a decidir quando sair, de acordo com o momento em que consideravam necessário. Os deveres de casa também não existem mais, pelo menos da forma habitual. Os alunos passaram a ser estimulados a pesquisar temas relacionados aos projetos que trabalham em sala.

Impactos da primeira experiência

A direção do Horizonte 2020, ciente de que as mudanças nos processos educativos são lentas, optou por fazer uma avaliação do projeto somente ao final do segundo ano de implementação. No entanto, a observação do cotidiano das escolas revelou alguns resultados interessantes. De acordo com o diretor-geral adjunto da Fundação, Josep Menéndez, houve quatro mudanças fundamentais. 

A primeira delas se refere à retomada da conexão dos alunos com o aprendizado. Segundo ele, quase sempre chegava um momento da escolarização em que os alunos perdiam o interesse. "Agora eles estão permanentemente conectados. Houve uma mudança de atitude. Eles estão alegres e entusiasmados, o que acaba
Reforma educacional procurou motivar e inserir os alunos no
centro do processo educacional
contagiando os pais também", relata.

A segunda foi o ajuste de foco para o processo de aprendizagem, e não para o resultado. O terceiro impacto, mesmo não estando entre os objetivos iniciais do processo, foi o aumento, por parte dos alunos, da consciência e da capacidade de explicar o que fazem na escola. "Como a intenção não é vincular o aprendizado à realização de provas, eles estão mais relaxados e atentos ao que fazem e agora têm a capacidade de explicar como e por que realizam determinadas atividades", explica.

Por último, houve uma evolução significativa no comportamento dos alunos mais tímidos ou daqueles que apresentavam problemas diagnosticados de atenção. Como o trabalho em projetos atribui responsabilidades para cada aluno, eles passaram a participar mais.

Além desses resultados, Josep Menéndez fez questão de destacar que a transformação mais radical foi a mudança cultural dos professores, que tiveram de redefinir o próprio papel na escola e no ensino. Mais importante que dominar técnicas específicas, agora eles têm de aprender a trabalhar em grupo, a confiar no trabalho do outro e a acompanhar alunos de outras matérias. "Eles estão cansados, mas muito satisfeitos e confiantes. Aprenderam a trabalhar em equipe e a controlar o próprio estresse em relação ao conteúdo e às aulas. Além disso, percebem que estão participando de uma mudança importante, então se sentem vitoriosos", explica.

Quanto à opinião das famílias sobre o projeto, Fernando Manzano, pai de uma aluna de 10 anos, relatou sua experiência: "A mudança de atitude da minha filha foi evidente. Às vezes era difícil levá-la para a escola; ela se entediava e não explicava nada do que fazia. A partir da NEI, ficou com mais vontade de ir à aula e passou a demonstrar isso em casa, explicando constantemente o que estava fazendo, como aprendia, do que mais gostava e como trabalhava com os companheiros, apesar da diferença entre eles", contou.

Ao avaliar o novo sistema de ensino, Fernando destaca como uma das mudanças mais relevantes o estabelecimento de trabalhos em equipe. "Ao trabalhar com projetos e em grupos, os alunos adquirem responsabilidade na hora de trabalhar, porque sabem que não podem decepcionar os demais. Isso é motivador. Um dia, tive quase de obrigar minha filha a ficar em casa. Ela estava com 39°C de febre e queria ir de todas as maneiras para a escola para entregar a parte dela de um trabalho feito em grupo. Acabei fazendo isso por ela", conta.

O segundo aspecto mais importante em sua opinião foi a conscientização dos estudantes. "Como fazem uma reflexão no início e no final da jornada, eles não ficam um dia sequer sem pensar no porquê das coisas. Este aspecto de maturidade foi muito importante." Perguntado sobre a preferência entre o modelo anterior e o atual, Fernando não hesitou: "Sem dúvida nenhuma, o modelo atual. Ele fortalece a personalidade de cada aluno e desenvolve o aspecto humano", finaliza.

► Vozes dissonantes

Mas nem todas as opiniões são totalmente favoráveis ao projeto. Apesar de reconhecer a importância da iniciativa, o psicólogo e educador Jaume Funes acredita que existe um conservadorismo ideológico que não permite à FJE inovar verdadeiramente em termos de valores. "O Horizonte 2020 não considera a equidade de oportunidades ou a diversidade como valores. Falam em desenvolver as capacidades das crianças, mas não em melhorar as oportunidades de acesso, com impacto nos bairros onde estão localizados. Inovar com mais impacto social significa adaptar as oportunidades às diferenças e às desigualdades dos alunos", argumenta.

Outros criticam ainda o excesso de repercussão do projeto frente às diversas práticas inovadoras já desenvolvidas em outras escolas. O pedagogo e jornalista Jaume Carbonell afirma que as ações que vêm sendo discutidas e realizadas não constituem nenhuma grande novidade. Em seu livro Pedagogias do século XXI (de 2015 e ainda não publicado no Brasil), o autor destaca projetos inovadores desenvolvidos em diversas instituições de ensino. A pouca atenção dada a eles se deve ao fato de que a maioria das escolas enfrenta problemas estruturais e de autonomia, o que acaba restringindo o desejo de transformação a algumas práticas pontuais.

Sobre os próximos passos do trabalho da Fundação, a intenção é incluir mais três escolas ainda este ano e somá-las às outras cinco já participantes. Ao final do segundo ano, espera-se criar um modelo da etapa infantil e intermediária que possa ser aplicado futuramente em todas as escolas da rede. A previsão é que, em 2020, todas as etapas educativas já tenham começado a mudança.


► Ratio Studiorum 

Ordenamento elaborado em 1599 para orientar a atividade dos educadores jesuítas, delimitando suas funções e o modo de realizá-las. Tinha como princípios pedagógicos:

■ Autoridade: a autoridade do educador vem de Deus e deve provocar um temor filial e um amor confiante;

■ Adaptação: as regras devem se adaptar à realidade de cada escola e de cada grupo de alunos;

■ Atividade: os alunos devem participar ativamente de todas as atividades propostas, como recitar, ler, perguntar e responder.

■ Motivação: concebe a existência de elementos motivadores (interesse, entusiasmo, emulação, certame e honra) para conferir um ritmo ordenado e adequado às atividades.



► Alguns desejos das crianças 

"Queremos salas com cores divertidas."

"Silêncio para trabalhar e brincar tranquilos."

"Uma professora bem feliz, dando beijos e abraços."

"Sair para brincar na chuva com botas de borracha."

"Que a sala tenha mesas redondas, iPads e um botão para abrir a porta."

"Ter armário para guardar nossas coisas."

"Um quadro digital para muitas crianças tocarem ao mesmo tempo."

"Uma cama elástica no pátio e um gatinho em cada sala."

Mais informações sobre o projeto em: http://h2020.fje.edu

PROFESSORES E O DESAFIO DE EXPERIMENTAR NOVOS MÉTODOS

Desafio é conseguir que os professores experimentem novos modos de trabalhar. Práticas envolvendo o lúdico, a interdisciplinaridade e a contextualização têm o potencial de melhorar a aprendizagem.

"Professora, hoje não vai ter aula? É só brincadeira?" Perguntas como estas passaram a ser feitas por alunos e pais desde o ano passado para professoras alfabetizadoras de Costa Rica (MS). Isso acontece graças às formações do Pnaic.

No pequeno município, que tem seis escolas na rede e 1.400 alunos de 1º a 3º ano, a adesão dos docentes ao Pacto foi de 100%, mas a mudança de postura frente à sala de aula ainda está em processo, conta Mara Silvia Barbosa, coordenadora do Pnaic na cidade. "Aceitar participar da formação foi tranquilo, mas a mudança de atitude por parte do professor levou cerca de um ano para começar", afirmou. "No começo, essas perguntas incomodavam as professoras."

Segundo Mara, as formações levaram os docentes a sair da zona de conforto, passar do papel de "dono da verdade" para mediador do aprendizado. "Leva um tempo para o convencimento de que aquela "bagunça" pode ser boa, de que com a brincadeira não se está perdendo tempo, mas ganhando", disse. Para ela, contudo, mesmo que esse processo seja uma mudança ainda em curso, as crianças que estão hoje no primeiro ciclo do fundamental encontram uma alfabetização mais "humana" e adequada à idade do que os alunos que estavam na mesma série antes do Pacto.

Para Carolina dos Santos Vera e Silva, professora desde 2002 no município de Frei Miguelinho (PE), as formações foram boas para ela aprender a sistematizar o conhecimento do aluno e ter um olhar individual para cada um. "Sinto que eu ensinava, mas ficava sem amarrar. E, como a turma não é homogênea, tem níveis de conhecimento diferentes, preciso passar atividades diferentes. Não se pode dar uma aula única para todos, cada aluno tem sua necessidade", afirmou.

As práticas de Carolina também passaram a ser mais interdisciplinares e contextualizadas. Ela montou, por exemplo, uma sequência didática de culinária, em que foram abordados conteúdos de ciências (alimentação saudável), matemática (gráficos e tabelas) e língua portuguesa (gênero textual: receita). A experiência foi tão produtiva que acabou integrando um livro de relatos da Universidade Federal de Pernambuco.

Práticas envolvendo o lúdico, a interdisciplinaridade e a contextualização não são exclusividade, porém, dos professores que participam do Pnaic. Professora há 20 anos, Clara Elena Jorquera trabalha atualmente na rede particular, no Colégio Ítaca, em São Paulo, e aproveita as vantagens de contar com uma escola bem equipada e com uma equipe que atua de forma integrada. "Gosto de chamar o professor de artes, de educação física, de música, para fazer um trabalho em conjunto. A gente parte da história de um livro e faz atividades em todas as áreas. Assim as crianças ficam muito envolvidas, dá resultado melhor do que algo fragmentado", relata.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Zygmunt Bauman: "Há uma crise de atenção"

''Uma das tarefas da educação é conferir a todas as pessoas que tenham talento a possibilidade de adquirir conhecimento para que isso acabe tendo um uso criativo para a sociedade.''
Uma busca no Google com os termos “modernidade líquida" rende 187 mil resultados em 0,34 segundo. São, todos eles, “fragmentos de conhecimento", na visão do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, que discursou neste sábado no evento Educação 360.

O pensador defendeu que os educadores precisam estimular determinadas características que ficam prejudicadas com a utilização da tecnologia, "paciência, atenção e a habilidade de ocupar esse local estável, sólido, no mundo que está em constante movimento. É preciso trabalhar a capacidade de se manter focado." Leia mais abaixo:

— A educação é vítima da modernidade líquida, que é um conceito meu. O pensamento está sendo influenciado pela tecnologia. Há uma crise de atenção, por exemplo. Concentrar-se e se dedicar por um longo tempo é uma questão muito importante. Somos cada vez menos capazes de fazer isso da forma correta — disse o pensador. — Isso se aplica aos jovens, em grande parte. Os professores reclamam porque eles não conseguem lidar com isso. Até mesmo um artigo que você peça para a próxima aula eles não conseguem ler. Buscam citações, passagens, pedaços.

Como o próprio Bauman mencionou, a modernidade líquida — definida nos resultados do Google como a época em que vivemos, caracterizada por “volatilidade" , “incerteza" e “insegurança" — norteou as obras do filósofo; ele escreveu cerca de 30 livros apenas em torno dessa maneira de enxergar a contemporaneidade.

— Não há como contestar que a internet nos trouxe grandes vantagens. A facilidade de acesso à informação, a facilidade com que podemos ignorar as distâncias... Lembro-me de que, quando era jovem, passava muito tempo na biblioteca tentando ler cem livros para encontrar um pedacinho de informação de que precisava. Agora, basta pedir para o Google. Em décimos de segundo ele dá milhares de respostas. Um problema foi eliminado: nós não precisamos passar horas na biblioteca. Mas há um novo problema. Como vou compreender essas milhares de respostas? — questionou Bauman, logo recorrendo à Grécia Antiga para para continuar. — Só agora, idoso, consegui entender Sócrates: “Só sei que nada sei".

Há ainda, na visão de Bauman, outras crises que chegam com a internet e precisam ser superadas. O filósofo defende que vivemos com cada vez menos paciência, pela quantidade de informação que recebemos ao mesmo tempo. E, quando não temos isso, o resultado é a irritação.

— Se demoramos mais de um minuto para acessar a internet quando ligamos o computador, ficamos furiosos. Um minuto só! Nosso limiar de paciência diminuiu. As informações mais bem-sucedidas, que têm mais probabilidade de serem consumidas, são apenas pedaços — diz o polonês. — Outra coisa é a persistência. Conseguir algo contém em si um número de fracassos que faz com que você perca tempo e tenha que recomeçar do zero. E isso é muito complicado. Não é fácil manter essa persistência nesse ambiente com tanto ruído e tantas informações que fluem ao mesmo tempo de todos os lados.

Todo esse novo cenário, explicou o pensador à plateia de educadores, desafia e transforma a posição secular do docente. Para Bauman, “não há como voltar à situação em que o professor é o único conhecedor, a única fonte, o único guia". E dá caminhos:

— Não há como conceber a sociedade do futuro sem tecnologia. Então, se não pode vencê-la, una-se a ela. Tente contrabalancear o impacto negativo, como a crise da atenção, da persistência e de paciência. É preciso ter determinadas qualidades se você deseja construir conhecimento e não só agregá-lo: paciência, atenção e a habilidade de ocupar esse local estável, sólido, no mundo que está em constante movimento. É preciso trabalhar a capacidade de se manter focado.

► Educação desigual

Hoje, de acordo com o filósofo, a educação reproduz privilégios em vez de aperfeiçoar a sociedade. Ele lembra que, nos EUA, 70% dos alunos na universidade vêm das classes mais altas, enquanto só 3% são das camadas de renda mais baixa. Segundo Bauman, essa é “uma forma de reafirmar a desigualdade social", tema do livro “A riqueza de poucos favorece a todos nós?", o mais recente lançamento (no mês passado) do escritor no Brasil.

— Uma das tarefas da educação é conferir a todas as pessoas que tenham talento a possibilidade de adquirir conhecimento para que isso acabe tendo um uso criativo para a sociedade. Mas esse objetivo não está sendo perseguido em muitos lugares. Na Grã-Bretanha, os preços, em vez de diminuírem para as pessoas com menos dinheiro, vão subindo. E cada vez menos pais têm a possibilidade de economizar a quantia necessária para seus filhos cursarem a universidade.

O problema, segundo Bauman, é que a educação está pressionada pela política e pelos interesses corporativos. E isso, explica ele, se reflete na mente do estudante. O polonês critica o fato de os alunos escolherem a área de estudos baseados “no fato de se vão conseguir emprego ou não".

— Se você quer conhecimentos especializados, que são as condições para um bom emprego, precisa estudar quatro ou cinco anos, e isso requer muito esforço. Mas, se você está sendo guiado pelo atual estado de coisas, tudo vai mudar nesse tempo de estudo. E você vai perceber que não vai conseguir encontrar um uso rentável para o tipo de qualificação e habilidade que adquiriu nesses anos de trabalho árduo na faculdade — argumenta.

Mesmo após toda essa lista de desafios, a mensagem que o dono de uma das mais influentes mentes no mundo deixou para o auditório na noite de ontem foi de pura esperança:

— Educar, senhoras e senhores, é fazer um investimento nos próximos cem anos.

Charlie Hebdo, o mundo sofre de esquizofrenia

TERRORISMO - domingo, 11 de janeiro, 2015, o mundo vê deslocar mais de três milhões de manifestantes em França, incluindo cerca de cinquenta chefes de Estado e de Governo em Paris e representantes religiosos, inclusive muçulmanos, judeus e cristãos. A origem deste movimento excepcional, a execução de parte do corpo editorial do semanário Charlie Hebdo, seguido pelo assassinato de policiais e de cidadãos franceses de fé judaica em um hide comércio. No dia anterior, 700.000 pessoas participaram de marchas silenciosas, pacífica, nas principais cidades de França, implantando cartazes sóbrio: "Eu sou Charlie", "liberdade", "Contra o fanatismo", "Contra o Terrorismo", " contra o racismo ".

Há nove anos, a publicação de caricaturas de Maomé no jornal dinamarquês JyllandsPosten, novamente totalmente ou em parte, por várias publicações, incluindo CharlieHebdo, mas também os meios de comunicação no mundo árabe de maioria muçulmana (Al-Haq, Al-Anbat, Al-Liwa), provocou uma onda de protestos. Durante três semanas, eles foram estendidos do norte da Europa para a Indonésia através de África do Sul, causando dezenas de mortes. No Iraque, dois mil manifestantes exigiram uma Shia fatwa permitindo a matança de artistas. Em Londres, os membros sunitas do Hizb At-Tahrir desfraldaram faixas pedindo decapitar "infiéis". No Iêmen, os imãs pregou o caráter "legal" para o assassinato de journaled com "copiado os inimigos do Islã." Em Amã, o editor de Shihan, autor de um artigo "mundo muçulmano, seja razoável" ("O que está trazendo mais prejuízos ao islã, estas caricaturas ou imagens de um tomador Reféns que massacraram sua vítima diante das câmeras "), foi ameaçado, preso e forçado a pedir publicamente perdão por seus comentários. Chefes de Estado e de Governo teve lugar: George W. Bush, Angela Merkel e Chirac condenou a violência enquanto pedindo um fim às "provocações". O primeiro-ministro da Noruega, onde as charges também foram divulgadas, pediu publicamente perdão. E da Turquia, onde os desenhos não foram publicados, Erdogan enviou uma carta aos seus homólogos para afirmar que há "liberdade na terra pode ser utilizada para degradar ou insultar as crenças, valores ou símbolos sagrados". Nesse sentido, o lobby foi conduzida em vão pela Organização da conferência / Cooperação Islâmica (OIC), com o Conselho de Direitos Humanos, para evitar que a "difamação de religiões e profetas."

O nosso mundo contemporâneo é esquizofrênico. Os estados das contradições urso União Europeia: França manteve a legislação "anti-blasfêmia" na Alsácia-Moselle, que continua a viver sob o regime de reestruturação favorecendo católica, protestante e judaica. Em 2009, a Irlanda aprovou uma legislação "anti-blasfêmia" para punir as infracções "nenhuma religião". A Câmara dos Comuns da Inglaterra estava relutante em estender a sua legislação "anti-blasfêmia", que beneficiou apenas anglicanismo, antes de desistir completamente. Em os EUA, a sátira religiosa é um tabu, como recordou David Brooks, um editorial do New York Times intitulado "Eu não sou Charlie Hebdo". Em qualquer campus universitário americano, [Charlie Hebdo] não demorou trinta segundos. Os alunos acusou-o de manter o discurso do ódio e da administração teria que fechar. "Nos estados de maioria muçulmana Árabes Unidos, Kuwait adoptado em 2012 a legislação punindo por qualquer morte blasfemar contra" Deus, o Profeta e suas mulheres. "Uma pequena minoria (quatro deputados xiitas) se opuseram a ela porque ela queria acrescentar à lista os nomes dos" doze imãs. "A Arábia Saudita, que na quarta-feira denunciou o ataque contra Charlie Hebdo , aplicado dois dias depois perto da mesquita al-Jafali em Jeddah aberta ao público, no início da sentença contra o blogueiro Raef Badawi: 1.000 chicotadas, para a série de 50, distribuídos por 20 semanas, por "insultar Islã ".

Onde estão esses pesquisadores e os jornalistas que, durante anos, learnedly explicam que os únicos fatores de violência são social, econômica, política ou geopolítica?Longe de nós querer negar a importância destes elementos de explicação: o cinismo dos líderes do operador multinacional de recursos de matérias-primas do mundo ou jogar financeiro com a renúncia do mercado de ações políticos transformado em VIP para as empresas nacionais de armas que, por vezes, estão apoiando ditadores, para não mencionar algumas ONGs que desviam o dinheiro da ajuda enviada às populações afectadas ... Longe de nós para reduzir religiões e ideologias não religiosas, a face violenta que transmitiam na história. Mas quem se atreveria a dizer que as palavras e atos mortais não foram cometidos em nome de uma fé, qualquer que seja, ao longo da história? O que explicaria o historiador "guerras religiosas" entre os cristãos, na Europa dos séculos XVI e XVII, apenas por causalidades sócio-econômicos? O que é este baluarte de pensamento que, em tempos idos, levou a dizer que foi "louco" para "forma pervertida da religião", como se não houvesse objetos religiosos puros separada dele e que fez que os homens fazem.

Em 2006, o Presidente do Conselho Europeu, de Fatwa e do Conselho Mundial de Ulemás, Youssef Qardhawi, denunciou "a ofensa contra o Islã." Hoje ele condena "derramaram sangue inocente", sem especificar qual, mas lembra-temporada e fora da necessidade de permanecer fiel a thawâbit ("os dados imutável"), que incluemhudud, incluindo o castigo corporal com em alguns casos, e de acordo com procedimentos codificados, sentenças de morte. Em 2006, novamente, Hassan Nasrallah, estimou que "se ele tivesse sido um muçulmano para realizar a fatwa de Khomeini contra o Imam o renegado Salman Rushdie, esta gentalha que insultar nosso Profeta [Maomé] na Dinamarca, Noruega e A França não teria coragem de fazer. " Quase uma década depois, ele contratou seus combatentes na Síria é takfirista grupos sunitas que o secretário-geral do Hezbollah está atacando: "Através de seus atos vis, violentos e desumanos, tais grupos infringiram o Profeta e os muçulmanos mais do que seus inimigos [...] mais do que os livros, filmes e desenhos animados que insultaram o profeta ".

O fator religioso é uma explicação de dizer e fazer muitos de nossos contemporâneos, o contexto, por vezes, servindo como adjuvante. Fé em Deus (s) cresce fraternidade alce e solidariedade, criação, como as explosões de ódio e violência, destruição.Evidência de recordar. Não deve tomar de ânimo leve as dezenas de milhares de hashtags "Serve Charlie" ou "Eu sou Kouachi", assinado pelos filhos da República francesa. O mesmo se aplica para a tomada de reféns, ea morte de alguns deles, no comércio Porte de Vincennes. Transmitindo um antijudaísmo muçulmano em confessar ambiente é uma realidade em destaque durante a última feira muçulmana, em Bruxelas, à qual foi convidado o Kuwait Shaikh Tariq al-Suwaidan, autor de um ensaio intitulado 450 páginas judeus: o 'Enciclopédia Ilustrada (2009). Um dos propósitos deste livro, disponível on-line, é "demonstrar, através de provas e depoimentos, que a religião dos judeus falsificados, em si, incentiva a prática de traição e crime, e alimenta a sua seres para torná-los um grupo especial entre os seres humanos, e dá-lhes o direito de explorar os outros sobre as formas mais hediondas de duplicidade. "

O conflito israelo-palestiniano é uma gangrena que quadro explicativo não pode ser reduzida a uma guerra (neo) colonialismo / descolonização. Ele apresenta muitas semelhanças com o conflito Índia-Paquistão, desencadeadas também há cerca de 70 anos. Não há petróleo por trás do "Muro das Lamentações" no âmbito do "Monte do Templo" em Jerusalém. Estes são muitas referências religiosas que levam como rabino a dizer: "Esta terra é conhecida como a Judéia e Samaria, é judeu" como shaykh para replicar "esta terra é árabe e muçulmano," e uma como a Outra empurrar seus seguidores a lutar -up para massacrer- em Hebron, em torno do túmulo dos patriarcas mitificado. Eles não faltam, aqueles que chamam regularmente para a coexistência pacífica. Mas um ou dois referência religiosa para os estados nunca será sociedades democráticas, pelo menos, a fórmula não existiram no passado: não foram sempre acreditando um pouco mais iguais do que outros em tais configurações, e este é ainda o caso em Israel, como no Paquistão. A nacionalização da religião, qualquer que seja, cria de jure e de facto discriminação.

Devemos ter o cuidado de acrescentar que esses modos de ser e de fazer não são exclusivos para os crentes monoteístas, como mostra a contínua perseguição de muçulmanos pelos budistas na Birmânia ou chamadas ao ódio lançada pela Hindu em Índia? Deve esclarecer que os agnósticos como os ateus não são mais bem preservados, como ilustrado por manifestações anti-religiosas esporádicos após a missa, na virada dos anos 1960-1970, liderada pelo Partido Comunista Chinês?França, visto a partir de Cairo para Kathmandu para as vítimas, não é uma ilha neste mundo. O racismo está alimentando temores lá para provocar ataques contra lugares de culto, incluindo os muçulmanos como foi encontrado nos últimos dias. Fórmula secular que os cidadãos têm explorado há mais de um século, com momentos de tensões fortes ou até mesmo conflitos, sempre foi baseado em um equilíbrio delicado, dependendo de como cada um e de todos em termos apropriados.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Sem filosofia... Nem pensar!

''Filósofo só pára de pensar para pensar em que está pensando.''



Filosofar é pensar. Não um pensar qualquer. Não é um pensar solto no ar, perdido no mar, um ir-e-vir por aí. Não é jogar pôquer, apostar para ganhar tudo ou alguma coisa perder. Ou tudo perder e chorar sobre o pensamento derramado.

Filosofia é pensar dia a dia no dia-a-dia. Pensar é desfiar o fio da meada. Penso, logo desconfio. Pensar a prece, a pressa, o peso, o passo, a pizza, o poço, o prato, a prata, o porquê do epitáfio, as razões do rififi.

Filósofo é aquele que pára para pensar. Pára para não parar de pensar. Pensa para comer o pão com o suor de sua mente. Pensa, logo alonga, longínquo pensamento que o deixa tão perto de tudo. Filósofo só pára de pensar para pensar em que está pensando.

Filosofal viver. Filosofal andar. Filosofal tropeçar. Filosofal cair, e encontrar na queda outros motivos para mais filosofar. Filosofal sentar sobre a pedra filosofal. Idéia tanto bate sobre a pedra, tanto bate até que o pensamento perdura.

Filosofante caminhar, o homem sobre o elefante, o elefante sobre a terra, a terra sobre o vento, o vento filosofante venta para onde quer. O filosofante gigante sobre os ombros de um anão também verá mais longe.

Filosofema retira algemas, descobre o filósofo da gema, faz nascer antenas, penetrar esquemas, abordar todos os temas, reler o poema, inspirar-se no cinema, valorizar o pequeno, o fenômeno, o dilema, remar contra ou a favor da maré.

Filosofice é sempre um risco. Ninguém está livre de pensar contra o pensamento. Ninguém está livre de se aprisionar uma vez mais. Ninguém está livre de pensar que pensa, e despencar do altar que ergueu para si mesmo, confundindo filosofia com empáfia.

Filosofismo é outro risco. Belo risco, afinal, porque somos todos capazes de filosofar. O filosofismo é a filosofia que virou jogada, pretexto, mania, suborno, insulto. O filosofista finge que pensa, e por isso parece pensar melhor que o próprio pensador.

Filosófico texto, contanto que as palavras abram nossa mente e nos façam mentar o mundo. Que o texto filosófico não seja apenas manobra, cobra preparando o bote, veneno que paralisa o leitor e o devora pouco a pouco.

Filosofar, enfim, é começar a pensar sem fim. É pensar quando não se pensa em nada, pensando em tudo. Pensar como sempre. Como nunca.

Gabriel Perissé é doutor em Educação pela USP e escritor.


terça-feira, 8 de setembro de 2015

O DIA QUE EU A ESCOLA E O TEMPO SOFREMOS DE SOLIDÃO.

''A escola não sai de minha memória, como minha memória passou habitar aquele lugar.''
Na escola isolada, abandonada no interior de Romelândia há um encanto, um espanto, um tesouro guardado na silenciosa parede esquecida em estilizada mensagem ‘’É na educação dos filhos que se revela o caráter dos pais.’’ – esse é o tesouro da responsabilidade da família para com seus filhos na escola.

Sim, escolas não foram feitas para solidão, para silêncios eternos, abandonos do acaso e meros depósitos de crianças. Mas essa escola não está sozinha, encravada nela estão as lições que a vida urbana deixou de fazer.

Nas paredes silenciosas da simpática escola estão grifados artisticamente, paixões pedagógicas, lições de afetos e gritos de amor como: '‘você é a estrelinha que ilumina nossa escola’’ e na outra parede ‘’crianças são como borboletas ao vento, algumas voam pausadamente, mas todas de seu melhor jeito, cada um é diferente, cada uma é linda, e cada uma é especial.’’

Falo da escola Érico Verissimo na linha São Jorge interior de Romelândia. Falo da realidade de tantas escolas neste país abandonadas pela irresponsabilidade e insensibilidade de governantes – diferente dessa escola que o êxodo rural e o baixo número de crianças levou a fechar.

Falo especificamente dessa escola, tão real, presente aqui perto ou dentro de nós, onde não se tem mais crianças para ocupar as salas, sentar nas cadeiras, suprir paixões dos professores e preencher o silêncio da Escola.

Falo da nostalgia, das histórias infinitas ali contadas por décadas, falo das crianças, adolescentes que ali brincaram, falo dessa escola que não morre, mesmo no silêncio, na sensação de abandono, na nostalgia de tempos que não volta, mas não passam também. Porque embora tenha levado longe tantos tesouros que ali se alfabetizaram, os traz de volta constantemente mesmo que somente em memória.

Porque a escola atual, a escola que sonhamos para amanhã e o distante futuro parece sofrer de tédio, de estresse e silêncios que dividem classes, mestres e sonhos? - Enquanto a escola do passado ressuscita constantemente de amor, de lembranças e frutos saborosos de tempos que não voltam mais.

Escolas do passado parecem as escolas que sonhamos para um futuro que não tende a chegar. Porque nessas escolas de futuro esmagamos com métodos pedagógicos modernos as essências de tempos que não voltam mais, da paixão do ensinar pelo professor ao cuidado da família com a educação do respeito e limites dos filhos. 


Nestas escolas que não voltam mais estão depositados o tesouro da responsabilidade hoje esquecida, renegada, abandonada pelos estudantes, por seus pais, seus governantes mesmo sob o nome de escola do presente, do futuro e da esperança. – Mas sem coragem de enfrentar os desafios pertinentes!

Naquela escola que nunca sentei, nunca lecionei mas lá estive por obra do destino, por curiosidade em seu silêncio há algo que não volta mais. Ali há um coração que pulsa como memória nas paredes, uma luz que brilha sobre o quadro negro, uma ordem nas cadeiras que esperam por alunos que não chegam, um portão aberto para o incerto e tão receptivo.

Na Escola isolada moram memórias que não morrem como o escritor que lhes concede o nome – ali mora a história do lugar, o reflexo de um educar que não volta mais, mas que embora de portas fechadas continua a nos ensinar. 'A escola não sai de minha memória, como minha memória passou habitar aquele lugar.'

Neuri a. Alves – Filósofo, Professor Pesquisador

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

ESTES NÃO SÃO SERES HUMANOS, NOSSOS IRMÃOS E IRMÃS?

''O limite maior da cultura européia ocidental é sua arrogância que se revela na pretensão de ser a mais elevada do mundo.''

O grau de civilização e de espírito humanitário de uma sociedade se mede pela forma como ela acolhe e convive com os diferentes. Sob este aspecto a Europa nos oferece um exemplo lastimável que beira à barbárie. O menino sírio de 3-4 anos afogado na praia da Turquia simboliza o naufrágio da própria Europa. Ela sempre teve dificuldades de aceitar e de conviver com os “outros”.

Geralmente a estratégia era e continua sendo esta: ou marginaliza o outro, ou o submete ou o incorpora ou o destrói. Assim ocorreu no processo de expansão colonial na Africa, na Asia e principalmente na América Latina. Chegou a destruir etnias inteiras como aquela do Haiti e no México.

'O limite maior da cultura européia ocidental é sua arrogância que se revela na pretensão de ser a mais elevada do mundo', de ter a melhor forma de governo (a democracia), a melhor consciência dos direitos, a criadora da filosofia e da tecnociência e, como se isso não bastasse, ser a portadora da única religião verdadeira: o cristianismo. Resquícios desta soberba aparece ainda no Preâmbulo da Constituição da União Européia. Aí se afirma singelamente:

“O continente europeu é portador de civilização, que seus habitantes a habitaram desde o início da humanidade em sucessivas etapas e que no decorrer dos séculos desenvolveram valores, base para o humanismo: igualdade dos seres humanos, liberdade e o valor da razão…”

Esta visão é somente em parte verdadeira. Ela esquece as frequentes violações destes direitos, as catástrofes que criou com ideologias totalitárias, guerras devastadoras, colonialismo impiedoso e imperialismo feroz que subjudaram e inviabilizaram inteiras culturas na Africa e na América Latina em contraste frontal com os valores que proclama. A situação dramática do mundo atual e as levas de refugiados vindos dos países mediterrâneos se deve, em grande parte, ao tipo de globalização que ela apoia, pois configura, em termos concretos, uma espécie de ocidentalização tardia do mundo, muito mais que uma verdadeira planetização.

Este é o pano de fundo que nos permite entender as ambiguidades e as resistências da maioria dos países europeus em acolher os refugiados e imigrantes que vêm dos países do norte da Africa e do Oriente Médio, fugindo do terror da guerra, em grande parte, provocada pelas intervenções dos ocidentais (NATO) e especialmente pela política imperial norte americana.

Segundo dados o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) somente neste ano 60 milhões de pessoas se viram forçadas a abandonar seus lares. Só o conflito sírio provocou 4 milhões de desalojados. Os países que mais acolhem estas vítimas são o Líbano com mais de um milhão de pessoas (1,1 milhão) e a Turquia (1,8 milhões).

Agora esses milhares buscam um pouco de paz na Europa. Somente neste ano cruzaram o Mediterrâneo cerca de 300.000 pessoas entre imigrantes e refugiados. E o número cresce dia a dia. A recepção é carregada de má vontade, despertando na população de ideologias fascistóides e xenófobas, manifestações que revelam grande insensibilidade e até inumanidade. Foi somente depois da tragédia da ilha de Lampedusa, ao sul da Itália, quando se afogaram 700 pessoas em abril de 2014 que se colocou em marcha uma operação Mare Nostrum com a missão de rastrear possíveis naufrágios.

A acolhida é cheia de percalços, especialmente, por parte da Espanha e da Inglaterra. A mais mais aberta e hospitaleira, apesar dos ataques que se fazem aos acampamentos dos refugiados, tem sido a Alemanha. O governo filo-fascista de Viktor Orbán da Hungria declarou guerra aos refugiados. Tomou uma medida de grande barbárie: mandou construir uma cerca de arame farpado de quatro metros altura ao longo de toda fronteira com a Sérbia, para impedir a chegada dos que vêm do Oriente Médio. Os governos da Eslováquia e da Polônia declararam que somente aceitariam refugiados cristãos.

Estas são medidas criminosas. Todos estes sofredores não são humanos, não são nossos irmãos e irmãs? Kant foi um dos primeiros a propor uma República Mundial (Weltrepublik) em seu último livro A paz perpétua. Dizia que a primeira virtude desta república deveria ser a hospitalidade como direito de todos e dever para todos, pois todos somos filhos da Terra.

Ora, isso está sendo negado vergonhosamente pelos membros da Comunidade Européia. A tradição judeo-cristã sempre afirmou: quem acolhe o estrangeiro, está hospedando anonimamente Deus. Valham as palavras da física quântica que melhor escreveu sobre a inteligência espiritual – Danah Zohar: ” A verdade é que nós e os outros somos um só, que não há separatividade, que nós e o ‘estranho’ somos aspectos da única e mesma vida”(QS: consciência espiritual, Record 2002, p. 219). Como seria diferente o trágico destino dos refugiados se estas palavras fossem vividas com paixão e compaixão.

Leonardo Boff escreveu Hospitalidade:direito e dever de todos, Vozes 2005.

Fonte: https://leonardoboff.wordpress.com

domingo, 30 de agosto de 2015

A Revolução das Redes como Estratégia de Libertação Popular

Por, Euclides André Mance*

Filósofo Euclides André Mance, um dos principais teóricos da Economia Solidária e
da Filosofia da Libertação na América Latina.
Nos dois textos em que o professor Paulo Lopes realiza críticas à hipótese de a colaboração solidária poder constituir-se em uma estratégia viável à efetivação de uma alternativa pós-capitalista, superadora da globalização atual, observa-se um recurso estilístico de contextualmente aduzir, sem afirmar explicitamente, adjetivos desqualificadores ao autor da proposta e a outros pesquisadores que contribuem nessa reflexão como forma de criticar-lhes as idéias. Nota-se como recorrente a alusão ao "grupo de iluminados", à "idéia genial de um iluminado", "os iluminados", etc. Outro estratagema do mesmo naipe é dizer "não estou falando" disso ou daquilo, evocando idéias sobre isso e aquilo; melhor seria se o autor explicitasse a quem se aplica as alusões que faz (1).

Para precisar os argumentos, cabe esclarecer alguns conceitos centrais na reflexão que o professor Lopes vem alimentando e alguns que lhes são adjacentes. No primeiro caso incluem-se estratégia, político-organizativo, excluídos-incluídos e alternativa histórica; no segundo caso, idéia genial de iluminado, retórica e pré-ocupação.

A utilização dos conceitos de estratégia e tática como mediações da práxis política advém de Lênin que inverteu a máxima do general e estrategista prussiano Karl Von Claussewitz que dizia ser a guerra a simples continuação da política por outros meios. Ao inverter a frase, considerando "a política como a simples continuação da guerra por outros meios", Lênin introduziu na análise política não apenas as categorias de estratégia (do grego, estratós - exército) e tática (ação específica de batalha), como militarizou a concepção de práxis política: os militantes devem ser organizados como em um exército, comandado por um Comitê Central, a partir de uma única estratégia de construção de um projeto econômico, político e cultural. Sem um exército previamente organizado não se ganha uma guerra. Sem uma ação político organizativa prévia às lutas, não se ganha a guerra política. O objetivo final da luta política é a conquista do poder de Estado, com o qual será possível revolucionar a estrutura econômica implantando e implementando o projeto político do proletariado. Dadas as diversidades de configuração do Estado e das lutas políticas, Gramsci diferenciará a guerra de movimento da guerra de posição, enfatizando o papel da condução política hegemônica da sociedade civil, organicamente articulada em torno de um projeto estratégico. Se Lênin enfatizava o papel do Partido Político como instância educadora das massas - mediação entre a filosofia política marxista e a ação do proletariado - Gramsci alargará essa tese, referindo-se às diversas organizações da sociedade civil como espaços de luta política e ação educativa, de produção deconsensos e hegemonias. No cerne dessa compreensão de revolução - independentemente da adoção de métodos de luta democrática ou de luta armada - a conquista do poder político de Estado é condição-chave para uma ruptura histórica. Desta forma, todas as ações econômicas e culturais gestadas pelas classes exploradas, expropriadas e dominadas são consideradas inofensivas para combater o capitalismo se não operarem como táticas de uma estratégia política unitária que se volta para a conquista do poder do Estado, hegemonizada por uma vanguarda que orienta os rumos dessa transformação. Os membros de tal vanguarda são justamente aquelas pessoas capazes de dizer o que é ou não é estratégico, o que é ou não revolucionário, o que é meramente tático e até mesmo o que à ação tática não se presta; são dirigentes e lideranças que, atuando no comando de organizações da sociedade política e sociedade civil, avançam no trabalho político-organizativo a fim de acumular forças para transformar crises conjunturais em crises orgânicas, quando o que se põe em questão não são mais as conquistas imediatas para as classes em particular, mas a transformação estrutural da sociedade, visando abolir a sua própria divisão de classes.

Com efeito, para os que se habituaram a considerar a estratégia revolucionária sob um paradigma de centralização política e de ruptura histórica é muito difícil compreender que uma revolução antagônica ao capitalismo possa ocorrer sob uma estratégia de rede em que o econômico e o cultural não sejam subalternos ao político, e que a implantação e implementação progressiva dessa rede não sejam nem uma ruptura imediata do sistema capitalista em uma dada sociedade, nem uma mera reforma do capitalismo, mas a expansão de uma rede econômica, política e cultural anticapitalista que cresce absorvendo progressivamente as forças produtivas geradas também sob o capitalismo, constituindo-se, política e culturalmente, em um novo "bloco histórico". É muito difícil entender que agenciamentos econômicos, culturais e políticos possam engendrar complexos laços de realimentação que subvertam as dinâmicas de reprodução do capitalismo(2) e que o ciclo histórico dessa subversão é um processo mais amplo que não se confunde com a ocorrência, em algum momento seu, da conquista de uma parcela de poder político de Estado pela nova classe hegemônica (uma vez que outras parcelas desse poder estão difusas na sociedade civil em oposição à essa classe que se torna dirigente), mas que se trata da própria transformação do Estado e de sua política no processo de sua subversão, processo esse que leva essa classe a assumir o controle do governo do Estado que ela subverte, governo esse que é apenas uma parcela do poder político do Estado. A dificuldade de entendimento que isso suscita talvez resida em aceitar que as diversas organizações do setor popular da sociedade civil possam unificar ações em torno de eixos de luta (nos campos da produção econômica, reprodução social e da cultura) politicamente antagônicos ao capitalismo, mesmo assumindo, cada um desses atores coletivos, sua estratégia peculiar de organização e luta, independentemente de adotarem a estratégia de um "partido único"- como muitos defenderam até poucas décadas atrás - ou de alguma organização política centralizada que o substitua (3). Para muitos é difícil compreender como multiplicidades de ações moleculares que variam de escopo e escala - pense-se na diversidade de ações específicas dos movimentos sociais-populares e nos diversos níveis de suas abrangências que vão da ação local à ação internacional - possam articular-se em redes desenvolvendo ações conjuntas sem que haja um projeto político único e centralizado que os articule, mas unificados em torno de objetivos comuns consubstanciados nos eixos de luta. Muitos intelectuais resistem em aceitar o potencial caráter estratégico - para a construção de uma sociedade democrática e pós-capitalista - das lutas de índios, negros e mulheres, de sem-tetos e portadores de deficiências, de cooperativas de produção e consumo e de movimentos culturais. Aplicando a todos eles certos esquemas teóricos que não resultam da análise criteriosa da práxis desses movimentos em seus diversos contextos, afirmam que, por eles não enfrentarem diretamente a contradição entre capital e trabalho, são apenas espaços táticos para a ação político-organizativa. Não percebem que essas lutas, se articuladas em torno de eixos estratégicos, podem avançar não apenas na busca de conquistas imediatas, mas de transformações estruturais do capitalismo.

Ora, qualquer atividade de organização social pode ser abstratamente considerada em suas dimensões política, econômica e cultural. Privilegiar o aspecto político frente ao econômico e ao cultural, considerando qualquer ação nas duas últimas esferas como exercícios táticos subalternizados à primeira é um equívoco que não apenas decorre de uma compreensão inadequada dos exercícios sociais de poder que permeiam todas as esferas da sociedade, como também das seqüelas de uma visão clássica e equivocada do próprio exercício político. Compreender a ação política como pré-ocupação é uma abstração que remonta à visão grega em que o suporte econômico que sustenta o exercício político está assegurado pelo trabalho escravo e em que uma minoria assume a condição de cidadãos por estirpe e não como resultado de um processo educativo. Falta apenas considerar o trabalho como um negócio (como negação do ócio) para chegarmos a uma certa noção burguesa de trabalho usualmente associável a essa noção aristocrática de política. É interessante notar que o professor Lopes após considerar a intencionalidade e mediaticidade da colaboração solidária pergunta-se se é possível articular-se elementos teóricos em torno dessa colaboração e arremate que se não o for estaremos no campo da retórica. Com efeito, parece-nos que o emprego da pré-ocupação como o realizado pelo autor é um exemplo claro da retórica que critica: retire-se o ar que o professor Lopes respira e sua pré-ocupação primeira será simplesmente viver. Retire-se-lhe o alimento e sua pré-ocupação será comer; retire-se-lhe a moradia e sua pré-ocupação será abrigar-se das intempéries. É sutil debater sobre a ocupação anterior à ocupação - expressão logicamente inconsistente, pois a ocupação política inclui-se na extensão de toda a ocupação - quando não estamos mais preocupados com o que comer, onde dormir ou como tratar da doença de nossos filhos.

Ainda sobre a intencionalidade e mediaticidade peculiares à colaboração solidária, convém relembrar que nos textos anteriores deixamos claro que as inúmeras iniciativas solidárias existentes que resenhamos não se articulam sob a estratégia complexa de rede, não se configurando, portanto, como uma alternativa ao capitalismo. Por outro lado destacamos a hipótese de que se essas ações - se forem articuladas estrategicamente sob um modelo de rede, visando implementar os princípios de autopoiese, integralidade, extensividade, intensividade, fluxos solidários de valor, de matérias e de informação, etc - podem vir a engendrar uma alternativa ao capitalismo e portanto a superação desse sistema como modo de produção dominante. Por fim, afirmar que a teoria deve responder à questão de ser ou não possível articular elementos teóricos em torno da colaboração solidária, como faz o professor Lopes, é um disparate. Qualquer ação humana é passível de ser objeto de elaboração conceitual e, portanto, de ser teorizada. A afirmação é tão obtusa que não deixa margem a uma resposta negativa. Isto é, afirmar que não seja possível articular elementos teóricos em torno da colaboração solidária é o mesmo que dizer que os seres humanos são incapazes de pensar conceitualmente a própria solidariedade que praticam.

Convém destacar também que o modo como o professor Lopes emprega o expressão iluminado - citada várias vezes em seus textos - aludindo contextualmente os elaboradores do estudo em questão é também uma figura retórica que busca desqualificar essa investigação, afastando-se do sentido conceitual de expressões comoiluminismo, ilustração, esclarecimento ou aufklärung - talvez dando a entender que nos julguemos inspirados, visionários ou videntes no sentido esotérico que a expressão possa ter nos contextos em que é aplicada. Revela também uma fragilidade quanto a sua compreensão de elaboração teórica. De fato, não há nenhum conhecimento que seja fruto da elaboração de um único ser humano, uma vez que a linguagem e as semioses que atravessam qualquer reflexão são produtos coletivos e constantemente reciclados. Mas não se pretenderá mais esclarecido que o iluminado aquele que o critica ? Considerando ainda que a expressão iluminado, por ele empregada, é precedida da preposição de, ensejando compreender que a possível estratégia de colaboração solidária apresentada teria origem em um grupo de iluminadospara os excluídos, vale considerar o método de elaboração teórica desta reflexão, a fim de dirimir uma pretensa oposição entre "alternativa histórica para os excluídos" ou "alternativa histórica dos excluídos".

O fato de a colaboração solidária ser sistematizada criticamente por intelectuais orgânicos não subverte o fato de que a práxis social global tem precedência sobre a elaboração teórica do investigador. Algumas vertentes da filosofia da libertação, desenvolvidas a partir dos anos 70, ao questionarem-se acerca do sujeito histórico da revolução e da elaboração teórica inerente a esta, argumentaram que as classes populares eram o sujeito de ambos e que cabia aos intelectuais, solidários à práxis de libertação popular, mergulhar no universo simbólico que medeia essa práxis, considerar suas diversas formas e escopos, investigar os elementos agenciadores da ação popular, suas contradições, fragilidades e fortalezas históricas, perspectivas de avanço, etc, enfim sistematizar criticamente aquela mesma práxis e retribuir dialogicamente essa reflexão àqueles atores sociais para que, democraticamente, no exercício do diálogo e da crítica, os movimentos e organizações populares pudessem aprimorar a práxis que efetivam (4). As categorias a serem aplicadas nessa análise crítica, por sua vez, deveriam ser produzidas a partir da construção conceitual sobre as diversas realidades particulares em questão, considerando as diversas formas de dominação, de resistência e de luta por libertação. Tratava-se de negar - sempre que necessário - os esquemas teóricos a partir da prática e construir, a partir do exercício mesmo da práxis de libertação e do diálogo com seus sujeitos históricos, novos conceitos e novas categorias analíticas, que resultassem em novos marcos teóricos que melhor permitissem compreender a própria realidade em curso. Com esta abertura à alteridade histórica como fonte inovadora - da realidade e da teoria - não apenas podemos falar de uma ética emergente das lutas populares, como o faz Arturo Roig (5), mas de uma colaboração solidária cuja realização econômica, política e cultural pode dar origem a uma sociedade de colaboração solidária, subvertendo o capitalismo. Podemos não apenas criticar o populismo que reelabora as demandas populares de modo a atender as demandas da classe dominante, mas também de um certo tipo deesquerdismo que reelabora demandas populares como elementos táticos para atender aos interesses de projetos estratégicos pretensamente revolucionários.

Sob a perspectiva que adotamos, cabe partir da práxis social, detectar as contradições entre os diversos atores e, a partir delas, considerar as classes sociais e seus interesses antagônicos, desvendando as mediações recorrentes nos processos de exploração, expropriação e dominação, bem como, as mediações de resistência e de lutas por libertação, isto é, pela expansão dos exercícios de liberdade pública e privada, que implicam no compartilhamento de mediações materiais, políticas, educativas, informativas e éticas para que ambas (as liberdades pública e privada) se realizem de modo democrático. Como toda prática (ação efetivadora) supõe alguma teoria, todas as formas de resistência e de luta por libertação estão permeadas por teorias cujos alcance e consistência variam em função do grau de sua reflexão e reelaboração por parte dos atores que as praticam. É possível, entretanto, uma reflexão criteriosa e sistemática sobre esses elementos teóricos, suas dificuldades gnosiológicas e estratégicas, e sua capacidade de desvendar mecanismos de dominação e de apresentar alternativas; é possível propor dialogicamente formas de ação que ampliem o domínio sobre as mediações materiais, políticas, informativas, educativas e éticas que mediatizem a liberdade dos sujeitos populares explorados, expropriados, dominados e excluídos. A teoria, portanto, surge da práxis e a ela retorna buscando qualificá-la para que possa ser mais eficaz como elemento de libertação. A estratégia da colaboração solidária em redes autopoiéticas surge em um processo investigativo que adota esse método, aqui sumariamente apresentado. Partindo das práticas de solidariedade, difusas por todas as classes populares, buscando compreendê-las conceitualmente com o arcabouço das teorias já elaboradas que conhecemos (e sempre tendo consciência da parcialidade desse conhecimento, pois a onisciência é um atributo de caráter mitológico) chegamos a fenômenos que melhor são descritos sob o modelo de redes e à necessidade de elaborar novas categorias que aprimorassem o próprio referencial teórico para melhor compreender a práxis que se configura como origem e fim da investigação. A organização de redes de colaboração solidária, como a entendemos, é uma estratégia que tem sua origem (expresso pelo genitivo de) na prática dos excluídos que efetuam ações econômicas solidárias e que para eles se volta (expresso no dativo para), como reflexão criteriosa de sua própria práxis, tendo em vista aprimorá-la, potencializá-la como práxis de libertação popular (6). Aliás, a preposição de tem, pelo menos, treze empregos habituais. Quando particularmente colocada entre dois substantivos ela pode significar, entre outros aspectos: posse, pertença, origem, finalidade (equivalendo a preposição para), causa e participação. Trata-se portanto de uma alternativa que parte de excluídos, tendo neles sua origem, sua causa e que se volta para todos os seres humanos, particularmente a eles próprios.

A questão dos excluídos dá margem a outro jogo de palavras do professor Lopes. No primeiro texto esclarecemos que embora as redes de colaboração solidária possam vir a surgir em meio ao capitalismo, elas são radicalmente antagônicas a esse sistema. No segundo texto afirmamos que as práticas de colaboração solidária que então resenhamos não se articulam estrategicamente e que seus sujeitos prestam pouca atenção aos fluxos de valor inerentes no processo de produção e consumo, fazendo com que as mesmas realimentem estruturas capitalistas. Enfatizávamos no próprio título do texto a necessidade de compreender as práticas existentes de economia solidária e, além disso, transformar e conectar tais atividades de produção e consumo solidários sob uma perspectiva estratégica que as potencialize, de forma a expandirem-se em relações de produção e consumo antagônicas ao capitalismo. Na medida em que as redes se expandam, teremos - segundo a hipótese em estudo - a expansão de uma economia pós-capitalista. Ora, se o capitalismo gera excluídos (em razão de o desenvolvimento científico, ao ser aplicado à produção, dar origem ao que Marx chama dedisposable time), por outra parte incorporar tais excluídos nas redes de colaboração solidária, sob a estratégia que apresentamos como hipótese no primeiro artigo, não significa incorporá-los ao capitalismo, como o texto do professor Lopes dá a entender ao falar da colaboração solidária como estratégia de inclusão na ordem existente. Com efeito, as práticas de economia solidária existentes realimentam, mediatamente, o movimento de acúmulo capitalista uma vez que consomem insumos, outros materiais e serviços do mercado, ao passo que poderiam buscar a satisfação dessas demandas consumindo produtos e serviços de outras unidades produtivas solidárias, operando laços de realimentação produtiva em um movimento de rede, avançando na geração de complexas cadeias produtivas em regime de colaboração solidária. Isso corrigiria os fluxos de valor, de modo que os mesmos realimentassem o movimento de produção e consumo das redes, ao invés de desaguar no mercado capitalista. Ao que parece o professor Lopes critica a estratégia que apresentamos como se as práticas atuais de economia solidária a realizassem; e como as práticas atuais incorporam novamente o trabalho dos excluídos no movimento de acumulação capitalista, a estratégia das redes apresentada no primeiro artigo seria apenas uma estratégia de inclusão dos excluídos no capitalismo. Ora, se o professor Lopes considera que a estratégia apresentada no texto não compõe elementos que permitam a geração de uma economia antagônica ao capitalismo, deve argumentar a falha da estratégia proposta e não apenas dizer que é difícil aceitá-la ou mencionar que as práticas atuais de economia solidária não subvertem o capitalismo, pretendendo com isso contraditar aquela estratégia que, entretanto, não é efetivada nessas práticas.

Por fim, vale considerar que, talvez, a contraface do discurso que afirmava "quanto pior a situação do povo, melhor para a revolução" possa ser a que afirma: "melhorar a situação do povo em redes autopoiéticas de colaboração solidária é reincluí-los na reprodução do capitalismo." Ambas as teses são equivocadas. Fome, pobreza e miséria, morte de pessoas que lutam por terra para plantar e morar, iniciativas de produção comunitária e de consumo solidário (bem como, lutas pelo respeito à dignidade de mulheres, negros, índios, homossexuais e tantos outros grupos que lutam pela expansão das liberdades públicas e privadas visando ampliar e aprimorar as mediações materiais, políticas, educativas e informativas que as suportam) não podem ser reduzidas a meras táticas de luta política. De fato, as práxis de libertação, voltadas aos objetivos dos setores populares da sociedade civil, podem molecularmente realimentar-se em revolucionários movimentos de rede. Sob a matriz teórica que adotamos, não é um acordo simbólico em uma comunidade de comunicação, seja em consensos genéricos ou substantivos, o que pode decidir pela validade ou não desta afirmação; não são acordos simbólicos nas comunidades científicas dos experts o que confere legitimidade a uma teoria qualquer sobre fenômenos objetivos, mas a capacidade dessa teoria em expressar coerentemente relações entre elementos indiciais que ela conceitualiza - significando o termo índice uma categoria semiótica que expressa uma classe de signos que fazem parte dos objetos dinâmicos (7). É esse o critério básico a partir do qual possíveis acordos podem se estabelecer. Em última instância, no que se refere à conceitualização de realidades objetivas, é a práxis o critério de validade das teorias. É na práxis que os limites de transformação histórica se ampliam ou se restringem pela própria ação histórica dos sujeitos sociais. Não existem, portanto, os exatos limites que imagina existir o professor Paulo Lopes, pois os campos de possibilidade são dinâmicos e os seres humanos podem criativamente fazer surgir novas relações econômicas, políticas e culturais. Com efeito, é através da reflexão rigorosa da práxis que podemos perceber, parcialmente, os limites das teorias adotadas e aprimorá-las em suas debilidades e fraquezas. Em contrapartida, o aprimoramento dessas teorias permite colaborar na qualificação da práxis, quando a ela, orgânica e dialogicamente, essa reflexão se articula. Nenhuma teoria compreende totalmente o real, pois todos os signos representam parcialmente os objetos dinâmicos. Os exatos limites que o professor Lopes persegue, portanto, somente podem ser formulados como uma falsificação "teórica" da realidade, como presunção suportada em esquemas teóricos que levam o investigador a afastar-se da compreensão conceitual da realidade quando dela imagina se aproximar.

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Notas

* Foi professor de Lógica e Filosofia da Ciência na UFPR; participa atualmente do Núcleo de Estudos Latino-Americanos (ALEP) do Setor de Ciências Humanas da mesma Universidade; leciona Filosofia da Linguagem e Filosofia Latino-Americana, respectivamente, no Studium São Basílio Magno e Instituto Vicentino de Filosofia, em Curitiba; presidiu o Instituto de Filosofia da Libertação (IFiL) no período de 1995 a 1998. Artigos e conferências do autor, citados nesse texto, estão disponíveis em www.milenio.com.br/mance.

1. Acerca desses estratagemas e outros recursos afins veja-se Arthur SCHOPENHAUER. Como vencer um debate sem ter razão. TopBooks, 1997.

2. Sobre agenciamentos subversivos veja-se Félix GUATTARI. Revolução Molecular. Brasiliense, 1987 e "Subjetivação Subversiva" in Teoria e Debate, Ano N.12, p. 60-64. Sobre laços de realimentação em movimentos autopoiéticos de rede, veja-se Fritjof CAPRA. A Teia da Vida. São Paulo, Cultrix, 1997. Sobre nossa crítica a concepções equivocadas deholismo veja-se "A complexidade do Real e a Elaboração dos Conceitos - Uma crítica aos Holismos", que é o quinto item de nosso artigo "O Filosofar como Prática de Cidadania." http://www.milenio.com.br/mance/filosofar.htm.

3. Veja-se nosso artigo "Eixo de Lutas e a Central de Movimentos Populares". Revista de Cultura Vozes. N. 6, Ano 85, nov. 1991, p. 645-671.

5. Veja-se Arturo ROIG. "La ‘dignidad humana’ y la ‘moral de la emergencia’ en América Latina" in: Antonio SIDEKUM (org) Ética do discurso e filosofia da libertação - modelos complementares, Editora UNISINOS, São Leopoldo, 1994.

6. Genitivo e dativo são casos de declinação em certas línguas como latim, grego e alemão. Aqui apenas destacamos que essas funções, nos contextos a que nos referimos, são cumpridas, respectivamente, pelas preposições de e para. Veja-se Napoleão Mendes de ALMEIDA. Gramática Metódica da Língua Portuguesa. Ed. Saraiva, 1999, p. 97, 376, 378. Em nosso contexto, para (do latim, per + ad ) constitui o sentido de direção, destino ou fim.

7. Veja-se Lucia SANTAELLA. A Teoria Geral dos Signos - Semiose e Autogeração. São Paulo, Ed. Ática, 1995 e Charles Sanders PEIRCE. Semiótica e Filosofia , São Paulo, Editora Cultrix, 1972.

4. Veja-se Horácio CERUTTI GULDBERG. Filosofia de la Liberacion Latinoamericana, México DF, Fondo de Cultura Economica, 1983. Veja-se também nosso artigo "Práxis de Libertação e Subjetividade". Revista de Filosofia, Ano 6, N. 7, p. 81-109, jun. 1993. PUC-PR, Curitiba. Sobre a produção do conhecimento a partir da problematização da práxis e no movimento dialógico com atores nela envolvidos, veja-se Paulo FREIRE. Pedagogia da Esperança, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992