sexta-feira, 23 de abril de 2010

Afinal, o que é uma democracia sem direitos humanos?

Fatima Oliveira *

As polêmicas acerca do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, tão-somente uma diretriz de trabalho, provocam uma efervescência neuronal em quem tem deferência pela liberdade e a vê como um valor que perpassa todas as gerações de direitos humanos. 

Os "contra" se despiram da noção de pluralismo moral e fazem de conta que os direitos humanos não são protetores da humanitude, "apenas acobertam deliquentes sem colarinho; camponeses em busca de um naco de chão; gays e lésbicas que se amam, e mulheres que ousam exercer o direito de decidir" - todos "gentinha da pior laia", sem selo humano. É desfaçatez em demasia!

A Igreja Católica, despudoradamente, insiste em querer imprimir ao Estado brasileiro ares de teocracia católica e não contém o ranço histórico de desrespeito à pluralidade inerente à democracia. O que dizer de figuras que defendem o acobertamento de crimes horrendos, a maioria de domínio público, quando é dever de ofício, são pagas para tanto, defender a plenitude democrática? É o striptease em defesa da inimputabilidade de agentes públicos pelos crimes cometidos na ditadura militar de 1964 tentando acuar uma nação.

Indago ainda por que permitir, irresponsavelmente, que a imagem da instituição e um contingente expressivo das Forças Armadas, a ala jovem e outros tantos, na ativa e na reserva, que não praticaram crimes, têm de herdar a pecha de criminosos? É injusto que nos calemos para que assim seja. A Comissão da Verdade libertará os inocentes da pesada cruz dos crimes cometidos por alguns fascistas e sociopatas de outros naipes.

Li o mais que pude os contra-argumentos veiculados. Fui tomada de uma espécie de intolerância ética pela irracionalidade verborrágica dos "contra" e de enorme gratidão à democracia possível em que vivemos, que dá voz aos desatinados, escancarando entranhas e mostrando quanta quilometragem temos de percorrer até a democracia necessária a uma vida decente, de respeito irrestrito aos direitos humanos.

Na condição de trabalhadora que constrói as riquezas nacionais e tem consciência de que o dinheiro público, fruto de cada tostão do suor de quem trabalha, irriga abundantemente, direta e indiretamente, a Igreja Católica no Brasil, assim como garante a existência e os salários das Forças Armadas, eu me pergunto: por que alguns se acham no direito de entravar as liberdades democráticas? A história da humanidade demonstra que não se constrói uma democracia consistente sobre escombros de crimes hediondos impunes e valores teocráticos. Logo, considero que o contido no 3º Programa Nacional de Direitos Humanos é um passo decisivo para um país de fato de todos nós.

Ter ou não uma religião é um direito constitucional no Brasil. As religiões devem ser dignas dos papéis que as definem como religiões. Quando se metem a regulamentar a vida social e política para além dos seus fiéis e da garantia de livremente existirem, são nocivas à democracia. O que dizer de uma religião que vive de enganar, pois usa dupla identidade - ora se apresenta como religião, ora como Estado (o Vaticano) - ao sabor das conveniências, que prega e pratica a misoginia em pleno século 21; desconhece e desrespeita os direitos sexuais e os direitos reprodutivos de seu clero e de sua segunda divisão, as freiras, porém dá guarida a crimes clericais de natureza sexual; se comporta como se tivesse mandato divino sobre os corpos das mulheres, e ainda quer que as leis de um país laico sigam sua doutrina?

Que ridícula!
* Médica e escritora. É do Conselho Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução e do Conselho da Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe. Indicada ao Prêmio Nobel da paz 2005.

Fonte: http://www.vermelho.org.br/coluna

O Vaticano arde nas labaredas do inferno por causa da pedofilia

Fatima Oliveira *

O papa está numa encruzilhada e terá que abrir os arquivos

"Papa convoca bispos da Irlanda para discutir escândalos de pedofilia"; "Papa diz a bispos irlandeses que pedofilia é crime hediondo"; "Vaticano cria ‘muro de silêncio’ sobre abusos, diz ministra alemã"; "Igreja holandesa anuncia investigação sobre abusos contra menores"; "Arquidiocese nega que papa tenha ajudado padre acusado de pedofilia"; "Vaticano critica ‘tentativas agressivas’ de envolver papa em escândalo"; "Líder católico da Irlanda pede perdão por proteger padre pedófilo"; "Papa pede desculpas às vítimas de padres irlandeses pedófilos"; "Vaticano ignorou caso de padre que molestou mais de 200"...

Eis uma pequena amostra de manchetes sobre pedofilia clerical de 15.2 a 25.3.2010, data em que outra bradava: "Escândalos podem forçar papa a abrir arquivos secretos, diz vaticanista". É esperar para ver o balancê da nau de São Pedro no mangue em que se encontra a credibilidade moral do Vaticano. Um chamado à responsabilidade não absolverá o papa Bento XVI, que foi prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) - antigo Tribunal do Santo Ofício, ou Inquisição, que zela "pela ortodoxia da Igreja Católica e pelas questões disciplinares" - de 1981 até 2005, quando foi eleito papa.

Conforme o vaticanista Marco Politi, "o monsenhor Charles J. Scicluna, promotor de Justiça da CDF, afirmou que houve 3.000 denúncias de abusos contra menores nos últimos dez anos. O que aconteceu com essas denúncias? Quantas foram julgadas? Quantos religiosos foram considerados culpados e quantos foram punidos? É preciso dar explicações e não admitir mais que os casos sejam ocultados...

O papa está numa encruzilhada e terá que abrir os arquivos secretos da CDF se quiser ser coerente com a transparência que defende... O papa disse que deve haver punição e que as vítimas não foram ouvidas. Deve então ser coerente com essa linha e abrir os arquivos. Tendo feito uma carta tão rigorosa e transparente, ou volta atrás sobre a transparência ou deve ir até o fim... O furacão da pedofilia, depois dos Estados Unidos e da Europa, chegou na Alemanha, pátria do papa, depois na diocese do papa, agora dentro do Vaticano, na Congregação da Doutrina da Fé, onde o cardeal Joseph Ratzinger foi prefeito, apontando para a sua responsabilidade direta".

Há impeachment de papa? Renúncia? Ou só nos resta lavar as mãos, dando uma de Pilatos? Durante 24 anos, o cardeal silenciou sobre a pedofilia clerical! Agora, que é infalível, não pode ser responsabilizado? É um alento que na declaração, divulgada após o encontro com os bispos irlandeses, conste que, "de sua parte, o santo padre observou que o abuso sexual de crianças e jovens não apenas é um crime hediondo, mas também um pecado grave que ofende a Deus e fere a dignidade da pessoa humana criada à Sua imagem". É um discurso significativo. Mas palavras são palavras. Faltam os gestos para demonstrar ao mundo que rompeu com um dos malditos signos da dupla moral sexual: dar guarida a crimes clericais de natureza sexual. É o mínimo esperado, já que a pedofilia clerical e a omissão do Vaticano diante dela sempre andaram de braços dados.

No prefácio do meu romance "A hora do Angelus" (Mazza Edições, 2005), digo que "é uma história que acontece com mais frequência do que se pensa. Ainda que o roteiro que estrutura a história seja uma imaginação da autora, o relato está entremeado de reflexões pontuais sobre omissões do clero romano diante do assédio e do abuso sexual, assim como da pedofilia - milenarmente praticados por padres".

Publicado em: 30/03/2010
FONTE: www.otempo.com.br/otempo/colunas/?IdColunaEdicao=11255

* Médica e escritora. É do Conselho Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução e do Conselho da Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe. Indicada ao Prêmio 
Nobel da paz 2005.

Fonte: http://www.vermelho.org.br/coluna

A imanência e a transcendência das coisas e da vida no sertão

Fatima Oliveira *

É, como dizem os rosiólogos, uma paisagem mental perene

De vez em quando, indagam se as crônicas que escrevo são memórias ou ficção. São memórias. Jamais escrevi ficção em qualquer das 419 crônicas publicadas em O TEMPO, incluindo a de hoje. A pergunta tem o poder de me fazer refletir sobre o ofício prazeroso de escrever. Como surge uma crônica? Não sei. Costumo anotar e guardar quando vem à minha mente algo interessante. O assunto aparece, germina, brota e amadurece. Às vezes, demora; às vezes, "encroa" e não sai nada; outras, de uma sentada jorra uma crônica inteirinha. É um processo inexplicável. E assim a vida de escrevinhadora corre.

Adoro escrever sobre a minha meninice. Guardo lembranças calientes. Tive uma infância e adolescência felizes, idílicas até. Tendo sido uma criança venerada, por ser primogênita e primeira neta, nascida de filha única, afilhada dos avós maternos, fui muito mimada, mas educada para ter autonomia. Achava a "Carta de ABC" fascinante e pedi para ir para a escola! Desabrochei muito estudiosa e adorava ler, ler e ler... Foi a sede de saber que fez com que, aos dez anos, fosse "mandada" estudar longe de casa, "lá no Padre Macedo" (Colinas, Maranhão). Não havia mais o que estudar em Graça Aranha. Era 1964.

Desde então, o convívio presencial com a minha família foi apenas nas férias escolares. Saí de casa aos dez anos e nunca mais voltei. Deve haver algo extremamente forte, construído nos dez primeiros anos de minha vida, e suficientemente sólido, que se mantém no campo dos valores morais, do apego à gente e às coisas do sertão, que evidencia que ter vivido ali nos marca para sempre. Costumo dizer que o sertão que conforta e acaricia o meu viver é, como dizem os rosiólogos, uma paisagem mental perene, que nutre a minha vida e a minha produção literária. Há algo de imanente ao sertão que não nos larga nunca e nos acompanha o tempo todo.

Quando fui a Nova York a primeira vez, era 2005, com mil e uma coisas para ver, eu quis ir à Body Shop, de Anita Roddick, só para mirar os sabonetes de óleo de coco de babaçu, lá do Maranhão, pois sei o que é ser uma quebradeira de coco! E, à beira do lago Michigan, em Chicago, enquanto minha filha Débora fotografava aquele mundão de água, a imagem que me veio foi do açude de minha terra e das mulheres lavando roupa...

É pra rir, não é? Eu também ri, e muito, só de pensar que, se tivesse me afogado ali, não estava contando a história. Quando tinha oito anos, fui levar almoço para mamãe, que estava lavando roupa no açude. Aproveitando que ela estava distraída no maior papão, eu "tibum!" no açude! E fui nadando rápido, pretendendo chegar a um toco de palmeira, de onde as pessoas adultas davam saltos mortais e "tomavam pé"... Não sabendo nadar direito, e nem era acostumada a nadar ali, comecei a beber água: subindo e descendo, subindo e descendo... Fui salva por uma das lavadeiras.

Recordo-me de mamãe com um chicotinho de fedegoso me batendo, e eu vomitando até as tripas, enquanto dizia: "Pega tua bicicleta e chispa pra casa, menina atentada!" Ah, isso eu era! Mamãe nunca mais lavou roupa no açude. Foi proibida. Papai dizia que ela não precisava, já que tinha lavadeira. Anos depois, perguntei por que ela gostava de lavar roupa no açude. Respondeu que "era um divertimento". O açude era um ponto de encontro das mulheres, até daquelas que, de vez em quando, usavam a desculpa de lavar roupa só pelo prazer da muvuca. Bonito, não é? Mas lembrar disso à beira do lago Michigan tem dimensão transcendental.

Publicado em: 06/04/2010
www.otempo.com.br/otempo/colunas/?IdColunaEdicao=11317


* Médica e escritora. É do Conselho Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução e do Conselho da Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe. Indicada ao Prêmio Nobel da paz 2005.

Fonte: http://www.vermelho.org.br/coluna

Profetas da Floresta

Moises Diniz *

Falar de uma religião é como interpretar a palavra de Deus, é como decifrar vontades divinas e dialogar com os anjos. Imagine falar de três. Por isso vou aqui falar dos homens, de carne e osso, na sua dor, nos dias de frio, fome, desejos, solidão, calor, sofrimento, na sua humanidade.

Mestres Irineu, Daniel e Gabriel, profetas da floresta, antes de tudo, eram homens, na sua beleza e na sua perversão, submetidos aos sofrimentos da carne, como nós, como qualquer um, como Buda, como Maomé, como Jesus.

Sim, como Jesus, fundador do Cristianismo. Na época do rei Herodes, o anjo Gabriel aparece a Maria na cidade de Nazaré, virgem e noiva de José, e anuncia que ela viria a conceber do Espírito Santo e que daria ao seu filho o nome de Jesus. Jesus era um menino de prótons, neutros e elétrons. Uma criança constituída de átomos eternos, a brincar com os quasares como se fossem pedaços de gesso.

Homens de carne e osso, como Mestre Irineu, fundador do Centro de Iluminação Cristã Luz Universal - Alto Santo. Filho de ex-escravo, guerreiro das estradas de seringa, em Xapuri, Brasiléia, Sena Madureira, Rio Branco. Irineu Serra cortou seringa na terra de Chico Mendes.
Irineu Serra trabalhou com o Marechal Rondon. Se tivesse sido 15 anos antes, teria trabalhado com Euclides da Cunha, na definição dos limites entre Acre, Peru e Bolívia.

Mestre Irineu fez a sua passagem em 1971, nove anos depois de instalação da Assembléia Legislativa do Acre. Quantos receberam título de cidadão acreano, mas esqueceram do negro maranhense que fundou essa bela religião da floresta. Homens submetidos à mortalidade, como Buda, fundador do Budismo, que nasceu no século VI aC., com o nome de Siddharta Gautama, filho do rei dos Sakias.

Foi assim que esse príncipe, aos vinte e nove anos, casado com a bela princesa Yasodhar, resolveu abandonar a casa no mesmo dia em que nasceu o seu filho Rahula, após ter concebido profundos pensamentos sobre a miséria humana.

Homens pecadores, como todos nós, como Mestre Daniel, fundador do Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz. Maranhense, foi construtor naval, cozinheiro, músico, barbeiro, alfaiate, carpinteiro, marceneiro, artesão, poeta, pedreiro, sapateiro e padeiro.
Vivei no bairro 6 de agosto e no Papôco, na beira do rio, zona de meretrício. Era um boêmio, bebia, fumava, escrevia canções de amor, dormia ao relento. Mestre Daniel era um profeta que estava nascendo dentro de um violão.

No poço das cobras Mestre Daniel recebeu a missão e em 1958 Mestre Daniel desencarnou.
Homens do seu tempo, como Maomé, fundador do Islamismo. Nascido em Meca, Maomé foi durante a primeira parte da sua vida um mercador. Tinha por hábito retirar-se para orar e meditar nos montes perto de Meca.

Os muçulmanos acreditam que em 610, quando Maomé tinha quarenta anos, enquanto realizava um desses retiros espirituais numa das cavernas do Monte Hira, foi visitado pelo anjo Gabriel que lhe ordenou que recitasse uns versos enviados por Deus, e comunicou que Deus o havia escolhido como o último profeta enviado à humanidade. Maomé deu ouvidos à mensagem do anjo e, após sua morte, estes versos foram reunidos e integrados no Alcorão.

Homens comuns, mas especiais, como Mestre Gabriel, fundador da União do Vegetal. Baiano filho do povo, tem que abandonar todos os laços familiares, porque soube ser solidário com um amigo, contra a injustiça.
Vem pro Norte, passa por Rondônia e vem trabalhar na seringa como um brabo, enfrentando até esporada de arraia. Em 1946 conhece sua amada, Mestre Pequenina e em 1961 Mestre Gabriel, soldado da borracha, funda a UDV no Acre. Em 1971 Mestre Gabriel fez a sua passagem, nove anos depois da instalação da Assembléia Legislativa do Acre.

Homens que fundaram uma religião. São como saliva de Deus, seus olhos mortais, seus ouvidos, compatriotas dos anjos, na pátria da eternidade e do sonho humano de viver sem dores.
Jesus, Irineu, Buda, Daniel, Maomé, Gabriel. Homens comuns que ultrapassaram o seu tempo, se fizeram maiores do que os obstáculos e todas as misérias humanas.

Capazes de vencer a dor, os vícios, as indecências, as fraquezas humanas. Homens que se fizeram próximos dos anjos. Homens que, aqui na Amazônia do Brasil fundaram uma religião e fizeram homens e mulheres se tornarem melhores, mais fraternos, mais irmãos.

Gabriel, Irineu e Daniel ficaram próximos das dores humanas, sentiram o odor da carne e todos os seus incensos, provaram do vinho profano e abriram suas almas para as aventuras da mortalidade, apalparam a pele áspera das árvores, dos cipoais e a pele macia das mulheres amazônicas, suportaram o calor do sol e o frio das madrugadas, a sede e a fome, as doenças da época, os desejos de adolescente e os sonhos de adulto.

As mães de Gabriel, Irineu e Daniel sangraram no parto e os três Mestres nasceram cobertos de sangue como toda criança, um instrumento rústico cortante separou os seus umbigos do corpo e uma palmada carinhosa arrancou-lhe o primeiro soluço de choro.

A comida que eles consumiam se decompunha no estômago e ele precisava se desfazer delas, urinar, limpar-se, se vestir. Os Mestres Gabriel, Irineu e Daniel eram humanos como todo e qualquer homem da Terra e seus desejos seguiam a lógica da mortalidade. Eles eram homens, com todas as necessidades que acompanham a nossa espécie desde os primórdios.

Gabriel, Irineu e Daniel eram mortais, dotados de todas as habilidades humanas e perseguidos, como pássaros feridos, por todas as serpentes que infernizam os homens, especialmente aqueles que sobrevivem do trabalho de suas próprias mãos e, como herança do Éden perdido, comem do suor do próprio rosto.
Nossa homenagem a esses homens, que apesar de toda montanha da mortalidade sobre os seus dias, foram capazes de se tornarem anjos.

Nossa reverência aos queridos Mestres Gabriel, Irineu e Daniel.

Nota: discurso que proferimos na sessão especial da Assembléia Legislativa do Acre, proposta por nós, em homenagem aos mestres fundadores das religiões que têm a ayahuasca como sacramento.
* Neto de índios Ashaninkas, ex Irmão Marista, formado em pedagogia e
deputado estadual pelo PCdoB no Acre.

Fonte:http://www.vermelho.org.br/coluna

“Procurando Elly”

Cloves Geraldo *

Escolha punida
O direito de a mulher escolher seu companheiro é o centro do drama dirigido pelo iraniano Asghar Farhadi

Com economia de meios e incidentes encadeados de forma a criar uma multiplicidade de climas, o diretor iraniano Asghar Farhadi põe o espectador frente a vários caminhos que, no final, ficam abertos. Por mais que ele, espectador, tente aceitar o desfecho que o filme lhe apresenta, fica com a impressão de que ele está subentendido. Ou seja, o que Farhadi quer dizer está para além da tela. Nisto se constitui o achado deste “Procurando Elly”. Em certo momento, dá para fazer paralelos com os crimes praticados contra a mulher no Brasil, onde sua decisão de romper uma relação acaba pondo sua vida em jogo.

Percebe-se que na sociedade iraniana, mais rígida em seus códigos éticos e morais, Elly (Taraneh Alidousti) tem pouca ou nenhuma escolha, enquanto que no Brasil, com toda a “permissividade”, os registros de violência são ditados igualmente pela persistência de códigos patriarcais, machistas e reativos. Daí as semelhanças que vão surgindo ao longo do filme, pondo o espectador diante de um espelho de sua própria sociedade. Pois o que está em jogo nos entrechos que se encadeiam mudando a narrativa a todo instante é a procura desesperada pela identidade de Elly.

Afinal quem é essa jovem professora que se transforma ora em vítima, ora em culpada? Os entrechos vão colocando ao longo do filme as diversas visões dos personagens, masculinos e femininos, compondo um mosaico que no final dará uma idéia de quem é Elly, mas não suas reais intenções. Nisto se constitui a beleza deste “Procurando Elly”. Ela é quase um esboço de personagem. Aparece não em sua intensidade, mas em fios, em instantes, como quando solta papagaio com as crianças na praia, ou impaciente dizendo à sua amiga Sapideh (Golshifteh Farahani) que tem de voltar logo à Teerã.

Elly simboliza mulher iraniana

É tudo que se vê dela. Sua inquietação é tal que o espectador desconfia que ela seja ligada a alguma organização política contraria ao regime dos aiatolás. E tem uma tarefa urgente a executar não podendo mais desfrutar o feriado com Sapideh e os três casais de amigos no litoral de Teerã. Principalmente Ahmed (Shahab Hosseini), que veio da Alemanha para com ela ficar noivo. Um fio que uma vez puxado vai trazendo complicações de toda espécie para gerar uma confusão tal que o grupo antes unido se desestrutura. Farhadi dota-o de várias rodilhas, que se prendem à velha casa de praia rústica, vazia, cheia de partes quebradas; à praia de areia suja, às marés revoltas, às tentativas de Sapideh de  mantê-la junto deles, uma vez que precisa dela, Elly, para o feriado ser completo.

Um incidente irá desencadear uma série de mal entendidos, a ponto do que era equilíbrio se tornar seu elo mais fraco: a absorção de Elly pelo grupo. O drama familiar, com seus incidentes normais, vira, de repente, pesadelo. Elly desapareceu e a tragédia assume outro caráter. Farhadi constrói e desconstrói ao mesmo tempo todo arcabouço dramatúrgico do filme de suspense. Por que ela desapareceu torna-se mais importante do que explicar como isto se deu. Elucidar este mistério poderá livrar Sapideh, que organizou o noivado dela com Ahmad, de ser acusada de cumplicidade com Elly.

Diretor deixa espaço para espectador pensar

É então que Farhadi usa os entrechos para descontruir o que o espectador acha que está entendendo. Não basta Sapideh revelar as razões de Elly para romper uma relação que não mais atende a seu desejo, é necessário introduzir outro personagem para o espectador compreender o que ele, Farhadi, quer dizer. O jovem Alireza, quase em pânico, completará com seu comportamento o que ele, diretor, quer dizer ao espectador: toda esta confusão se deve única e exclusivamente ao papel da mulher na sociedade iraniana. Até esta conclusão, o espectador terá puxado vários fios, pistas falsas, choques de casais – de Amir com Sapideh, de Spyman com Shohreh -, buscas de Ahmed e Nauzidehr e do desespero de Sapideh, acusada de ter causado todo o sofrimento do grupo.

No final, quando estiver deixando o cinema, o espectador ainda estará montando em sua cabeça este mosaico de pistas. Do incidente na praia, que levou todos a procurá-la, até a chegada de Alireza, “Procurando Elly” não tem nada demais. Usa poucos cenários, a casa em reforma, metáfora sobre a sociedade iraniana, diversos personagens, e encadeia os entrechos com competência. Desta forma, seria mais um drama familiar que vira um bom filme de suspense. Só isto. O que o torna diferente, cheios de nuanças, entrechos criativos, são suas elipses, o subentendido, o que deixa para o espectador preencher. A chave para isto é o diálogo de Alireza com Sapideh: “Só me diz uma coisa. Ela falou que gosta de mim? Sim ou não? – Sim”, responde Sapideh. Toda a trama do filme é traduzida neste diálogo (o espectador sabe se é mentira ou não).
Todo o arcabouço moral se perpetua. E apenas Elly e Sapideh são punidas.


Procurando Elly” (“Darbareye Elly”). Drama. Irã. 2009. 119 minutos. Roteiro/Direção: Asghar Farhadi. Elenco: Golshifteh Farahani, Taraneh Alidousti, Shahab Hosseini, Merila Zarei, Peyman Moadi.
(*) Urso de Prata no Festival de Berlim, 2009.
* Jornalista e cineasta, dirigiu os documentários "TerraMãe", "O Mestre do Cidadão" e "Paulão, lider popular". Escreveu novelas infantis,  "Os Grilos" e "Também os Galos não Cantam".

Fonte: http://www.vermelho.org.br/coluna

quinta-feira, 22 de abril de 2010

A Reconstrução do Imaginário Socialista

Leandro Alves * 
"Nada é impossível mudar.  
Desconfiai do mais trivial,  
na aparência singelo.  
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.  
Suplicamos expressamente:  
não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,  
pois em tempo de desordem sangrenta,  
de confusão organizada,  
de arbitrariedade consciente,  
de humanidade desumanizada,  
nada deve parecer natural  
nada deve parecer impossível de mudar."  
Bertolt Brecht
Ensinamentos do primeiro ciclo das revoluções socialistas

O século XX deu inicio ao primeiro ciclo de revoluções socialistas. Muito se passou desde a Revolução de Outubro. Muito se avaliou e muito ainda tem que ser avaliado, mas algumas conclusões já podem ser extraídas dessas experiências: i) as experiências que ocorreram no século XX foram sim experiências socialistas. Os erros e insuficiências não descredenciam os feitos diretos e indiretos das revoluções socialistas.

Os precursores do Socialismo deram os primeiros passos de uma longa caminhada. Nosso ideal é superior ao do capitalismo, pois é inclusivo e igualitário; ii) a construção do socialismo deve ser obra dos trabalhadores e das massas populares, a complexidade da luta política não deixa mais espaço para que pequenos grupos cheguem ao poder sem amparo popular, a nova sociedade só se concretizará com o engajamento de um grande número de homens e mulheres; iii) não há modelo de socialismo, não existem “receitas” preestabelecidas.

O Socialismo para ser construído em nosso País, deverá – para se concretizar - respeitar as particularidades históricas do Brasil e de seu povo; iv) a transição para o socialismo é um processo longo, com diversos processos de transformações lentas e cruentas, não cabendo voluntarismos esquerdistas, mas sim um conhecimento concreto da realidade que estamos inseridos. A derrota que sofremos no início da década de 90 está longe de representar o fim da história, representa sim, um novo ciclo de construção do socialismo, o inicio de uma caminha rumo à emancipação da humanidade.

Capitalismo incapaz e senil

Do ponto de vista dialético, um fenômeno só se desenvolve plenamente se não tiver obstáculos que impeçam seu desenvolvimento. Enquanto existia o campo socialista, o capitalismo teve de se conter. Não podia mostrar sua real face, o Estado de bem estar social é um exemplo de como o capitalismo teve de se adequar a uma realidade mundial que tinha como característica geral a bipolaridade política. Quando o campo socialista foi derrotado, o capitalismo pôde, sem um contraponto político-ideológico, mostrar sua natureza excludente. O resultado concreto é inegável: o capitalismo não foi capaz de resolver, sequer minimizar, os grandes problemas que a humanidade enfrenta.

Se não bastasse isso, o capitalismo atravessa uma das maiores crises de sua história. Não é uma mera crise cíclica, que possa ser contornada com medidas do tipo “keinisianas”, mas sim uma crise estrutural. Essa crise afetou o sistema do capital e não apenas o capitalismo. E não são poucos os que dizem que o pior ainda está por vir. Essa situação tem gerado um grande número de contestações. Elas espalham-se pelo mundo. Não se restringem mais a periferia do sistema. Entretanto, o Socialismo não esta na ordem do dia, pois embora em crise o capitalismo ainda é hegemônico política e culturalmente. Ainda estamos em um período predominantemente contrário aos interesses dos povos e da classe operária. É nessa conjuntura que devemos pensar a reconstrução do imaginário Socialista.


Nossa ação no dia a dia

Somos homens e mulheres que atuamos no cotidiano da luta política. Seja no parlamento, no sindicato, na associação de moradores, na universidade, enfim, nos diversos espaços da vida social e política de nosso País. A questão que se apresenta é que nessa ação cotidiana, somos “engolidos” pelas atividades práticas desses movimentos e acabamos nos afastando da luta política. Não é por acaso que o capitalismo se mantém “de pé” mesmo com a sua incapacidade de resolver os problemas da grande massa de seres humanos.
A luta econômica – por melhores salários, por moradia, por educação, entre outras -, não supera a questão fundamental do sistema: a produção social da riqueza produzida pela sociedade e a apropriação privada dessa riqueza. Confirmando essa assertiva, o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) elaborou um levantamento que aponta as desigualdades no Brasil. Um dos dados mostra que os 10% mais ricos concentram 75,4% da riqueza do país.

Realizar apenas a luta econômica possui um grande limitador. Ao lutarmos dentro das “regras do sistema” nosso horizonte se limita ao próprio sistema – por mais que se melhorem os salários a mais valia continuará a existir. A luta econômica isolada nos restringe apenas a uma oposição do sistema e não uma oposição ao sistema. Isso gera um limite histórico, por não conseguir sair dos marcos do capital acabamos dependendo do objeto que negamos, nossa ação fica restrita a ordem atual. Por isso devemos politizar nossa ação nos movimentos sociais, partir do específico – a luta econômica - e fazer a ligação com o geral – a luta política.

Luta política e unitária

Na atualidade há uma serie de movimentos sociais – movimento negro, mulheres, sindical, comunitário, LGBT, estudantil, ecológico, para ficar só nesses – que possuem suas especificidades, suas bandeiras de lutas, que tomadas isoladamente podem minimizar as mazelas impostas pelo capitalismo, mas nunca conseguirão ir à raiz do problema, ou seja, colocar em xeque as estruturas dessa sociedade excludente. As cotas – raciais e de gênero, por exemplo - são medidas compensatórias importantes para a realidade de exclusão que o capitalismo impôs aos negros e às mulheres em nosso País, mas só elas, desconectadas de um projeto político que tenha como fundamento o fim da exploração não conseguirão contribuir para a emancipação dos trabalhadores. Unir a luta econômica à luta política é elemento essencial por aqueles que almejam construir uma sociedade Socialista.

Precisamos, também, romper com a compartimentação que existe entre os movimentos sociais. A luta pela redução da carga horária de trabalho sem redução de salário dever ser uma luta de todos os movimentos sociais e não apenas do sindical. A luta pela igualdade de gênero deve ser pautada por todos os movimentos sociais e não apenas pelo movimento feminista. Renato Rabelo – Presidente Nacional do PCdoB – nos dá uma lição de sabedoria política, diz ele, que “o isolamento é o primeiro passo para a derrota”. Essa máxima deve pautar a ação de todos os militantes na atualidade, pois só com uma grande unidade conseguiremos acumular forças rumo transformação radical da sociedade.

Em síntese, é preciso unir, dentro de cada movimento social, as lutas imediatas à luta política, dando um rumo estratégico a cada ação tática. É preciso, também, unir os diferentes movimentos sociais, buscando unificação na ação cotidiana, construindo uma unidade solida para a defesa dos interesses das maiorias. Não há espaço para a luta despolitizada, para o isolamento político, nem para a compartimentação da luta para quem deseja edificar um caminho concreto para o fim da exploração. A elevação da consciência dos lutadores sociais através da politização das lutas cotidianas e da unidade entre os movimentos sociais será fator importantíssimo para o futuro da construção do Socialismo.

Novos agentes políticos

Além dos movimentos tradicionais, como o sindical - que deve ser o pilar de qualquer projeto socialista, pois é ele que enfrenta diretamente a contradição entre o capital e o trabalho -, o comunitário e o estudantil, apareceram novos lutadores sociais. São movimentos que carregam grande potencial de mobilização e contestação. Movimentos como o Hip Hop, Rádios Comunitárias, Comitês de Resistência Popular, os Centros de Educação Popular, Cooperativas de Trabalho, entre outros do gênero, nasceram de um vácuo existente nas favelas e vilas das grandes cidades. Esses movimentos conseguiram aglutinar um grande numero de pessoas que não participavam dos movimentos tradicionais, pois não estavam incluídos na ação desses movimentos. Os movimentos tradicionais não possuíam - e ainda não possuem - uma proposta organizativa voltadas para esses novos seguimentos. Precisamos romper esse obstáculo para a reconstrução de um novo imaginário Socialista. É necessário que criemos uma política para esses novos lutadores, pois eles não se organizam tradicionalmente em sindicatos ou associações similares.
Estes movimentos apresentam elementos similares em sua constituição, quais sejam, a solidariedade – ainda não é uma solidariedade de classe -, o inconformismo com a exploração, a negação do sistema capitalista, as diversas formas de expressão cultural como fator aglutinador e um contato com a realidade enfrentada pela maioria da população. Esses movimentos estão construindo uma nova perspectiva de ação das massas trabalhadoras e exploradas através da cultura popular como forma de resistência ao sistema capitalista, estão construindo uma nova forma de luta, a partir da cultura, da musica, da dança, da pintura, enfim da expressão artística e da união comunitária. Um projeto socialista precisa incluir esses novos agentes sociais, como forma de incluir e massificar a luta por uma nova sociedade.

Coerência e relevância política

A luta política apresenta-nos um grande número de possibilidades. Há caminhos fáceis como a atuação baseada apenas em discursos fáceis, ditos revolucionários, porem sem eficácia efetiva na vida dos trabalhadores e excluídos. Esse caminho é o mais utilizado por setores esquerdistas, pois qualquer um é “coerente” sem ter a pratica como critério da verdade, tendo como parâmetro apenas o discurso teórico.
Existe o caminho dos que se jogam nas questões imediatas, vivem correndo para “resolver” os problemas, alcançam um papel relevante em determinado período, mas perdem o rumo, pois suas ações não levam a transformação efetiva da sociedade.

O caminho para edificar um novo imaginário socialista é complexo e contraditório, pois exige que se atue no cotidiano, buscando – a partir das questões imediatas - um elo com a luta política, com a luta transformadora. Em outras palavras, é preciso ser coerente com o objetivo central – com a estratégia - sem perder a relevância política na atualidade. Essa é a tarefa de todos que desejam seriamente construir o socialismo em nosso País. Acumular forças com as lutas específicas, sem perder o norte, o objetivo estratégico: a construção de uma sociedade socialista.

Nada é impossível de mudar

Todos os dias somos bombardeados pela mídia, com mensagens de que o mundo sempre foi assim, que não há alternativa e que nada pode ser feito. Não podemos criar nenhum tipo de organização social melhor que o capitalismo. Só nos resta, então, nos adaptar a essa realidade e pronto.
Na verdade a vida não é bem assim. Do comunismo primitivo até os dias atuais, a única verdade que podemos extrair é a de que tudo pode mudar. E essa mudança se dá pela ação concreta dos seres humanos. O capitalismo foi um avanço em comparação com o feudalismo, já teve um papel revolucionário. Entretanto, há muito tempo perdeu esse caráter progressista e passou a ser conservador. As relações sociais que o capitalismo engendra já entraram em contradição com as forças produtivas da sociedade. A contradição entre produção social das riquezas e sua apropriação privada e entre anarquia das decisões na produção e a competição desenfreada são expressões claras dos limites do capitalismo.

A humanidade pode ir mais longe. Pode construir uma sociedade melhor, justa e solidária. Onde o ser humano seja o principal, onde o conhecimento fique a serviço da paz e do desenvolvimento de todos, onde a dignidade da pessoa humana seja um pilar intocável, onde a igualdade não seja mera retórica formal, mas se apresente no campo econômico, político e social. Para tanto precisamos enraizar o projeto Socialista no imaginário dos trabalhadores e trabalhadoras, das massas populares, dos homens e mulheres que almejam um mundo melhor.

A criação de um novo imaginário Socialista, só será possível se estiver permeada pela unidade política de todos os movimentos sociais, por uma concepção teórica antidogmatica, crítica e criadora, pela mais ampla participação popular, pela solidariedade, pelo conteúdo de classe e por um profundo amor pela vida humana. As condições objetivas para caminharmos nesse rumo já estão dadas, precisamos iniciar a edificação das condições subjetivas. Então, mãos a obra, pois nada é impossível de mudar.
* Leandro Alves é Servidor do Poder Judiciário Gaúcho, ex-assessor Sindical, ex-assessor Parlamentar. E-mail: leandroalvesrs@htmail.com
FONTE: http://www.vermelho.org.br/coluna

Nas eleições, se não acredita, eu vou sonhar pra você ver

Não era voto de cabresto, mas de consideração

Tá no sangue. Nas eleições acabo como em "Cantigas de Sabiá": "Xô meu sabiá, xô minha zabelê/ Toda madrugada eu sonho é com você/ Se você não acredita eu vou sonhar pra você ver". Eleição é festa. Tempo de sonhar sonhos possíveis. Papai, ao falecer aos 33 anos (1963), era, pela segunda vez, o "vereador do Braulino". Meu avô, o personagem político da família e da eterna confiança do deputado Sales Moreira Lima - dever moral que herdou do pai, o velho Bodô, meu bisavô, vaqueiro do deputado na década de 30.

Os Bodô votavam no deputado. Não era voto de cabresto, mas de consideração, coisa hoje muito esquecida. Honravam a memória do velho Bodô, homem de um tempo em que no sertão todo vaqueiro tirava uma sementinha de gado. Ter um gadinho, sina de quem gosta de leite mungido na porteira do curral e do cheiro de bosta de boi, perpassou todas as gerações do velho Bodô: filho, neto, bisneto, trineto e tataraneto (quarta geração de netos).

"Seu" Sales e Dona Lili, sua esposa, chegavam num Jeep. Era parar e o foguete correr solto. A casa enchia. Festança. Deixavam tudo "no jeito": dinheiro para transportar gente pra votar, o segredo de garantir votos naquela biboca. Tia Lô dizia: "Pobre andando de carro em dia de eleição é voto do ‘sinhô’ Moreira da Serra Negra". Uma vez ouvi meu avô dizendo: "Deputado, a comida é por minha conta. Mato uns garrotinhos com prazer pra garantir comida farta pros seus eleitores. Pra lhe eleger, aqui em casa todo mundo trabalha. Até minha neta ("euzinha" aqui...) já escreve os papéis pros eleitores. A gente daqui é de pouca leitura. Meus votos são certos. Palavra de Bodô".

É um diálogo que elucida o poder do dinheiro nas eleições. Já era proibido dar comida e transportar eleitores. Ninguém ligava. No quintal da vovó era feita uma latada. Um monte de mulheres preparando arroz, cozidão, panelada e "carne fresca sapecada na brasa" (hoje é churrasco!). Feijão? Jamais! Imagina dar feijão pra eleitor! Em Graça Aranha, a política era de alta temperatura e pressão. Fervia. Policiamento ostensivo - soldadinho para cima e pra baixo. Diziam que era para "guardar as urnas".

Uma vez prenderam um caminhão cheio dos Bodô do Centro do Hermínio. A mando do prefeito, Nacor Rolim, adversário do pai velho. Ele falou pra vovó: "Maria, cadê meu revólver?" Vovó despachou as crianças pra "Quinta do Braulino" (nome da nossa propriedade). Anos depois conversei com ele sobre o assunto. Disse-me que para "desprender" seu povo foi suficiente mandar um portador dizer ao prefeito que os Bodô eram homens de bem e nunca dormiram na cadeia, mas se ele quisesse um motivo pra um Bodô dormir engaiolado não soltasse o caminhão "incontinenti", palavra que ele usava muito, que significava: agora, na hora, já!

Mamãe recebia os caminhões, distribuía um papelzinho e levava o povo pra votar. Era o terror das seções eleitorais. Muito simpática, abordava mais mulheres, dizia: "Deixa ver se tá levando o papel certo". Se não era dos candidatos dela, bradava: "Num é esse não! Pega o certo!" E, de braço dado, ia com a pessoa até a entrada da seção. Boca-de-urna de 100%. Papai era dos mais votados. Ela sabia, certinho, os votos dele em cada urna! Dias antes, fazia serão escrevendo à mão os tais papeizinhos, acho que eram números, que no dia da eleição carregava dentro do sutiã. Ainda adora eleições, mas diz que hoje são sem graça. Tem razão. Impossível reproduzir a sua boca-de-urna.
Adoro eleições porque insisto em sonhar.

Publicado em: 20.04.2010
Fonte: www.otempo.com.br/otempo/colunas/?IdColunaEdicao=11435

 Fatima Oliveira *
* Médica e escritora. É do Conselho Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução e do Conselho da Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe. Indicada ao Prêmio Nobel da paz 2005.
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