domingo, 21 de agosto de 2016

Como funciona o bem-sucedido ensino técnico da Alemanha

'Sistema dual alemão, baseado em parceria com as empresas, exige boa formação tanto dos docentes de aulas teóricas como dos instrutores práticos'

Um dos países em que o ensino profissionalizante é, reconhecidamente, dos mais bem estruturados no mundo, a Alemanha não oferece um caminho fácil para quem quer se tornar docente na modalidade. Porém, aqueles que conseguiram trilhá-lo e chegar à docência na educação profissional dizem que o esforço vale a pena, corroborando a cultura germânica da recompensa à dedicação.
Isso acontece porque a etapa é a grande vedete da educação alemã. O sistema dual, onde estudam 90% dos alunos da educação profissionalizante, é uma referência de qualidade para outros países, sejam do 1o ou do 3o mundo, pois consegue formar alunos de bom nível de instrução tanto no que tange à cidadania, como também no que diz respeito a seus atributos para o mercado de trabalho. Talvez em especial nesse segundo quesito.
Para se ter uma ideia da potência da modalidade, 54% da força de trabalho de todo o país vem do ensino profissionalizante. Segundo o Departamento Federal de Estatísticas da Alemanha (Destatis), 2,5 milhões de alunos cursam atualmente a modalidade. Além disso, não apenas o Estado mas também as empresas têm um papel decisivo na formação do docente, o que coloca a profissão no centro de um sistema educacional organizado para ser a grande base de desenvolvimento econômico da Alemanha, num modelo com bons níveis de integração.
E, sim, as empresas têm voz e influência até mesmo nos currículos de formação docente. Para entender as motivações desse processo, é preciso antes conhecer o perfil do docente do ensino profissionalizante alemão. A docência do ensino técnico no país está dividida, basicamente, em duas figuras: o professor e o instrutor.
O primeiro é responsável pelas aulas teóricas, seja de disciplinas gerais, como alemão e inglês, ou específicas da área técnica. Já o instrutor é responsável pela parte prática. Só que esse tipo de docente não ensina na escola e não é contratado pelo Estado. Ele é um profissional de uma empresa privada.
No sistema dual, os alunos passam apenas entre um e dois dias na escola, aprendendo teoria com professores. No restante da semana, recebem treinamento prático em uma empresa, a título de estagiário remunerado. Ou seja, o instrutor é a figura responsável por ensinar, acompanhar e avaliar o aprendizado e desempenho do estudante durante a maior parte do seu curso no ensino técnico.
► Empresas em parceira com o Estado

A principal diferença do ensino técnico alemão em relação ao resto do mundo é a participação e influência das empresas em todos os passos da formação de um aluno dessa etapa do ensino.
Se hoje o ensino técnico é o grande motor da economia alemã, foi há mais de 40 anos que as mudanças começaram. Mais precisamente em 1970, com a fundação do Instituto Federal de Formação Profissional (Bibb).
O órgão, subordinado ao Ministério da Educação e Pesquisa, é composto por membros de associações patronais, sindicatos de trabalhadores e representantes do Estado. Em conjunto eles definem e atualizam currículos, elaboram regulamentos e garantem que o aluno está recebendo a educação certa para entrar no mercado de trabalho e ser o tipo de profissional de que o mercado precisa.
As atualizações de currículo costumam acontecer a cada 5 anos. Caso um currículo seja considerado defasado por alguma empresa, ela pode pedir no Bibb uma mudança. “Essa petição é discutida com todos os membros da área. Quando se chega a um consenso, as mudanças são feitas sem perder tempo”, explica Diana Cáceres-Reebs, diretora do Bibb.
Por esses motivos não há lei que exija a participação das empresas no sistema dual. Todas as 447 mil que fazem parte são voluntárias. Elas são responsáveis por 564 mil vagas preenchidas e arcam com todas as despesas do aprendiz, que recebe em média 800 euros (R$ 3.200) por mês para aprender enquanto trabalha.
► Tornando-se um professor

Qualquer pessoa que quiser se tornar-se professor do ensino técnico alemão precisa ter um diploma universitário. Há uma pequena exceção, para os chamados “professores práticos”, que dão aulas-suporte específicas na escola a alunos que precisam de reforço. Ainda assim, esse profissional, que é uma minoria no cenário, precisa ter se formado em uma escola técnica, deve ter experiência de vários anos na profissão, passar por um exame de competência e frequentar um curso sobre pedagogia antes de poder ter acesso à sala de aula.
Para a maioria, o caminho é composto por três fases. A primeira envolve o curso universitário, no qual o futuro professor precisa atender disciplinas correspondentes à área que pretende seguir. Mas para escolher a área que deseja é necessário, além do certificado que permite a entrada na universidade, ter experiência ou treinamento comprovado na área. Assim, essa medida faz com que o perfil dos professores de ensino técnico na Alemanha seja de ex-alunos do sistema dual que resolveram seguir a carreira docente.
Além das aulas da área principal, o universitário também precisa frequentar aulas de psicologia e pedagogia. Algumas áreas de estudo e estados do país também exigem que tenha uma experiência prática, dando aulas.
Todo esse período costuma durar entre quatro e cinco anos e é concluído somente após o estudante passar por um exame organizado pelo Estado, que avalia o nível de aprendizagem.
A segunda fase é um estágio probatório, conhecido como Referendariat, no qual o novo professor acompanha as aulas de outros professores, ensina com a companhia de um veterano e, no final, dá aulas sozinho em escolas designadas. Essa fase dura entre um e dois anos e só é concluída quando o professor passa por um segundo exame organizado pelo Estado.
A terceira e última fase dura até o final da carreira do professor e consiste em garantir que o docente receba formação continuada enquanto estiver exercendo a profissão.
Cada um dos Länder, a versão alemã dos estados, é responsável pela formação continuada de seu corpo docente e as regras e objetivos são expressos por lei. Ou seja, a atualização de um professor de ensino técnico na Alemanha não é somente incentivada, como também obrigatória. Só que, em contrapartida, o Estado é obrigado a assegurar a oferta de capacitação.
Os cursos dessa fase da formação acontecem em institutos estabelecidos pelos estados, porém subordinados ao Ministério da Educação. As escolas também precisam organizar eventos. Há grupos de estudo, seminários, colóquios e cursos de formação a distância, em geral com conteú­dos que abordam novas tecnologias, atualização pedagógica e mudança de currículos.
► Formação do instrutor

No caso da formação do instrutor não há exceção de ordem alguma. Todos são obrigados a ter diploma universitário. Mas, dependendo do tamanho da empresa responsável pela contratação do estudante, esse profissional pode ter mais de uma função.
Em empresas pequenas, que contam com poucos estagiários, geralmente há um profissional que adquire também a função de instrutor. Já em grandes empresas, há departamentos e profissionais específicos que são responsáveis somente pelo treinamento.
Só que, seja primeira ou segunda função do profissional, o caminho para ser instrutor também é bastante restrito. Conforme o Ato de Educação Vocacionada e Treinamento, uma lei federal, instrutores precisam ser considerados competentes na área em que atuam e na capacidade de ensinar.
E para que essa qualificação seja atestada, é necessário ser aprovado em um exame que avalia tanto a competência específica, formal, na área quanto o conhecimento de teorias educacionais. Como muitos instrutores começam atuan­do em outra função, é comum as próprias empresas pagarem pelo treinamento para que eles passem a dominar os conteúdos voltados ao ensino.
Já a formação continuada não é uma obrigação prevista em lei para os instrutores. Porém, como eles estão diretamente ligados ao mercado, onde sempre há grande demanda por inovação, a atualização acaba se tornando inerente ao ofício, especialmente quando trabalham nas grandes empresas, que costumam organizar cursos nos próprios departamentos.
► Treinamento de qualidade

E para os que pensam que dessa maneira os alunos do ensino técnico alemão podem ficar relegados a maior parte do tempo a um docente sem tempo para ensinar com competência, ou que empresas aproveitam a brecha e acabam colocando jovens estagiários no lugar de profissionais com mais tempo de estrada, a diretora de projetos de cooperação do Instituto Federal de Formação Profissional (Bibb, em alemão)Diana Cáceres-Reebs garante que essas possibilidades não estão no horizonte da educação germânica.
De acordo com a diretora, há vários motivos que sustentam o interesse das empresas em fornecer o melhor treinamento possível (leia texto na pág. 45), mas a supervisão formal é feita pelas Câmaras de Indústria e Comércio (IHK, na sigla em alemão). Essas câmaras são responsáveis por monitorar a qualidade do treinamento nas empresas, seguindo as diretrizes do Treinamento para Aptidão do Treinador.
Diana Cáceres-Reebs ressalta ainda um ponto que acredita estar entre as chaves para que o sistema dual alemão tenha há tanto tempo o êxito que vem tendo. “Competência na Alemanha é vista como uma ação integral que se refere à capacidade e vontade de todos em comportar-se de forma atenciosa e socialmente responsável”, explica. Ou seja, trata-se de uma engrenagem que, para funcionar, precisa assegurar-se de que todas as peças que a compõem estarão devidamente preparadas para desempenhar sua parte.
Tranquilidade para lecionar

Benjamin Döhler é um professor do sistema dual da Alemanha. Formado em economia, foi aluno do próprio sistema e trabalhou em um banco enquanto era aprendiz. Atualmente ele dá aulas de negócios e inglês na FLB na cidade de Bonn, antiga capital do país, posto que ocupou até a reunificação das duas Alemanhas.
A escola tem 2.700 alunos e Benjamin ministra oito aulas por semana, em classes que têm entre 20 e 25 alunos. Suas horas-aula, assim como as da maioria dos outros professores, não ultrapassam 20 horas semanais. O restante é para organizar conteúdos e outras atividades.
O professor está bastante satisfeito com a carreira. Sempre mesclando tranquilidade e animação em sua fala, ele afirma que o salário é bom e que não vê motivos para um segundo emprego. “Na realidade, acho que aqui se quisermos um segundo emprego precisamos pedir autorização do governo. Mas não lembro de nenhum colega que tenha ou queira isso”, comenta.
Suas aulas são sempre baseadas no que os alunos podem encontrar no ambiente de trabalho, para tentar tornar a teoria mais atraente, algo nem sempre tentador para alunos do ensino técnico.
Para Benjamin, é exatamente o fato de oferecer ao aluno a possibilidade de teorizar na escola sobre aquilo que coloca em prática em suas imersões no trabalho que faz do dual um sistema único. “Gostava muito disso quando era estudante. Por exemplo, se aprendia sobre os detalhes dos cheques em um dia, no seguinte os estava processando no banco. É isso que faz a diferença”, conclui.
► Um sistema diferente

Diferentemente do que ocorre no Brasil, na Alemanha nem todos os caminhos do ensino secundário permitem aos alunos o ingresso posterior em universidades. Com pequenas variações entre os 16 estados, cujos sistemas educacionais são autônomos, as crianças ingressam em um dos três tipos de escola do secundário por volta dos 12 anos. Para a definição de que escola frequentará, o aluno depende de seu desempenho no ensino fundamental e de uma avaliação conjunta entre família e educadores.
Nas Hauptschulen, porta de entrada para o futuro ingresso no ensino profissionalizante, os alunos recebem uma formação mais geral, durante um período de cinco a seis anos; nas Realschulen, que não existem em todos os estados, essa formação básica é mais sofisticada, dando acesso a cursos tecnológicos ou a centros universitários; finalmente, nos Gymnasien, o aluno permanece por mais anos, ao final dos quais pode ter acesso às universidades, sendo que aqueles que têm melhor histórico escolar conseguem frequentar as melhores escolas.

Fonte: http://www.revistaeducacao.com.br

domingo, 7 de agosto de 2016

De tempos em tempos a plutocracia brasileira tenta um golpe

''O Brasil é palco de uma disputa entre o sonho de um país para a maioria e o uma elite da rapina que quer drenar as riquezas do país para o bolso de meia dúzia.''

A plutocracia brasileira (os 71.440 mil milhardários segundo o IPEA) possui pouca fantasia. Usa os mesmos métodos, a mesma linguagem, o mesmo recurso farisaico do moralismo e do combate à corrupção para ocultar a própria corrupção e dar um golpe na democracia e assim salvaguardar seus privilégios. Sempre que emerge uma democracia com abertura ao social se enchem de medo. Organizam um conluio de forças que envolve setores da política, do judiciário, do MPF, da PF e principalmente da imprensa conservadora e até reacionária como é o caso do conglomerado de O Globo. Assim fizeram com Vargas, com Jango e agora com Lula-Dilma. A sessão de 04/08/ no Senado, mostrou a farsa montada pela oligarquia que usou os senadores como os soldados civis previamente bem instruídos, para aplicar um funesto golpe contra a razão sensata e contra democracia.

Numa entrevista à Folha de São Paulo (24/04/2016) escreveu acertamente Jessé Souza, autor de um livro que merece ser lido, também com certa crítica, “A tolice da inteligência brasileira”(Leya 2015):”Nossa elite do dinheiro nunca sentiu compromisso com os destinos do país. O Brasil é palco de uma disputa entre esses dois projetos: o sonho de um país grande e pujante para a maioria; e a realidade de uma elite da rapina que quer drenar o trabalho de todos e saquear as riquezas do país para o bolso de meia dúzia. A elite do dinheiro manda pelo simples fato de poder “comprar” todas as outras elites”(Quem deu o golpe e contra quem).

No atual processo de impeachment à Presidenta Dilma contam com um aliado poderoso: o complexo jurídico-policial do Estado que substitui as baionetas. O vice Presidente usurpou o título de Presidente e montou um ministério de pantomima com vários ministros corruptos e reduzindo os ministérios, da cultura, da comunicação e da secretaria dos direitos humanos, dos negros e das mulheres, cortando de forma criminosa verbas da saúde, da educação, atacando os direitos dos trabalhadores, o salário mínimo, a legislação trabalhista, as aposentadorias e outros benefícios sociais, inaugurados pelos dois mandatos anteriores.

Por trás do golpe parlamentar estão estas forças citadas por Jessé Souza. Bem disse o Papa Francisco à Letícia Sabatella quando junto com uma famosa jurista teve, há dois meses, um encontro com o Papa em Roma, relatando a ameaça que corre a democracia brasileira. O Papa comentou:”esse golpe vem dos capitalistas”.

O fato é que estamos todos cansados de tanta corrupção, justamente denunciada e das delongas no processo do impeachment.

Ninguém sabe para onde estamos indo. Algo parece ficar claro que o design social, montado a partir do colonialismo e do escravagismo com as castas de endinheirados que se firmaram no poder seja na sociedade seja nos aparatos do Estado está chegando ao seu fim.

Em momentos de obscuridade como os atuais precisamos de uma grelha teórica mínima que nos traga luz e alguma esperança. Para mim serve como orientação Arnold Toynbee, o ultimo historiador inglês a escrever dez volumes sobre a história das civilizações. Para explicar o nascimento, o desenvolvimento, a maturação e a decadência de uma civilização usa uma chave extremamente simples mas esclarecedora:”o desafio e a resposta”(challenge and response).

Diz Toynbee: sempre há crises fundamentais no interior das civilizações. São desafios que exigem uma resposta. Se o desafio for maior do que a capacidade de resposta, a civilização entra num processo de colapso. Se a resposta é excessiva face ao desafio, surge a arrogância e o uso abusivo do poder. O ideal é encontrar uma equação de equilíbrio entre o desafio e a resposta de forma que a sociedade mantenha a sua coesão, enfrente positivamente novos desafios e prospere.

Voltando ao caso do Brasil: os grupos do dinheiro e do poder não conseguem dar uma resposta ao desafio que vem das bases que nos últimos anos cresceram enormemente em consciência e em reclamos de direitos. Eles, por mais que manipulem dados sabem que dificilmente voltarão ao poder central pela via da eleição. Daí a razão do golpe. Desmoralizados, não têm nada a oferecer ao novo Brasil que escapa de seu controle. Jânio de Freitas na FSP de 04/08 disse bem:” O impeachment é uma grande encenação. Uma hipocrisia política de dimensões gigantescas, que mantém o Brasil em regressão descomunal, com perdas só recompostas, se o forem, em muito tempo –as econômicas, porque as humanas, jamais”.

Apesar disso tudo, o legado da atual crise será provavelmente o surgimento de um outro tipo de Brasil, de democracia, de Estado, de formas de participação popular.

A dores do tempo presente não são as dores de um moribundo nas vascas da morte, mas as dores de um parto de um outro tipo de Brasil, mais democrático, mais participativo e mais sensível para superar a pior chaga que nos envergonha: a abissal desigualdade social. Um Brasil finalmente mais humano onde podemos ser singelamente felizes.

Leonardo Boff é articulista do JB on line e autor de “Depois de 500 anos que Brasil queremos”, Vozes 2000.

sábado, 23 de julho de 2016

PROGRAMA CUBANO REVOLUCIONOU A EDUCAÇÃO NA BOLÍVIA

O programa 'Yo Sí Puedo', importado de Cuba, conseguiu reduzir a taxa nacional de analfabetismo de 13,28% em 2011 para 3,8% em julho de 2014 - ensinou mais de um milhão de adultos a ler e escrever.

Por Fellipe Abreu e Luiz Felipe Silva, da Bolívia (texto e fotos)



"Ler e escrever era proibido. Eu morava no sítio em que meus pais trabalhavam e o patrão dizia que se eu fosse à escola cortaria minha língua." A história é lembrada pelo ex-policial Quintim Pulma, 83, vestido elegantemente em um paletó um tanto quanto surrado e um chapéu preto, o que concede ao simpático senhor um ar ainda mais altivo. "Hoje, sim, eu posso estudar para provar para eles que eu sou capaz", afirma após se levantar e se apresentar em nome de seus 38 colegas de estudo, todos idosos, do grupo rural de alfabetização da cidade de El Alto, vizinha à capital boliviana La Paz. 

O grupo de quase 40 estudantes da terceira idade é uma síntese dos mais de um milhão de adultos alfabetizados desde a implantação do programa Yo Sí Puedo (Sim eu posso, em tradução livre) na Bolívia, em 2006. A maioria é formada por mulheres, de origem rural, pobres, e acima de 50 anos. Foi focando neste perfil que o programa conseguiu reduzir a taxa nacional de analfabetismo de 13,28% em 2001 para 3,8% em julho de 2014. Este índice, certificado pela metodologia de fiscalização da Unesco, é suficiente para que o Estado Plurinacional da Bolívia seja reconhecido como um país livre de analfabetismo - o limite, para a Organização das Nações Unidas, é de 4% -, o que aconteceu em julho de 2014, quando a Unesco declarou oficialmente a entrada da Bolívia na ilustre lista de países que erradicaram o analfabetismo. Atualmente a taxa de analfabetismo no país é de 3,2%, segundo dados de março de 2015 do governo boliviano. 

► Baixo custo

A meta foi estabelecida como prioridade assim que o líder indígena Evo Morales foi eleito presidente pela primeira vez, em 2006. Atualmente ele cumpre seu terceiro mandato consecutivo, que dura até 2020. Ao tomar posse pela primeira vez, Morales estreitou relações diplomáticas e ideológicas com os chefes de Estado de Cuba, então Fidel Castro, e da Venezuela, o falecido Hugo Chávez. Da coalizão entre os "líderes bolivarianos" nasceu o projeto. A Venezuela colaborou com aporte financeiro e Cuba cedeu material e profissionais para implementá-lo na Bolívia. Além da própria metodologia Yo Sí Puedo, desenvolvida pela histórica pedagoga cubana Leonela Relys, falecida em janeiro de 2015. De acordo com os dados oficiais cubanos, o método já alfabetizou mais de oito milhões de pessoas em 30 países diferentes (leia mais sobre o método no box).

Na Bolívia, a primeira fase do programa durou apenas dois anos, mas foi a mais intensa e bem-sucedida. Entre 2006 e 2008, a Brigada Cubana-Venezuelana chegou em peso com recursos materiais como TVs, videocassetes, livros, apostilas etc., e técnicos, sobretudo professores, para treinar os mestres bolivianos e na adaptação das cartilhas ao contexto sociocultural do país - como, por exemplo, a tradução para cinco idiomas indígenas, caso do quéchua e do aimará. Nestes dois anos, o milagre aconteceu: a taxa de analfabetos caiu a 3,7% sob um custo operacional muito baixo, de 18 milhões de pesos bolivianos por ano, equivalente a pouco mais de R$ 7 milhões anuais - valor este mantido até hoje.

O programa então foi incrementado com sua segunda etapa, o Yo Sí Puedo Seguir. Neste segundo passo, os alunos já então alfabetizados - processo este que dura, em média, de três a seis meses - iniciam um ciclo de dois anos para se aprofundar em leitura, escrita e matemática, passando por bases das ciências naturais, e se formam no primário. Na Bolívia, o equivalente aos ensinos fundamental e médio (três anos) é proposto em dois ciclos de seis anos, o primário e o secundário.

► Foco no professor

Em 2012 veio o revés: o Censo daquele ano confirmou um aumento de 5,02% no número de analfabetos, índice que tirou a Bolívia do seleto grupo das nações sem analfabetismo. "Demos muita atenção ao programa de pós-alfabetização e negligenciamos esforços na alfabetização. Essa pesquisa nos mostrou que não se pode descuidar nunca", explica o ministro da Educação, Roberto Aguilar Gómez. Lição aprendida, o Ministério precisou investir mais no programa. Com o orçamento já estabelecido, a decisão foi aumentar o engajamento do professor, que no Yo Sí Puedo é chamado de "facilitador".

Como em qualquer programa de educação sério, a figura principal é a do professor. Neste caso, é ainda mais: os cerca de 18 mil facilitadores não recebem um centavo pelo trabalho de alfabetização. A recompensa é dada em benefícios como um plano de carreira bem estruturado, que prevê um salário mensal inicial de US$ 300 e um teto, a partir de 20 anos de profissão, de US$ 1.200. Há, principalmente, duas formas para os professores recuperarem o tempo investido no programa: aqueles que já dão aulas regulares sobem de nível (e de salário) a cada cinco anos, mas quem trabalha também como facilitador tem o tempo reduzido pela metade; outro caso é dos professores em começo de carreira, momento em que são exigidos dois anos de experiência na província (em regiões rurais do país) e para não precisarem sair de suas cidades, podem realizar esses dois anos no programa de alfabetização.

A partir de 2012, o governo passou a ser mais maleável quanto à concessão dos direitos e a permitir formatos de aulas ainda menos ortodoxas. Entre os professores aceitos no programa está Keyla Guzmán Vélez, que mora com o marido e o filho de três anos ao lado do Mercado Rodriguez, em um bairro de classe média de La Paz. Ela propôs e insistiu em um modelo de aula individual para cada uma de suas alunas (e seu único aluno homem) durante o horário de funcionamento do Mercado (termo em espanhol para feira de rua), entre suas barracas, frutas e legumes que as senhoras vendem.

► O programa nas ruas

Há duas maneiras de se formarem grupos do Yo Sí Puedo. Uma associação de cidadãos, como moradores de um bairro ou trabalhadores de alguma categoria, se reúnem e congregam pelo menos dez pessoas dispostas a estudarem. Levam, então, a proposta de grupo, com horário e local de aulas incluídos, para o comitê de alfabetização local - há pelo menos um em cada cidade do país - e o comitê procura um facilitador. Este é o modelo que gerou o grupo de idosos que abre esta reportagem.

Outra forma de um grupo de alfabetização nascer é a partir da vontade de um professor de formar uma classe. É o caso da citada professora Keyla, pioneira no modelo de aulas individuais. Recém-formada na graduação de "professora normalista titulada", como é chamado na Bolívia, Keyla optou pela carreira de professora quando o filho Josué ainda era bebê. Para ter direito à licença profissional, ela teria de prestar os dois anos de "província", quando o professor é obrigado a sair da cidade e dar aula no interior, e, consequentemente, se afastar do marido e, talvez, do filho. Decidiu, então, cumprir esses anos como facilitadora do programa contra o analfabetismo, mas teria, ela mesma, de encontrar seu grupo. E encontrou comprando maçãs.

A rua em que mora faz esquina com uma das maiores feiras de rua de La Paz. Notou que aquelas senhoras que passavam dois terços de seus dias trabalhando não sabiam ler, escrever e faziam contas abstratamente. Pronto: teria seu grupo de alfabetização à porta de casa. Não era, todavia, tão simples. As senhoras iniciavam suas atividades no Mercado Rodriguez às 5h da manhã e deixavam o local apenas às 19h, ou seja, dedicavam quase todo o seu dia ao trabalho. Resultado: não toparam formar classes após a jornada de trabalho ou abrir mão do horário de vendas - que mesmo tão longo, rende somente cerca de 200 pesos bolivianos (aproximadamente R$ 90 reais) por dia a cada uma.

"É preciso entender a rotina, a realidade da vida dessas mulheres. Elas acordam de madrugada, deixam os filhos sozinhos, trabalham realmente o dia todo e ainda precisam voltar para fazer as atividades de casa", explica Keyla. "Compreendi que sou eu que tenho de me adaptar a elas, e não o contrário", conclui. Então começou sua peregrinação, subindo e descendo a feira para encontrar quem topasse as aulas em um modelo flexível. Final feliz: um senhor e 25 senhoras aceitaram. Então, Keyla combinou com cada um a melhor hora para o atendimento e todos os dias percorria o mesmo percurso com uma lousa na mão e apostilas em uma bolsa. Parava 20 minutos em uma barraca, uma hora em outra, ensinava subtração aqui, vogais acolá, tudo entre cebolas, cenouras, maçãs e as onipresentes batatas. "Eu trabalho desde os oito anos. Meus pais morreram quando eu era criança e tive de trabalhar, e trabalho muito até hoje. Só pude começar a estudar por causa da nossa maestra, ela que veio até nós", conta Paulina Flores, alfabetizada aos 49 anos e que, agora, vislumbra realizar o sonho antigo de entrar em uma universidade e se formar fisioterapeuta.

Seja nos grupos grandes, como de El Alto, seja nas aulas individuais, como do Mercado Rodriguez, há algo de fundamental para o programa funcionar: dedicação dos alunos. As aulas não ocorrem todos os dias, então é preciso que os alunos sigam em casa todo o programa determinado pelos facilitadores e pela cartilha. O curso de alfabetização exige leitura diária, assim como a prática de operações numéricas de soma e subtração e exercícios de caligrafia. Na pós-alfabetização, curso que hoje contempla a maior parte dos alunos do programa, já se caminha em direção à interpretação de textos mais longos, à elaboração de frases complexas e à execução de multiplicação e divisão, além de noções básicas de geografia, história e biologia.

► Sistema de educação alternativa

O próximo passo, agora, é propor uma alternativa para que esses adultos possam seguir estudando. "É frustrante para eles chegarem até aqui, terem esperança de prosseguir e depois dependerem de colégios comuns para estudar", desabafa Keyla. "A alfabetização e a pós-alfabetização não são áreas de trabalho isoladas do sistema educativo, são parte da estrutura da educação alternativa, que é um subsistema dentro do sistema educacional boliviano. Muitos alunos que terminaram a alfabetização e a pós-alfabetização se incorporaram a programas de educação secundária de adultos. No ano passado, muitos desses estudantes conseguiram seus diplomas do ensino secundário, o que lhes dá a possibilidade de seguir os estudos em nível universitário", contrapõe Noel Aguirre, vice-ministro de Educação Alternativa da Bolívia. Segundo Noel, quando se trata de educação de adultos devem existir programas específicos para cada tipo de necessidade. No ano passado, a Associação de Trabalhadoras do Lar os procurou com um pedido: queriam se formar no ensino secundário, mas só tinham disponibilidade nas manhãs de domingo, quando não trabalham. "Nós adequamos o sistema e agora existem grupos de trabalhadoras do lar que estão estudando aos domingos", diz Noel.

Além disso, com o objetivo de adaptar ainda mais o programa à população boliviana, o governo concebeu projetos alternativos para incentivar os alunos a continuar em contato com os estudos, como é o caso das bibliotecas comunitárias, que são criadas próximas aos pontos de alfabetização espalhados pelo país, para que mesmo depois de formado o estudante não perca contato com a leitura. "Há dois anos realizamos o Festival Nacional de Canção Popular, que tem como objetivo que os participantes escrevam suas próprias músicas. Os melhores do país são trazidos a La Paz no Dia Internacional da Alfabetização (8 de setembro), quando eles têm a possibilidade de gravar suas músicas em estúdio. Além do resultado cultural, de valorizar as músicas típicas de cada região do país, esse projeto também se transforma em material educativo de apoio aos novos grupos de alfabetização e pós-alfabetização", conta Ramiro Tolaba, diretor-geral do programa de pós-alfabetização.

Avançar é a palavra de ordem na Bolívia. O avanço educacional é evidente, mas é preciso mais modelos de educação alternativa para permitir que o sonho de ler e escrever realizado por Dom Quintim e Doña Paulina sejam apenas o primeiro de tantos.

► Combatendo a evasão escolar

A educação infantil foi também prioridade no programa para erradicar o analfabetismo na Bolívia. O alto investimento em educação (8,7% do PIB, o maior da América Latina) é para que até 2025 o número de analfabetos no país esteja controlado entre 1% e 2%, índice atrelado a outro objetivo: atingir 100% de presença de crianças na escola. O caminho para isto tem nome: Juan Manuel Pinto.

O Bônus Juancito Pinto homenageia um herói boliviano que foi à Guerra do Pacífico com apenas 12 anos. Sua função é semelhante ao do Bolsa Família no Brasil: gratifica monetariamente as famílias que mantêm seus filhos na escola. O valor de US$ 30 é pago anualmente (no mês de outubro) para cada criança que comprovar cumprimento integral do ano letivo.

O resultado já veio: a taxa de abandono escolar caiu de 6,5% em 2005 para 1,7%, segundo dados de 2013. Na educação primária, a meta está em vias de ser atingida, com 99% de cobertura, mas no infantil e secundário, ainda falta: ambos estão com cerca de 70% de alunos com idade adequada.

► Relato de reportagem: uma nova chance para escrever a história da Bolívia

Apesar de ser uma vizinha próxima, a Bolívia é, na verdade, completamente diferente do Brasil em termos de cultura. Isso apenas começa a explicar o quão difícil é fazer uma reportagem como essa neste país tão pobre e tão amável.

Desde o começo, a lógica é diferente: para ter acesso aos grupos de alfabetização e às autoridades, é preciso mandar uma carta (sim, por correios) e aguardar a resposta oficial - que nunca veio. Chegamos lá, com a vontade de dar voz a essa gente que está pela primeira vez recebendo a atenção do Estado que faltou em suas vidas inteiras e, na raça e na vontade - e depois de muito chá de cadeira - conseguimos os acessos.

Iniciou-se, então, uma das mais impactantes experiências que vivemos como jornalistas até então. Não bastasse a história de dedicação da professora Keyla, que lutou até conseguir que seu método de aulas individuais fosse aceito e que pinçou uma a uma suas alunas - história essa que por si só já valeria a matéria e a ida à Bolívia -, conhecemos ainda um grupo de 39 idosos em processo de alfabetização.

Depois de quase duas horas de viagem até El Alto, o carro estacionou e vimos aquelas quase quatro dezenas de senhores e senhoras vestidos impecavelmente para mais uma de suas aulas. Arriscamos um cordial "buenas tardes, amigos" e, em contrapartida, fomos surpreendidos: todos, um a um, e mesmo aqueles com dificuldades de locomoção, se levantaram e nos deram um beijo e um abraço. Ouvimos de cada um deles um "gracias" por simplesmente estarmos lá.

Don Quintim Pulma veio até nós, como uma espécie de representante daquele grupo, para entender nossas motivações. Convencido de que estávamos lá para dar voz a eles, desabafou sobre sua infância pobre, sobre as ameaças que o proibiram de estudar e, emocionado, após dizer que havia estudado apenas para provar "a eles do que é capaz", concluiu: "já posso morrer em paz."

A aula nos permitiu ver que o método é eficiente, mas não milagroso. Funciona melhor com aqueles que já tiveram empregos que exigiram mais do lado intelectual ou que frequentaram esporadicamente a escola. E, sobretudo, funciona para os mais disciplinados: a lição de casa regular é fundamental para o bom andamento do curso. Todos se formam, mas alguns com muito mais condição de seguir que os demais. É, antes de mais nada, um programa para dar auto estima a esses adultos e idosos. Sentem-se mais valorizados, sentem-se, pela primeira vez na vida, parte de uma sociedade que os olha com atenção.

Voltamos a entender a Bolívia: é um país predominantemente indígena que foi governado por uma elite financeira e/ou militar até a ascensão de Evo Morales à presidência. Com erros e acertos, foi uma virada histórica para os povos vulneráveis do país. Os índios pobres que não podiam estudar quando crianças, agora podem aprender depois de velhos e até sonhar com um diploma universitário.

A partir deste momento em que a comunidade se abriu tanto para nós, ouvimos, lá do fundo da classe, uma senhora dizer: "No se percam", algo como "não nos esqueçam" - os olhos molharam e a voz tremeu. "No vamos perder", respondemos. E aqui está a reportagem, para que nem nós, nem vocês, esqueçamos deles.

► Leonela Relys: a madrinha da alfabetização

O nome de Leonela Relys Díaz está escrito nas cartilhas de pelo menos 30 diferentes nações, entre eles diversos países latinos (incluindo aí o Brasil) e africanos e até mesmo a Espanha e a Nova Zelândia. A pedagoga cubana é a principal responsável pelo desenvolvimento do método Yo Sí Puedo, que alfabetizou mais de 8 milhões de pessoas, de acordo com os dados oficiais de Cuba.

Leonela nasceu na cidade de Camagüey em 1947 e, ainda prestes a completar 15 anos, participou da primeira campanha de alfabetização da ilha sob regime comunista. Sete anos depois se graduou "maestra", carreira que seguiu nas salas de aula e na academia, até se formar doutora em ciências pedagógicas pela Universidade de Havana. Passou, então, 20 anos na direção nacional de estudos para adultos de Cuba - período em que desenvolveu uma série de projetos que serviriam de base para sua obra prima.

Após dois anos trabalhando com alfabetização no Haiti, retornou à terra natal com a missão de criar a cartilha de um programa massivo ensinar a ler e escrever em Cuba e que pudesse ser exportado. No mesmo ano, 2001, o Yo Sí Puedo foi colocado em prática da forma como o conhecemos. Seu trabalho foi reconhecido como Heroína da República em Cuba e também pela Unesco com a honraria com o Prêmio Alfabetização Rey Sejong, em 2006. Vítima de câncer, a pedagoga faleceu em janeiro de 2015.

► Yo Sí Puedo: o método

O programa de alfabetização regido da maneira original como proposto por Leonela Relys se completa após 65 aulas, divididas em três etapas primordiais: treinamento (10 aulas), ensino de leitura e escrita (42 aulas) e consolidação (13 aulas). As classes são ministradas por professores-facilitadores com o apoio de cartilhas e material audiovisual - cada país produz seu próprio modelo de conteúdo de acordo com a cultura local, mas atendo-se ao programa original cubano. Não há tempo mínimo e máximo para a graduação, embora o período considerado ideal seja de três meses.

Na primeira etapa (treinamento), os alunos são preparados a partir de suas capacidades orais e psicomotoras para iniciar o trabalho de leitura e escrita e, também nessa fase, são apresentadas as vogais e é feita a relação das letras com os números, símbolos geralmente já conhecidos dos alunos (A equivale a 1, B equivale a 2 e assim por diante).

No ensino de leitura e escritura avança-se na relação entre letras e números, formando sílabas e palavras. Neste momento do projeto, cuida-se com atenção do estudo das letras em si e dos fonemas. Encerra-se o ciclo com a consolidação, que é autoexplicativa: são propostos exercícios de fixação do que foi aprendido, como relacionar imagens e palavras, construção e compreensão de frases mais complexas e redação.

Estudantes aptos, então, seguem para o programa de pós-alfabetização Yo Sí Puedo Seguir.










quarta-feira, 13 de julho de 2016

O valor do reconhecimento

Diretor do Instituto Nacional de Educação (NIE) de Cingapura, Lee Sing Kong defende a valorização do professor como a principal forma de incentivar os educadores a prosseguir com a missão de transformar o futuro de uma nação


Por, Daniele Pechi

Há pouco menos de 60 anos, Cingapura deu início a uma reforma educacional que possibilitou a essa cidade-estado figurar no 2º lugar do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos) e transformar uma sociedade que possuía índices altíssimos de analfabetismo e abandono escolar em um fornecedor de mão de obra qualificada para empresas de todo o mundo.

Apesar de ter alcançado um nível de excelência educacional já no final dos anos 1990, o governo local promoveu recentemente, entre os anos de 2006 e 2015, uma revisão sistemática dos programas de formação de professores tendo por base orientadora o currículo nacional. Essa revisão originou um modelo batizado de Thinking teachers, cujo objetivo é desenvolver valores, habilidades e conhecimentos que respondam aos desafios da educação no mundo contemporâneo.

Além de diretor do organismo responsável pela formação local de professores, Lee Sing Kong é membro do Centro Nacional para Educação e Economia (NCEE) dos Estados Unidos, órgão que tem como objetivo analisar a economia e a educação no mundo, identificando os melhores caminhos para a política educacional dos Estados Unidos.

Em entrevista durante visita a São Paulo, Lee falou sobre outros avanços obtidos por meio da reforma educacional realizada em Cingapura, e ressaltou a importância da valorização docente como condição para o desenvolvimento de uma nação.

Desde o ano passado, a base nacional curricular brasileira está sendo elaborada e discutida em todo o país. Como esse processo foi desenvolvido em Cingapura?

Antes de falar sobre o desenvolvimento do currículo, gostaria de dizer que o nosso sistema funciona muito por meio da identificação do que os estudantes precisam aprender e que a organização de um documento como esse deve ser um processo muito participativo. No caso de Cingapura, consultamos educadores, gestores, organizações da sociedade civil e pais de alunos. Depois que recebemos todos os feedbacks, nós os cristalizamos e decidimos quais conhecimentos as crianças precisariam ter, em quais áreas e assim por diante. Então, o currículo, no fim das contas, é o documento em que constam os conceitos fundamentais com os quais nossos alunos devem ser educados antes de chegarem à universidade.

Qual é o grande desafio da educação de Cingapura?

Considero que o desafio de qualquer sistema educacional hoje é formular um currículo que seja capaz de atender às mudanças das demandas, que estão cada vez mais rápidas. A tecnologia se transforma de forma muito acelerada e, conforme isso se dá, as habilidades requeridas nos empregos também mudam. Então, a pergunta que todos devemos fazer é: como elaborar um sistema educacional que forme estudantes relevantes para as novas necessidades? O que precisamos que os estudantes saibam? Eles precisam dominar os conteúdos em detalhes? Quais são os conhecimentos fundamentais que precisamos fornecer? Na minha opinião, alguns muito básicos: linguagem, conceitos de ciências e de matemática.

Em Cingapura, o salário do professor pode ser equiparado ao de um médico ou engenheiro. O salário inicial de um professor brasileiro é menos da metade do de um engenheiro, por exemplo. Como tornar essa carreira atrativa, tendo em vista os baixos salários e as condições de trabalho ainda precárias?

Creio que a questão salarial não é mais importante do que a valorização dos profissionais da educação pela sociedade. Isso determina muito o moral dos professores de um país. O salário é um componente importante, sem dúvida. Porém, se a remuneração é baixa e a sociedade atribui muito respeito aos professores, pela contribuição que dão para a construção e o desenvolvimento de uma nação, acredito que isso seja capaz de levantar o moral deles e fazê-los seguir em frente. A sociedade e os líderes precisam começar a celebrar o bom trabalho dos professores e ajudá-los a serem reconhecidos positivamente pela contribuição que dão na educação das crianças, que serão o futuro da nação. Isso, obviamente, tem de ser uma política de governo. Em Cingapura, em toda primeira sexta-feira de setembro é comemorado o Dia do Professor. Nessa data, o presidente convida os educadores para uma cerimônia em seu palácio, na qual alguns deles são premiados.

E como funciona o plano de carreira docente?

Há três caminhos possíveis. No passado, havia apenas uma possibilidade de carreira, na qual o professor só podia ascender a cargos de gestão escolar, deixando assim o dia a dia da sala de aula. Isso significava que os professores que tinham os melhores desempenhos não eram promovidos. Agora, eles podem ocupar os cargos de professores seniores, professores líderes, mestres e assim por diante. Financeiramente falando, o salário de um professor mestre e de um diretor escolar podem ser equiparados. Há ainda uma situação mais específica, para educadores que são muito habilidosos em desenvolver currículo, elaborar sequências didáticas e dar consultorias. A evolução da carreira depende, portanto, da expertise do profissional e, claro, do desempenho deles.

Como funciona o processo seletivo dos professores em Cingapura?

Temos um processo seletivo muito rigoroso. Antes de um professor ser contratado, ele tem de passar por uma entrevista, como acontece em quase todas as outras profissões. Depois de aprovado na primeira triagem, ele é encaminhado ao Instituto Nacional de Educação para receber treinamento. Nessa etapa, ele participa de estágios em escolas; 35% do tempo de todo o treinamento é realizado em instituições de ensino. Se durante esse período de testes diante dos alunos ele falhar nas práticas, fica definido que esse profissional não será admitido.

Como funciona o Thinking teachers (programa de formação de professores do país)?

Os professores precisam ter as competências para ajudar os alunos a atingir as expectativas de aprendizagem, porém, o papel desses profissionais mudou muito nos últimos anos e é por isso que passamos quase dez anos reformando nossa forma de ensinar. Quando eu era estudante, sentava na carteira e ficava ouvindo o professor e não fazia muita coisa durante o processo de aprendizagem. Hoje, os alunos conseguem fazer isso por poucos minutos e logo ficam entediados. Chamamos os estudantes da atualidade de epic, ou seja, eles gostam da experiên­cia, de compreender o que estão aprendendo passo a passo. Sentem necessidade de participação no processo de aprendizagem, guiados pelo imediatismo, e gostam de ficar conectados enquanto grupo para estudar.

Então, nossos professores são treinados para promover o aprendizado de modo colaborativo, de forma a incentivar os estudantes a aprenderem juntos.

Qual é o papel dos gestores?

Os gestores devem entender como desenvolver os professores para fazer deles melhores educadores, precisam elaborar novos programas para engajar os estudantes e ajudá-los no processo de aprendizagem. E o ministro, embora tenhamos um sistema educacional centralizado, dá muita autonomia aos líderes escolares. Toda instituição recebe uma verba calculada a partir do número de alunos que possui. O diretor tem o poder de decidir como esse dinheiro será usado, sem precisar consultar o ministro para aprovar as ações.



Quão próximos eles são?


Muito próximos. Todas as políticas desenvolvidas pelo ministro são comunicadas aos líderes e os líderes são consultados no desenvolvimento das políticas.

De que forma o abandono escolar foi superado?

Isso era um problema nos anos 70 em Cingapura. No período, 20% dos estudantes não completavam dez anos de educação. Já nos anos 80 foram desenvolvidos programas de recuperação para esses alunos, que podiam condensar dez anos de estudos em quatro ou cinco, dependendo do caso. Com essa medida, reduzimos o abandono escolar de 20% para 2%, em dez anos.

Quais ações o senhor acha que poderiam ser reproduzidas em países como o Brasil?

Não acho que existam modelos que possam dar conta de toda e qualquer situação. O que precisa ser avaliado, caso a caso, é o porquê de os alunos deixarem a escola. Acham estudar desinteressante? Ou eles não conseguem acompanhar o que é ensinado por alguma falha cometida em etapas anteriores? Para os entediados, é necessário ter professores que façam das aulas algo mais interessante, que os engaje. Quando um país possui problemas educacionais, é preciso entender as razões disso. Só depois de um exame aprofundado do cenário é possível transformá-lo.

Fonte: Revista Educacao

À procura de um modelo para o Ensino Médio

Em meio às discussões sobre a Base Nacional Comum Curricular, debate coloca em pauta modelos de flexibilização e o temido aprofundamento de desigualdades


Por, Flávia Siqueira


Quais os modelos possíveis para o ensino médio? Não é possível discutir ajustes ou reformas na etapa final da educação básica sem considerar a heterogeneidade na origem, nas necessidades e nos desejos de seus estudantes, nas diferentes trajetórias e regimes de trabalho dos docentes, nas particularidades do local e da região em que cada escola está instalada. É preciso tratar o ensino médio no plural e, justamente por isso, é quase consenso que a etapa deve ter algum grau de flexibilidade curricular. Por outro lado, também é necessário cuidado para que o conjunto de opções e sua estrutura não aprofundem ainda mais as desigualdades.

Segundo a proposta preliminar da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), 40% do conteúdo da educação básica deverá ser determinado regionalmente, considerando as escolhas de cada sistema educacional. O Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) divulgou, no começo de março, seu posicionamento sobre a Base. A organização defende que o documento seja “um ponto de partida para o desenvolvimento de diferentes arranjos curriculares” e que as competências e os objetivos de aprendizagem relativos ao ensino médio não estejam seriados, mas “apresentados de forma a deixar clara sua progressão”.

Para o Consed, as competências descritas pela Base devem ocupar, no máximo, 1.600 horas da carga horária total do ensino médio – considerando-se uma carga horária total mínima de 2.400 horas. O restante do currículo deve ser preenchido por “opções de aprofundamento e formação”, considerando possibilidades de formação técnica e aprofundamento em uma de quatro áreas de conhecimento: linguagens, matemática, ciências da natureza e ciências humanas. Para estruturar o modelo, o Consed propõe a construção de uma referência para a flexibilização no prazo de dois anos após a aprovação da BNCC, em parceria com o MEC. Na mesma linha, o Conselho também apresentou suas propostas dentro do Projeto de Lei nº 6.840, de 2013, que altera a Lei de Diretrizes e Bases e formaliza a visão que os secretários têm para o ensino médio.

Rossieli Soares da Silva, secretário-coordenador da Iniciativa Ensino Médio do Consed e secretário de Educação do Amazonas, diz que o ensino médio atual tem ênfase em generalidades e se tornou excessivamente conteudista. Ao defender a proposta de aprofundamento por áreas de conhecimento, exemplifica: “se o aluno vai muito bem em matemática, mas tem dificuldades em português, a escola o colocaria para ter aulas de reforço em português, quando ele poderia ser lapidado em matemática”. A possibilidade de o estudante se aprofundar no que faz de melhor, afirma o secretário, aumentaria a motivação do aluno e ajudaria a “despontar talentos”. A proposta foi criada a partir das percepções das redes estaduais, que respondem pela maioria das turmas de ensino médio no país.

O “enciclopedismo” é outro ponto abordado pelo Consed. Em sua lista de recomendações, o conselho defende que a Base se limite “ao que for essencial ao desenvolvimento de todos os estudantes”, com a definição de padrões de desempenho. Antônio José Vieira Neto, secretário estadual de Educação do Rio de Janeiro e coordenador da iniciativa Base Nacional Curricular no Consed, diz que, enquanto a primeira versão da Base apresenta, no caso do ensino fundamental, conteúdos ainda passíveis de ajustes, mas mais coesos, o documento ainda repete a “estrutura conteudista demais” para o ensino médio. “A Base Nacional não pode ser um currículo. É a partir dela que nascerá o currículo.”

Agora, é preciso esperar o documento final da BNCC para verificar o quanto essa e as demais propostas e contribuições recebidas serão incorporadas. Após a publicação da segunda versão, ocorrida em 3 de maio, estava prevista a realização de seminários para que as secretarias estaduais e municipais façam observações. O Plano Nacional de Educação (PNE) determina que o documento final seja encaminhado para análise e votação do Conselho Nacional de Educação (CNE) até 24 de junho. Há expectativa, no entanto, sobre a manutenção do calendário após o afastamento da presidente Dilma Rousseff.

► Desigualdades

Também no começo de março, o Centro de Pesquisas e Estudos em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec) divulgou os resultados preliminares da pesquisa Ensino Médio, Qualidade e Equidade: Avanços e Desafios em Quatro Estados: CE, GO, PE e SP. O estudo apresenta dois objetivos centrais: descrever e analisar políticas implantadas pelos quatro estados brasileiros para o ensino médio e avaliar como escolas situadas em territórios vulneráveis “respondem aos desafios e às possibilidades criadas por essas políticas”. Os estados do Ceará, Goiás, Pernambuco e São Paulo foram escolhidos pelo avanço em indicadores como o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) e por implementarem, de forma mais abrangente, “medidas que outros estados vêm colocando em prática de forma mais restrita” – entre elas, oferta de matrícula em tempo integral, investimento em reformas curriculares, monitoramento de processos pedagógicos e formação continuada de docentes.







Sobre o risco de um novo modelo de ensino médio aprofundar desigualdades, Antônio Neto e Rossieli da Silva, do Consed, afirmam que é justamente o formato atual que faz isso – e, portanto, é preciso mudar. “Desigualdade está em tratar os desiguais de forma igual. Sabemos que nossa proposta é divergente, mas o importante é que, no meio do silêncio, surgiu uma proposta”, afirma Silva. “A desigualdade existe com o ensino médio que temos hoje, com uma disparidade muito grande entre os períodos integral, parcial e noturno”, complementa o secretário do Rio de Janeiro. Os integrantes do Consed afirmam que é necessário começar as mudanças por algum ponto – no caso, o currículo – e que outras questões relacionadas devem ser tratadas em diferentes âmbitos e momentos.

Uma das conclusões a que chegaram os pesquisadores é que “a execução das políticas de diversificação da oferta de ensino médio produz desigualdades educacionais”. Segundo Antônio Augusto Batista, coordenador de pesquisas do Cenpec, em alguns casos a disparidade é tão grande que chegam a se formar “sub-redes dentro da rede”. Um dos exemplos mais claros está na comparação entre o ensino médio noturno e o cursado em tempo integral: neste último, é maior o nível socioeconômico dos estudantes, e quase 80% dos alunos apontam como razão para frequentar sua escola o fato de ela ser considerada boa. No noturno, o nível socioeconômico é mais baixo e quase 65% dos alunos dizem frequentar a escola por ser perto de casa ou a única em seu bairro ou município. O resultado dessas diferenças pode ser uma “seleção social”.

Ao comparar os períodos parcial e integral, apenas no Estado de Pernambuco não foi encontrada a mesma correlação quando considerado o nível socioeconômico – ou seja, os dados indicam que “as escolas de tempo integral pernambucanas não tendem a recrutar predominantemente alunos de nível socioeconômico mais alto”, como aponta o relatório da pesquisa. Segundo dados do Censo Escolar de 2014, todos os municípios do estado têm escola integral – e talvez esteja aí um dos motivos de sua rede ser uma exceção no critério estudado. Como mesmo os municípios pequenos e de renda menor têm pelo menos uma escola integral, isso garante que alunos de menor nível socioeconômico tenham acesso a ela. As turmas, assim, tendem a ser mais heterogêneas.

Nos demais estados, os municípios que não têm escolas integrais são maioria e, em seu conjunto, apresentam média de renda familiar per capita menor do que o conjunto de cidades com uma ou mais instituições com ensino médio em período integral.

“A flexibilização por si só não é um problema. O jovem tem o anseio de escolher”, afirma Batista. A questão é como esses modelos são estruturados e se, ao mesmo tempo, é dada aos jovens a chance de pensar de maneira crítica sobre suas opções. Nem sempre as decisões que tomamos são feitas de maneira totalmente livre. “As escolhas que os jovens fazem muitas vezes são ditadas pelas condições de vida”, explica o pesquisador. “É preciso falar sobre isso. Quanto mais conhecemos o modo como a sociedade nos constrange, mais nos libertamos desse constrangimento.”

Embora ainda estejamos no começo da discussão sobre o que queremos para o ensino médio, a pesquisa do Cenpec alerta para não perdermos de vista questões importantes. Será que todos os estudantes terão, realmente, a chance de escolher entre todas as opções disponíveis? Ou para alguns – provavelmente os mais pobres – sobrarão as opções menos “valorizadas”? Ou, talvez, o que a escola mais próxima tem condições (limitadas) de oferecer?

Antônio Batista também põe em questão o tema da especialização. “Não acho que seja um caminho. O próprio mercado de trabalho quer pessoas adaptáveis a diferentes ambientes e contextos.”



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► Experiências

Batista, do Cenpec, afirma que há o que aprender com as experiências dos estados pesquisados. Ele dá como exemplo a disciplina Projeto de Vida, inserida nas escolas em tempo integral de São Paulo. “Desde que as pessoas tenham conhecimento dos determinantes sociais e de que essa abordagem não seja feita de maneira burocrática, pode apontar, sim, um caminho.”

Maria Sílvia Sanchez Bortolozzo, coordenadora de Ensino Integral de São Paulo, diz que o objetivo do programa é formar alunos “autônomos, solidários e competentes”. Ela explica que as atividades da disciplina Projeto de Vida começam no ingresso dos alunos. Eles expõem seus planos e conversam com o professor. Depois, o trabalho segue com duas aulas semanais. Segundo Maria Sílvia, os professores responsáveis pela disciplina são escolhidos pelos diretores, por perfil. Não há uma formação específica, mas os docentes passam por orientação.

Outras características do programa em São Paulo incluem disciplinas eletivas, que podem ser criadas pelos professores em discussão com os alunos – como exemplo, Maria Sílvia cita uma disciplina de maquetes – e uma matriz curricular integrada, em que não há uma divisão por turno de disciplinas obrigatórias e eletivas.

► Trabalho e ensino superior

Uma crítica recorrente ao formato atual do ensino médio é de que é muito pautado pelos vestibulares e pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Nesse sentido, o Consed propõe que o Enem seja revisado como consequência da BNCC, “de tal forma que não inviabilize a proposta do Novo Modelo de Ensino Médio”. Em sua carta de princípios sobre o ensino médio, destaca que menos de 20% dos jovens de 18 a 24 anos frequentam o ensino superior.

Fonte: Revista Educacao
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Emmi Pikler, a narratividade e a compreensão da criança

''Médica desenvolveu técnicas de cuidado para criar uma experiência de vida para as crianças que estimulassem seu desenvolvimento e evitassem as faltas dramáticas provocadas pela ausência dos pais''

Por, Myriam Chinalli*

A médica Emmi Pikler (1902-1984) atuou co­mo pediatra em Budapeste, na Hungria, a partir dos anos 1930. Desde seus primeiros trabalhos com as famílias, afirmava que a criança pequena era uma pessoa ativa, competente, capaz de tomar iniciativas. Mostrou-se muito atenta à qualidade da relação entre adulto e criança, principalmente nos momentos de cuidados, que, segundo ela, deveriam ser vivenciados de forma íntima e profunda.

Em 1946, na Budapeste profundamente atingida pela Segunda Guerra Mundial, assumiu a direção de uma instituição hoje chamada Instituto Pikler, que tinha a função de acolher crianças órfãs ou abandonadas pelas famílias, sem, no entanto, procurar reproduzir o comportamento maternal – trabalho vão numa instituição. Na mesma linha de seu trabalho com as famílias, Emmi Pikler procurou desenvolver ali técnicas para criar uma experiência de vida para as crianças que estimulassem seu desenvolvimento e evitassem as faltas dramáticas provocadas pela ausência dos pais.

Sua equipe de colaboradoras, coordenada por Judith Falk, oferecia cuidados que permitiam a construção de vínculos fortes entre a criança e sua cuidadora, principalmente em decorrência de uma atenção exclusiva oferecida a cada uma durante os cuidados cotidianos – banho, troca de roupa, alimentação –, de uma rotina coerente e respeitosa com a criança, de uma estabilidade dos adultos e de respostas justamente adaptadas às necessidades individuais. Como consequência, graças a essa atenção e a essa sustentação, a criança se percebia como competente, digna de atenção e reconhecida em sua individualidade. 

Emmi Pikler dirigiu esse instituto até 1979, alguns anos antes de sua morte. Ainda hoje, mais de cem anos após o nascimento da médica, as técnicas desenvolvidas ali continuam sendo referência de atenção à criança, iluminando experiências, principalmente europeias, de educação em creches e escolas infantis. 


Muitas ideias da psicanálise foram utilizadas para o desenvolvimento desses procedimentos com a criança e com a equipe cuidadora. Uma das ações centrais das profissionais do Instituto Pikler é a narratividade, que constrói um espaço de trocas verbais entre o cuidador e a criança, em que ambos são convocados mais a compreender do que a sentir. A criança e seu cuidador compartilham experiências em sintonia afetiva, mas compreendidas por ambos. A narração das ações realizadas pelo adulto cuidador evita a tensão aniquiladora, vivida pela criança como intrusiva e invasiva.


Para o psicanalista Didier Anzieu, que desenvolveu o conceito de eu-pele, a palavra, o som da voz apaziguadora do adulto, é uma espécie de envelope narcísico, que serve de apoio ao eu da criança durante suas fases precoces de desenvolvimento. Esse envelope inclui também o estímulo à parte sensorial, com o toque respeitoso, o olhar atento, ao lado das palavras descritivas das ações que estão sendo realizadas.


Um exemplo de cuidado respeitoso está na narração detalhada e afetuosa pelo adulto de como será sua atuação com a criança: “Agora vou tomar você em meus braços. Vou acomodar bem a sua cabecinha para trocarmos a sua camiseta. Vou levantar um pouco esse braço, para retirar essa manga. Vamos ao outro braço?”. Também é importante convocar delicadamente a criança a interagir com o adulto cuidador: “Você está confortável? Vamos esperar um pouco antes de retirar suas meias? Obrigada por colaborar com esse momento tão gostoso...”.


sábado, 14 de maio de 2016

PADRE JOSÉ O. BEOZZO HUMILHA MARTA SUPLICY

Resposta ao artigo ‘PELO BRASIL’ da Senadora Marta Suplicy PMDB no dia 13 de maio na Folha de São Paulo.

Pe. José Oscar Beozzo
Parabéns, senadora Marta Suplicy, pelo seu artigo na Folha de São Paulo, com seu apelo “Pelo Brasil” e pela união em torno ao governo interino de Michel Temer e ao seu programa de ordem e progresso.

A guerra sem tréguas movida ao governo da presidenta Dilma acabou.
Instauremos a ordem e a paz dos cemitérios.

Para salvaguardá-las, que as mulheres banidas do ministério formado só por homens, não protestem mais: abandonem a cena pública, voltem aos seus afazeres domésticos e calem a boca; que os negros e negras, maioria da sociedade brasileira deixem as ruas e praças e retornem, nesse 13 de maio, à invisibilidade das senzalas; que os sem terra se conformem com a dilatação e dominação do latifúndio e parem de lutar por reforma agrária e por terra para quem trabalha; que os sem teto, se acomodem debaixo das pontes e viadutos, até que a policia os enxote; que estudantes não ocupem mais as escolas por educação de qualidade e pela merenda roubada.

Que a luta contra as desigualdades de gênero, raça, cor e classes sociais cesse por completo, pois o governo da Casa Grande decretou que a Ordem é sua prioridade e que a luta por igualdade de direitos e oportunidades desapareceu de sua agenda e do programa da senadora por São Paulo e candidata à Prefeitura da cidade, Marta Suplicy.

Pe. José Oscar Beozzo
Seminário João XXIII – fundos
Rua Mario Vicente, 1108
Vila Dom Pedro I
SÃO PAULO SP
04270-001

Sítio do CESEP: http://www.ceseep.org.br


Fonte: http://novo.ceseep.org.br




quarta-feira, 11 de maio de 2016

QUAL A SAÍDA POLÍTICA?

''É preciso romper o ciclo viciado da política de resultados e redefinir uma política de princípios capaz de mirar além das urnas, do neoliberalismo e dessa fase histórica do capitalismo''


Frei Betto
A deposição de Dilma me cheira a golpe parlamentar, à semelhança do que ocorreu em Honduras e no Paraguai. O governo dela, neste início do segundo mandato, não corresponde ao êxito alcançado no primeiro. Contudo, foi democraticamente eleito e eu, que o critico, não cedo ao oportunismo que se empenha em quebrar os limites entre oposição e deposição.

Aceitar que antipatia e fracasso administrativo devam ter mais peso que princípios constitucionais é admitir o retrocesso, e jogar o Brasil e a América Latina na cartografia das “repúblicas de bananas”, tão em voga no continente na primeira metade do século XX.

Meu desconforto é óbvio. Não vejo saída para a emancipação brasileira dentro de nossa atual institucionalidade política. Eleições gerais? Seria uma boa medida se um Tiririca não pudesse alçar ao parlamento figuras que se valem da distorção do quociente eleitoral sem sequer terem contado com os votos da própria família!

E, entre tantos candidatos, quem encarna um programa consistente de reformas estruturais? Vale trocar o seis por meia dúzia?

Tivesse o PT valorizado, ao longo dos últimos 13 anos, as lideranças populares de esquerda, hoje teríamos um Congresso progressista e com muito menos figuras ridículas. No entanto, preferiu alianças não confiáveis das quais agora é vítima.

As forças políticas progressistas precisam se redefinir no Brasil. Estabelecer um programa mínimo de libertação nacional, sem o que continuaremos reféns dessa política de efeitos, e não da política capaz de alterar as causas das anomalias nacionais.

É preciso romper o ciclo viciado da política de resultados e redefinir uma política de princípios capaz de mirar além das urnas, do neoliberalismo e dessa fase histórica do capitalismo.

Se a esquerda brasileira não resgatar a utopia libertária, nosso horizonte ficará limitado a este ou aquele candidato, num círculo dantesco de êxitos e decepções, avanços e recuos.

A idade adulta de democracia tem nome: socialismo. Mas de tal maneira o inimigo esconjura tal nome, que temos medo de pronunciá-lo. Ainda não nos recuperamos da queda do Muro de Berlim. Coramos de vergonha frente ao capitalismo de Estado adotado pela China e o hermetismo idólatra da Coreia do Norte.

Ora, não se trata de suportar o peso da culpa de tantos erros cometidos pelo socialismo, embora a América Latina abrigue a única experiência vitoriosa, Cuba. Trata-se de dissecar a verdadeira face do capitalismo repleta de atrocidades, misérias, exploração neocolonial, guerras e degradação ambiental.

Qual é o “outro mundo possível”? Onde estará a senda do “bem viver”? O caminho se faz ao caminhar. E uma certeza eu guardo: fora do mundo dos pobres e de seu protagonismo político os progressistas sempre correrão o risco de segurar o violino com a esquerda e tocá-lo com a direita.

Frei Betto é escritor, autor de “Reinventar a vida” (Vozes), entre outros livros.


Fonte: http://hojeemdia.com.br