sexta-feira, 8 de outubro de 2010

 Aborto e CNBB: desmonte de uma falácia

Escrito por D. Demétrio Valentini   
08-Out-2010
A questão do aborto está sendo instrumentalizada para fins eleitorais. Esta situação precisa ser esclarecida e denunciada.
Está sendo usada uma questão que merece toda a atenção e isenção de ânimo para ser bem situada e assumida com responsabilidade, e que não pode ficar exposta a manobras eleitorais, amparadas em sofismas enganadores.
Nesta campanha eleitoral está havendo uma dupla falácia, que precisa ser desmontada.
Em primeiro lugar, invoca-se a autoridade da CNBB para posições que não são da entidade, nem contam com o apoio dela, mas se apresentam como se fossem manifestações oficiais da CNBB.
 
Em segundo lugar, invoca-se uma causa de valor indiscutível e fundamental, como é a questão da vida, e se faz desta causa um instrumento para acusar de abortistas os adversários políticos, que assim passam a ser condenados como se estivessem contra a vida e a favor do aborto.
Concretamente, para deixar mais clara a falácia, e para urgir o seu desmonte:
A Presidência do Regional Sul 1 da CNBB incorreu, no mínimo, em sério equívoco quando apoiou a manifestação de comissões diocesanas que sinalizavam claramente que não era para votar nos candidatos do PT, em especial na candidata Dilma.
Ora, os Bispos do Regional já tinham manifestado oficialmente sua posição diante do processo eleitoral. Por que a Presidência do Regional precisava dar apoio a um documento cujo teor evidentemente não correspondia à tradição de imparcialidade da CNBB? Esta atitude da Presidência do Regional Sul 1 compromete a credibilidade da CNBB se não contar com urgente esclarecimento, que não foi feito ainda, alertando sobre o uso eleitoral deste documento, assinado pelos três bispos da presidência da Regional.
Esta falácia ainda está produzindo conseqüências. Pois no próprio dia das eleições foram distribuídos nas igrejas, ao arrepio da Lei Eleitoral, milhares de folhetos com a nota do Regional Sul 1, como se fosse um texto patrocinado pela CNBB Nacional. E enquanto este equívoco não for desfeito, infelizmente a declaração da Presidência do Regional Sul 1 da CNBB continua à disposição da volúpia desonesta de quem a está explorando eleitoralmente. Prova deste fato lamentável é a fartura como está sendo impressa e distribuída.
Diante da gravidade deste fato, é bem vindo um esclarecedor pronunciamento da Presidência Nacional da CNBB, que honrará a tradição de prudência e de imparcialidade da instituição. A outra falácia é mais sutil, e mais perversa. Consiste em arvorar-se em defensores da vida, para acusar de abortistas os adversários políticos, para assim impugná-los como candidatos, alegando que não podem receber o voto dos católicos.
Usam de artifício, para fazerem de uma causa justa o pretexto de propaganda política contra seus adversários, e o que é pior, invocando para isto a fé cristã e a Igreja Católica.
Mas esta falácia não pára aí. Existe nela uma clara posição ideológica, traduzida em opção política reacionária. Nunca relacionam o aborto com as políticas sociais que precisam ser empreendidas em favor da vida.
Votam, sem constrangimento, no sistema que produz a morte, e se declaram em favor da vida.
Em nome da fé, julgam-se no direito de condenar todos os que discordam de suas opções políticas. Pretendem revestir de honestidade uma manobra que não consegue esconder seu intento eleitoral.
Diante desta situação, são importantes, e necessários, os esclarecimentos. Mais importante ainda é a vigilância do eleitor, que tem todo o direito de saber das coisas, também aquelas tramadas com astúcia e malícia.

D. Demétrio Valentini é bispo da diocese de Jales-SP. 

Fonte: http://www.correiocidadania.com.br 

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

O poder midiático na batalha pela Presidência da República

A alegria resplandecia nos rostos de âncoras e comentaristas da Rede Globo de Televisão domingo (3) à noite na medida em que se consolidava a certeza de que o pleito presidencial não seria resolvido no primeiro turno, a despeito do que sinalizavam algumas pesquisas. Parece que a família Marinho tinha um bom motivo para comemorar.

Por Umberto Martins

 

O resultado do pleito não deixou de ser uma demonstração do poder dos monopólios que controlam os grandes meios de comunicação no Brasil. Eles, afinal, não pouparam munição na verdadeira guerra que desencadearam contra Dilma e o governo para impedir a vitória no primeiro turno.

Manipulação

A cobertura dos fatos de domingo foi também uma espécie de horário gratuito para José Serra, que aproveitou para fazer seu primeiro comício. Também não faltaram os afagos da Globo e um espaço generoso para a candidata do PV, Marina Silva, cujo desempenho, insuflado pela mídia, foi fundamental para levar a eleição ao segundo turno. É um ensaio do que virá na batalha final pela presidência, do que devemos esperar nos próximos dias.

Não é a primeira vez que vemos coisas do gênero. As Organizações Globo, em aliança com outros órgãos do chamado PIG (Partido da Imprensa Golpista), com destaque para a revista Veja, tentaram reverter a vitória de Brizola para governador do Rio em 1982, através da fraude eletrônica na apuração (o chamado caso Proconsul); atropelaram a ética jornalista para manipular de forma inescrupulosa o debate entre Lula e Collor em 1989; contribuíram para que o sequestro de Abílio Diniz (em 1989) fosse atribuído a lideranças do PT; usaram imagens de dinheiro associado ao episódio dos “aloprados” na véspera da eleição de 2006 para impedir a vitória de Lula no primeiro turno, entre outros episódios.

Força da direita

Nesta campanha, a mídia hegemônica radicalizou a ofensiva contra Dilma quando percebeu o perigo de derrota da direita já no primeiro turno, o que era percebido como um completo desastre. Movida pelo desespero, disparou acusações de última hora contra membros do primeiro e segundo escalões do governo, procurando envolver a candidata, criou factóides, caracterizou o governo Lula como inimigo da liberdade de imprensa e ditou a pauta dos últimos dias de campanha, substituindo o debate de ideias e programas pela repercussão ruidosa de escândalos fictícios ou reais. Assim forjou a agenda da eleição. E não se pode dizer que não tenha colhido êxito.

Apesar dos reveses sofridos nos últimos anos e no atual pleito, a direita neoliberal ainda exibe força, especialmente em São Paulo e Minas Gerais. Isto se deve, em larga medida, ao poder midiático. Não convém subestimá-lo nos próximos dias que nos separam do segundo turno (31 de outubro). O desafio para o futuro é intensificar a campanha pela efetiva democratização dos meios de comunicação e lutar para que as medidas delineadas na primeira Conferência Nacional da Comunicação (Confecom) sejam concretizadas. 
 
Fonte: http://www.vermelho.org.br/noticia

Maria Rita Kehl denuncia “dois pesos” do Estadão

 

A psicanalista Maria Rita Kehl foi demitida pelo Jornal O Estado de S. Paulo depois de ter escrito, no último sábado (2), artigo sobre a "desqualificação" dos votos dos pobres. O texto, intitulado "Dois pesos...", gerou grande repercussão na internet e mídias sociais nos últimos dias.

 

Nesta quinta-feira (7), ela falou a Terra Magazine sobre as consequências de seu artigo: "Fui demitida pelo jornal o O Estado de S. Paulo pelo que consideraram um "delito" de opinião (...) Como é que um jornal que anuncia estar sob censura, pode demitir alguém só porque a opinião da pessoa é diferente da sua?"

Leia também:
Terra Magazine - Maria Rita, você escreveu um artigo no jornal O Estado de S.Paulo que levou a uma grande polêmica, em especial na internet, nas mídias sociais nos últimos dias. Em resumo, sobre a desqualificação dos votos dos pobres. Ao que se diz, o artigo teria provocado consequências para você...

Maria Rita Kehl - E provocou, sim...

Terra Magazine - Quais?
MR - Fui demitida pelo jornal O Estado de S.Paulo pelo que consideraram um "delito" de opinião.

Terra Magazine - Quando?
MR - Fui comunicada ontem (quarta-feira, 6).

Terra Magazine - E por qual motivo?
MR - O argumento é que eles estavam examinando o comportamento, as reações ao que escrevi e escrevia, e que, por causa da repercussão (na internet), a situação se tornou intolerável, insustentável, não me lembro bem que expressão usaram.

Terra Magazine - Você chegou a argumentar algo?
MR - Eu disse que a repercussão mostrava, revelava que, se tinha quem não gostasse do que escrevo, tinha também quem goste. Se tem leitores que são desfavoráveis, tem leitores que são a favor, o que é bom, saudável...

Terra Magazine - Que sentimento fica para você?
MR - É tudo tão absurdo... A imprensa que reclama, que alega ter o governo intenções de censura, de autoritarismo...

Terra Magazine - Você concorda com essa tese?
MR - Não, acho que o presidente Lula e seus ministros cometem um erro estratégico quando criticam, quando se queixam da imprensa, da mídia, um erro porque isso, nesse ambiente eleitoral pode soar autoritário, mas eu não conheço nenhuma medida, nenhuma ação concreta, nunca ouvi falar de nenhuma ação concreta para cercear a imprensa. Não me refiro a debates, frases soltas, falo em ação concreta, concretizada. Não conheço nenhuma, e, por outro lado...

Terra Magazine - ...Por outro lado...?
MR - Por outro lado a imprensa que tem seus interesses econômicos, partidários, demite alguém, demite a mim, pelo que considera um "delito" de opinião. Acho absurdo, não concordo, que o dono do Maranhão (senador José Sarney) consiga impor a medida que impôs ao jornal O Estado de S.Paulo, mas como pode esse mesmo jornal demitir alguém apenas porque expôs uma opinião? Como é que um jornal que está, que anuncia estar sob censura, pode demitir alguém só porque a opinião da pessoa é diferente da sua?

Terra Magazine - Você imagina que isso tenha algo a ver com as eleições?
MR - Acho que sim. Isso se agravou com a eleição, pois, pelo que eles me alegaram agora, já havia descontentamento com minhas análises, minhas opiniões políticas.

Fonte: Terra Magazine

Comissão da CNBB defende Dilma e põe 

discurso de Serra em xeque

A Comissão Brasileira Justiça e Paz, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), manifestou-se, por meio de nota, "preocupada com o momento político na sua relação com a religião". "Muitos grupos, em nome da fé cristã, têm criado dificuldades para o voto livre e consciente", afirmou a entidade, no comunicado.

A manifestação deve endereço certo: o bispo de Guarulhos (SP), d. Luiz Gonzaga Bergonzini, que tem pregado o voto contrário à candidata Dilma Rousseff, da coligação Para o Brasil Seguir Mudando. Ele também quer levar o aborto para o centro do debate eleitoral, embora nenhum candidato tenha se proposto a mudar a legislação sobre práticas abortivas.

"Dos males, o menor", tem dito d. Luiz Gonzaga, ao defender o voto contrário a Dilma que, segundo ele, apoia o aborto. A candidata já negou várias vezes essa suposição, mas o bispo tem usado suas missas para acusar Dilma e o PT de terem incluído em seu programa de governo a defesa do aborto. Guarulhos, na Grande São Paulo, tem 1,3 milhão de habitantes.

Para o secretário-executivo da Comissão Justiça e Paz, Daniel Veitel, Dilma foi a única candidata que se declarou claramente a favor da vida. "O José Serra (presidenciável do PSDB) não tem uma posição clara", criticou. Veitel lembrou que a CNBB não impôs veto a ninguém nas eleições. Afirmou ainda que alguns grupos continuam induzindo erroneamente os fiéis a acreditarem nisso.

"Constrangem nossa consciência cidadã, como cristãos, atos, gestos e discursos que ferem a maturidade da democracia, desrespeitam o direito de livre decisão, confundindo os cristãos e comprometendo a comunhão eclesial", afirma a nota da comissão.

Da Redação, com informações da Agência Estado

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Militantes argentinos homenageiam estudantes 

vítimas da ditadura

 

Em 16 de setembro de 1976, na cidade de La Plata, na Argentina, os grupos especiais do exército e da polícia da província de Buenos Aires, levaram os estudantes Claudio de Acha, María Clara Ciocchini, María Claudia Falcone, Francisco López Montaner, Daniel Racero, Horacio Ungaro e Pablo Diaz para ser interrogados nas delegacias e nos centros clandestinos de detenção.

 

O motivo do interrogatório era o fato deles serem líderes da mobilização que exigia o direito ao passe livre e a volta da democracia ao país. Infelizmente, os seis jovens se somam aos 3 mil desaparecidos, que foram vítimas da última ditadura militar na Argentina. Os militantes são vítimas da “Noite dos Lápis”, nome dado ao fatídico dia em alusão ao fato de serem estudantes do ensino médio.

Hoje, os estudantes e militantes de toda Argentina vão às ruas para continuar essa luta que começou há mais de trinta anos, exigindo melhor qualidade na educação pública e maior compromisso dos governantes com a juventude. Em Buenos Aires será realizada uma enorme mobilização na famosa Praça de Maio, que representa o palco da resistência e da luta pela democracia.

Com informações, CUT

Eduardo Galeano: 70 anos de América Latina

 

No último 3 de setembro aniversariou um importante nome do jornalismo e da literatura latino-americanos: o uruguaio Eduardo Galeano completou 70 anos de vida. E, com a data, celebra-se também sua importante contribuição para o imaginário social dos povos da América Latina, e também o marcante papel na luta contra o regime militar uruguaio, que durou de 1973 a 1984.

 
“Para os que concebem a História como uma disputa, o atraso e a miséria da América Latina são o resultado de seu fracasso. Perdemos, outros ganharam. Mas acontece que aqueles que ganharam, ganharam graças ao que nós perdemos: a história do subdesenvolvimento da América Latina integra, como já se disse, a história do desenvolvimento do capitalismo mundial”, escreveu Galeano em 1971, no livro As Veias Abertas da América Latina, que fala sobre o processo de exploração colonial pelo qual passou o continente americano desde sua descoberta até o neo-colonialismo da Revolução Industrial.

Anos mais tarde, em 1976, deixou o Uruguai rumo ao exílio na Espanha após ter seu nome incluído em uma lista de execuções do regime militar, liderado pelo ditador Jorge Videla.

Para falar sobre vida e obra do jornalista uruguaio, a Revista Fórum entrevistou o professor Alexandre Barbosa, mestre e doutorando em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. Especialista em Jornalismo Internacional, Borges é o idealizador do site www.latinoamericano.jor.br.

Fórum: Na sua opinião, qual a importância de Eduardo Galeano para o jornalismo e literatura latino-americanos?

Alexandre Barbosa: Galeano foi além do jornalismo e da literatura. Muitos, tanto na academia quanto no jornalismo, enxergam sua obra apenas do ponto de vista literário. De fato, ele escreveu obras belíssimas, como Palavras Andantes e Memórias do Fogo. Esta última, uma crônica da história latino-americana contada de maneira poética. Porém, mesmo na literatura e principalmente no jornalismo, Galeano é essencial para a construção de um pensamento de resistência latino-americana. Sua obra mais conhecida, As Veias Abertas da América Latina, é uma leitura que não pode faltar na vida de qualquer cidadão deste continente.

Fórum: De que maneira ele contribuiu para o imaginário histórico do continente latino-americano?

Barbosa: Enquanto a indústria jornalística insistia na visão de que as alianças com os países centrais do capitalismo eram uma alternativa para o atraso da região, Galeano mostrou como a riqueza da Europa e dos EUA foi construída com base na exploração dos recursos naturais e humanos da América Latina. A cidade boliviana de Potosí, que tem mina de estanho e prata, hoje é uma região pobre, que enriqueceu os cofres dos países ibéricos. A miséria da América Central é a riqueza dos comerciantes norte-americanos.

Como a escrita de Galeano tem forte apelo de denúncia, seu texto flui e serve de inspiração para os movimentos que hoje pregam uma nova ordem da política e da economia latino-americana. Ao ler a obra de Galeano, é possível entender melhor como funcionam os governos de Evo Morales e Rafael Correa. Quem leu As Veias Abertas da América Latina jamais teria coragem de criticar a ação boliviana de nacionalização dos recursos minerais.

Fórum: Galeano participou ativamente de movimentos culturais contrários à ditadura uruguaia de 1973. Para você, qual obra dele melhor representa a resistência contra o regime militar?

Barbosa: Galeano e outros da classe artística e jornalística podem ser considerados parte de um movimento que Michael Löwy chamou de Romantismo Revolucionário que, entre outras características, entende as manifestações artísticas como instrumentos de denúncia, resistência e revolução.

Há contos e crônicas belíssimas de Galeano sobre a ditadura uruguaia. Recomendo a leitura de um texto sobre os desenhos que a filha de um preso levava para o pai no cárcere. O guarda proibia imagens e desenhos de pássaros, pois eles eram sinônimos de liberdade. Um dia, a filha desenhou uma árvore com frutas e o desenho passou. O pai elogiou o desenho e filha confidenciou-lhe que os pássaros estavam escondidos entre as folhas...

Fórum: Hoje em dia, Eduardo Galeano figura como um dos maiores nomes da literatura na América Latina, ao lado de Gabriel García Marquez e outros. O que ainda podem fazer para estabelecer um ponto de reflexão nos povos do continente contra a dominação cultural e ideológica?

Barbosa: É essencial seguir estudando as obras desses dois autores. Além de As Veias Abertas da América Latina, um latino-americano não pode se considerar latino-americano sem ler Cem Anos de Solidão, de García Marquez. Um curso sobre América Latina tem de incluir uma discussão sobre “As Veias Abertas” e um debate sobre a metáfora da cíclica história do continente que está encarnada em “Cem Anos”.

Tanto Galeano quanto Gabo continuam fortes em suas posições. Continuam a defender a América Latina e suas lutas. Gabo mantém a FPNI (Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano), que incentiva a construção de um jornalismo que tenha olhar latino-americano. A última obra de Galeano, Espelhos, se dedica às histórias esquecidas não só da América Latina, mas de todo o mundo.

Fonte: Revista Fórum

Luiz Gama: Quanto vale um homem?

 
No tempo da escravidão, o valor era medido pela capacidade de produção do trabalhador escravizado. No capitalismo, pela força de trabalho, do assalariado. Para a história, o valor de cada ser humano, tem medida no legado que se deixa para as gerações vindouras. Luiz Gama foi imprescindível na luta travada contra a escravidão no Brasil no período imperial. Sua obra, sua história e sua devoção à causa libertária estão relatadas em duas biografias recém-lançadas.

Por Marcos Aurélio Ruy*

A professora de antropologia Lilia Schwarcz faz uma comparação entre as trajetórias de Luiz Gama e do escritor Lima Barreto, que também superou adversidades que pareciam intransponíveis, para se transformar num dos maiores escritores brasileiros. “É duro não ser branco no Brasil. A capacidade mental dos negros é discutida a priori e a dos brancos a posteriori”, disse Lima Barreto dando uma definição clara do racismo brasileiro.

Como explica Schwarcz Gama “escancarou faces da discriminação” e usou de todas as armas de que dispunha para libertar escravos, como advogado, jornalista e escritor. Ambos se afirmaram como negros e denunciaram as mazelas do racismo.

Ela adverte ser muito difícil biografar Luiz Gama pela carência de fontes. O principal documento para sua contar a sua vida foi uma carta que escreveu para o amigo Lúcio de Mendonça, que, diz o seu biógrafo Luiz Carlos Santos, “embora seja, em última instância, uma carta de um amigo para outro, ganhou dimensão de epopéia por ter sido escrita dois anos antes da morte de Gama e oito antes da abolição, e por relatar fatos que só o autor poderia constatar.”

Polêmicas a parte, os dois livros trazem à tona a importância desse homem que dedicou seus 52 anos de vida a causa da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Venceu o racismo, a escravidão, a perseguição política e tornou-se “o negro mais importante do século XIX”, nas palavras de Miguel Reale Júnior.

Os livros

Recentemente foram lançados dois livros sobre a vida deste lutador. O Advogado dos Escravos: Luiz Gama, de Nelson Câmara, apresenta petições de Gama para libertação dos negros com base nas leis existentes contra o tráfico de escravos e a luta incessante para que o maior número possível de escravos conseguisse juntar dinheiro para comprar sua carta de alforria, por mais paradoxal que possa parecer o escravo comprar a sua liberdade.

O livro “traz o travo amargo da memória de nossa terra injusta, mas ao mesmo tempo reconforta pelo exemplo edificante do biografado, cujas petições podem ser lidas para auferir ânimo na luta contra todas as injustiças que ainda nos assolam”, afirma Reale Júnior.

O livro Luiz Gama, de Luiz Carlos Santos, valoriza a trajetória do “precursor do Abolicionismo” à sua atuação como abolicionista e intelectual importante para a formação do pensamento libertário e de lutas dos movimentos negros futuros. “Enxergando além de seu tempo, Gama não separou o social do racial e combateu tanto a escravidão quanto a monarquia”, afirma Santos, como “defensor dos ideais republicanos, não os separava de sua obstinada luta contra escravatura”, diz.

Nelson Câmara explicita que “suas intervenções nos encontros políticos sempre procuravam articular a luta pela emancipação política do Brasil e a imediata abolição do trabalho escravo”. Luiz Gama foi voz incessante “pelo fim imediato da escravidão e da própria monarquia, sem nenhuma concessão de prazo para a propalada transição do trabalho servil para o trabalho livre”, conclui Santos.

A vida

Nascido em 21 de junho de 1830, Luiz Gonzaga Pinto da Gama era filho da revolucionária ex-escrava Luiza Mahin e de um fidalgo português. Sua Mãe participou da Revolta dos Malês em 1835 e da Sabinada em 1937, movimentos importantes de insurreição contra a escravidão, na Bahia. Luiza Mahin “era revolucionária natural, sempre com o objetivo de libertar sua raça dos grilhões da escravidão”, acentua Câmara e complementa “foi um destacado elemento de conspiração entre os negros oprimidos. Sua casa na Bahia tornou-se um dos fortes redutos de chefes de chefes da revolta de 1835. Ninguém sabe que fim levou e seu nome permaneceu na história e na lenda como um grande símbolo do valor da mulher negra no Brasil.”

Como advogado, sem diploma, Gama libertou mais de 500 escravos, gratuitamente. Também foi um “jornalista nato, de grandes recursos intelectuais, pena vibrante, estilo combativo e satírico, destemido, sempre fiel ao fato e à notícia como convém ao verdadeiro profissional de imprensa”, diz Câmara, “mas sem deixar de ministrar sua opinião política e filosófica”, explica. O advogado utilizava como expediente publicar anúncios em jornais de seu trabalho para quem desejasse ser livre e não tivesse como pagar por isso.

Como poeta, Gama deixou em suas Primeiras Trovas Burlescas poesias com temas sociais e de maneira irônica mostrava as mazelas dos poderosos da época. No poema Quem Sou Eu? A veia do advogado falou mais alto: “Não tolero o magistrado,/Que do bico descuidado,/Vende a lei, trai a justiça/- Faz a todos injustiça -/Com rigor deprime o pobre,/Presta abrigo ao rico, ao nobre,/E só acha horrendo crime/No mendigo, que deprime.”

Paulo Fanchetti afirma que “a obra poética de Luiz Gama é pequena, e o que há nela de melhor são os poemas que satirizam os costumes, as modas e, principalmente, os vícios de classe”.

Vendido como escravo pelo próprio pai para pagar dívida de jogo aos 10 anos de idade, Luiz Gama resistiu e foi fundo na sua vontade de viver e derrotar o que submetia a si e à sua classe, defendendo a libertação dos escravos e a República como possibilidades de superação da tragédia do escravismo e do atraso do Império.

Aos 17 conseguiu libertar-se, fugindo da escravidão e alfabetizando-se para tonar-se voz fundamental na história dos negros brasileiros por sua emancipação social e política. Ele “usava a imprensa para pugnar pela liberdade incondicional, denunciava a escravidão como fator de degradação do ser humano e da sociedade”, acentua Câmara para mostrar o lado jornalista do homem que era a própria encarnação da luta abolicionista no país.

O homem

Quando quis ser bacharel pela Faculdade Direito, “a mocidade estudantil recusou seu ingresso pela condição de negro em plena escravidão”, conta Nelson Câmara. Mas isso não abateu o jovem ex-escravo, que conquistou o direito de advogar, mesmo sem diploma. “Não possuía pergaminhos, porque a inteligência repele os diplomas como Deus repele a escravidão”, escreveu Gama no artigo intitulado Pela Última Vez, em 1869, após ter sido demitido por motivação política de cargo público.

“A polêmica funcionou como ótima propaganda antiescravista e em favor da República. Luiz Gama afirmava que sua causa era a liberdade dos escravos, e que o governo cometera um ato arbitrário ao demiti-lo, pois sua atuação era inteiramente legal, baseada nas lei vigentes”, explica Câmara.

O “advogado dos escravos” soube usar sua demissão para atrair a atenção para a luta por igualdade racial. Gama “transformou-se na figura central da luta contra a escravidão”, afirma Santos. “Amo o pobre, deixo o rico”, esse verso dele ilustra bem eu pensamento a respeito da luta travada no império contra a escravidão. “

Para o coração não há códigos: e se a piedade humana e a caridade cristã se devem enclausurar no peito de cada um, sem se manifestar por atos, em verdade vos digo aqui, afrontando a lei, que todo escravo que assassina o seu senhor pratica um ato de legítima defesa”, disse Gama num auto de defesa de um escravo.

“Luiz Gama foi personagem do século XIX, que viveu em um dos maiores centros escravocratas do país, a então província de São Paulo, em pleno desenvolvimento da riqueza do café”, diz Câmara. Mesmo assim “tornou-se símbolo nacional de resistência negra ao escravismo, de liderança libertária, de democrática luta pela abolição e o fim da Monarquia. Luta nos campos político, jornalístico e jurídico, no enfretamento direto à sociedade dominante”, conclui.

A luta

Também se filiou ao Partido Liberal Republicano em São Paulo e levou sua luta aos tribunais, às redações de jornais e à literatura. Notam-se as dificuldades que esse homem enfrentou em sua vida e as asperezas que o aguardavam. A vida não apresentava facilidades para “quem advogava em favor dos desvalidos contra o peso dos interesses econômicos e contra o preconceito de muitos juízes formados na mentalidade escravagista.”

Sendo que Gama foi o principal divisor de águas do partido em que era “mantida uma luta surda entre os radicais abolicionistas e conservadores escravocratas no seio do Partido Republicano”, diz Câmara. Gama foi o principal divisor de águas do partido em que era “mantida uma luta surda entre os radicais abolicionistas e conservadores escravocratas no seio do Partido Republicano”, diz Câmara.

Era uma luta inconciliável mesmo porque, para Luiz Gama - como disse ao tomar conhecimento do linchamento de quatro negros que mataram o filho de seu senhor - “escravo que mata senhor, seja em que circunstância for, mata em legítima defesa”. Luiz Gama “tornou-se maçom e, nessa sociedade, alargou espaços, libertando homens e realizando planos”, conta Santos. Para ele nas condições dadas, “a caridade é um poderoso elemento de civilização e regeneração social”.

Nelson Câmara destaca também a luta dos caifazes liderados por Antônio Bento, “um movimento revolucionário-guerrilheiro, completamente à margem da lei, impacientemente para alcançar o fim da escravidão”.

Para Lilia Schwarcz “o abolicionismo não foi exclusivamente legal. Existiram grupos como os ‘caifazes’, que, liderados por Antônio Bento, promoviam e incentivavam a fuga direta de cativos. Esse grupo ficou famoso por ter organizado um quilombo (chamado Jabaquara) nas imediações do porto de Santos.” Com o auxílio dos ferroviários, emergentes na época, os caifazes libertavam e transportavam os libertos para Santos.

Antônio Bento liderou o movimento com “caminhos e métodos mais radicais, revolucionários mesmos, para dar fim à escravidão. Curioso é que, em sua pregação, utilizava a fé católica para demonstrar a contradição, comparando os martírios dos escravos aos de Cristo”, afirma Câmara.

Como Antônio Bento, Luiz Gama lutou em várias frentes, na legalidade ou fora dela, como ressalta Câmara. O combate à escravidão não se deu somente pela via da legalidade. Existiram em toda nossa história diversos movimentos de contraposição à opressão escravista. Nomes importantes como o casal Zumbi e Dandara dos Palmares ficaram para a história e transformaram-se em grandes heróis das lutas populares deste país. Luiz Gama está entre eles.

A luta desenvolvida por Luiz Gama foi sumamente importante para o propósito da igualdade na sociedade brasileira. Proposta válida ainda hoje, pois o preconceito racial ainda é forte em nosso contexto. “Luiz Gama lutava simultaneamente em várias frentes, na legalidade ou fora dela”, diz Câmara e afirma: “era a missão de sua vida”.

E, provavelmente por suas propostas avançadas e radicais, chegou a ser taxado, em 1864, de agente da Primeira Internacional Socialista (a Associação Internacional dos Trabalhadores, fundada e dirigida por Karl Marx), acontecimentos que “respingaram na América escravocrata”, afirma Santos.

Justamente porque Gama foi “o primeiro a compreender a abolição como passo final para a República, unindo logicamente os dois princípios num mesmo anseio de redenção humana e nacional”, afirma Câmara.

E porque como diz Raul Pompéia, Luiz Gama recebia “constantemente em casa aquele mundo de gente faminta de liberdade, uns escravos humildes, esfarrapados, implorando libertação, como quem esmola: outros mostrando as mãos inflamadas e sangrentas das pancadas que lhe dera um bárbaro senhor: outros... inúmeros... (...) Toda essa clientela miserável saia satisfeita, levando este uma consolação, aquele uma promessa, um outro a liberdade, alguns dinheiro, alguns um conselho fortificante...”

Para inglês ver

Por precisar de mercados consumidores, a grande potência do século XIX, Inglaterra, passou a combater o escravismo. O trabalho do advogado defensor dos negros baseava-se em um tratado entre Portugal e Inglaterra, que proibiu o tráfico de escravos nas colônias portuguesas. E também na lei de 7 de novembro de 1831, que proibia a importação de africanos.

Já em 1839 era autorizada a apreensão de navios negreiros pelos ingleses e em 1845 os navios brasileiros eram submetidos á jurisdição britânica. A Lei Eusébio de Queiroz, de 4 de setembro de 1850, proibia definitivamente a importação de africanos. Foi quando surgiu a expressão “para inglês ver”, pois essas leis eram normalmente burladas.

Com o endurecimento dos ingleses e a luta intensa travada internamente pelos abolicionistas, “surgiu novo e imundo ‘tráfico interno’, ou seja, de escravos do Nordeste, onde a lavoura canavieira estava decadente, para utilizá-los nas províncias do Rio de Janeiro e de São Paulo; primeiramente na lavoura canavieira, depois na cafeeira”, explica Câmara.

Outro conflito de Luiz Gama com a elite escravista ocorreu quando houve a Convenção de Itu (1873), na qual muitos fazendeiros aderiram à República sem mencionar o fim do escravismo. Nela “os republicanos de São Paulo, na maioria fazendeiros recusaram-se, para grande irritação e escândalo do abolicionista Luiz Gama, a incluir a abolição em seu programa, alegando que era assunto dos partidos monárquicos”, diz José Murilo Carvalho.

Gama manteve seus propósitos e seguiu libertando escravos e exigindo o cumprimento das leis. Influenciou a iniciativa da Lei do Ventre Livre e depois utilizou também em seus trabalhos a dos Sexagenários. Mesmo compreendendo as limitações dessas leis. Era a “autoridade moral e intelectual de um negro ex-escravo, que se nivelava a mais alta inteligência jurídica do país”, afirma Câmara.

A morte

No artigo Pela Última Vez, Gama diz que “enquanto os sábios e os aristocratas zombam prazenteiros a miséria do povo, os ricos banqueiros capitalizam o sangue e o suor do escravo... Aguardo o dia solene da regeneração nacional, que há de vir; e se já não viver o velho mestre, espera depô-lo com os louros da liberdade sobre o túmulo que encerrar as suas cinzas.” Parecia profetizar acontecimentos futuros.

Luiz Gama morreu em 24 de agosto de 1882, por causa de seu diabetes. Morreu pobre, mas deixou como legado para as gerações futuras sua determinação e abnegação à causa libertária e de construção da identidade nacional calcada na formação do povo brasileiro.

Deixou uma carta a seu único filho dizendo que “diz a tua mãe... que não se atemorize da extrema pobreza que lhe lego, porque a miséria é o mais brilhante apanágio da virtude. Tu evita a amizade e as relações dos grandes homens; eles são como o oceano que se aproxima das costas para corroer os penedos...” Por isso para Luiz Carlos Santos “retratar Luiz Gama é descobrir como a ousada presença negra no serviço público ajudou a desmontar e a denunciar a quem a justiça do estado imperial efetivamente servia.”

A importância de Gama para a história do Brasil e para as lutas futuras dos movimentos negros é demonstrada em seu féretro em 25 de agosto de 1882, no qual compareceram cerca de 3 mil pessoas, na capital paulista, que na época contava com aproximadamente 40 mil habitantes, ou seja, 7,5% da população. Em comparação com a São Paulo atual, esse número equivaleria a mais ou menos 1 milhão de pessoas no enterro do “advogado dos escravos”.

Na parede da casa onde Gama nasceu em Salvador está afixado: “nasceu livre Luiz Gonzaga Pinto da Gama. Filho de Luiza Mahin, nagô de nação. Escravizado aos 10 aos pelo pai, seguiu para São Paulo. Ali se libertou analfabeto aos 17 anos, autor literato aos 29, encontrou na advocacia o caminho que o levaria às culminâncias da fama. Considerado o maior orador de seu tempo... Sua vida exemplar tornou-o um símbolo de cultura capaz de orgulhar país da mais alta civilização.”

A vida segue em frente

Estudar a vida e a obra de Luiz Gama é importante para a compreensão da consolidação do processo abolicionista no segundo reinado brasileiro e as lutas pela República e pela igualdade racial num país que tem o preconceito de raças profundamente enraizado em sua história escravocrata, principalmente em sua elite, que vira as costas pra o país e se espelha na vida da elite européia ou norte-americana.

A luta desenvolvida por Gama contra a escravidão é a mesma atualidade contra o racismo no Brasil. A defesa da cotas nos bancos escolares e no mercado de trabalho são peças fundamentais para atingirmos a igualdade. “O combate à desigualdade racial exige mais que políticas sociais e precisa ser acelerada por políticas afirmativas que tratem os desiguais de forma desigual para que, no final, a igualdade seja alcançada’, diz José Carlos Ruy.

Afinal um homem vale a sua luta, a sua vida, sua história. É o que fica para a posteridade, é a demonstração de generosidade e solidariedade humana e nesses quesitos todos, Luiz Gama é praticamente imbatível. Um homem também se vale pelo que faz ou pelo que deixa de fazer. Como disse Pitágoras “o homem é a medida de todas as coisas – das que são enquanto (e porque) são, e das que não são (e porque) enquanto não são”. Salve Luiz Gama, um grande herói brasileiro.

*Marcos Aurélio Ruy é jornalista

Fonte: http://www.vermelho.org.br/noticia