sexta-feira, 18 de junho de 2010

Almas Secas: A Perpetuação do Genocídio (1)

Estou no cansaço da vida
Estou no descanso da fé

Estou em guerra com a fome
("Terra, Vida e Esperança", Jurandir da Feira/Luiz Gonzaga)

A fome é um tema recorrente. Seja pelo desgraçado som das barrigas roncando dos famélicos, seja pelo espetáculo de sordidez hipócrita como o tema é debatido (e sempre amenizado ou esquecido). Segundo uma estimativa atual da Organização das Nações Unidas (ONU), mais de 920 milhões de pessoas sofrem de fome crônica no mundo. Sem maiores adjetivações, a fome é muito mais que uma particularidade de uma dada região endêmica, mas sobretudo uma questão profundamente inserida no modo de produção e partilha de riquezas materiais, ideológicas e culturais de uma sociedade. 180610_genocidio_wellington.jpg
 
Para quem vive nos suntuosos escritórios da Avenida Paulista, símbolo lustroso da "locomotiva" paulista, acomodando o farto glúteo em densas poltronas de couro "legítimo", entre um olho nos índices da BOVESPA e o outro olho em algum catálogo em busca da próxima garota de programa para o descontraído "happy hour", a fome seria uma coisa de pobre, preto ou nordestino (geralmente um misto destas três derivações!). Claro, a tal "fome" não passa nem de longe na cabeça de algum agiota financeiro ou um empresário "bem sucedido" no capitalismo à brasileira.
 
Não seria a ética ascética do trabalho que agracia seu crédulo com beatitude do lucro e leva para debaixo do tapete qualquer excrescência a este processo? Na limitada dimensão do mundo e no alto de imponentes edifícios, a ótica do especulador das finanças do engenho capitalista, a fome e a degradação humana são problemas do "gueto" (leia-se, "aquelas criaturas que ficam pedindo esmola nos faróis da cidade" e ponto final!). Para as classes médias e remediadas, a questão da fome oscila entre a caridade recalcada e a "punição merecida" aos lenientes ao trabalho (logo, riqueza e pobreza é uma questão meramente de "sorte para os esforçados"!). Para os burocratas formadores de políticas públicas, os chamados "policymakes", a fome precisa se enquadrar dentro dos padrões orçamentários governamentais. Já para os políticos de amplo espectro partidário, a fome é sempre um mote que angaria um bocado jocoso de votos.
 
Josué de Castro (1908-1973) se debruçou com maior afinco e destaque no estudo da fome no Brasil. Pernambucano de nascimento, médico e sociólogo, conheceu bem de perto o drama existencial do conceito de fome. A definição para as origens da fome merece o destaque das palavras de Castro: "A fome é, conforme tantas vezes tenho afirmado, a expressão biológica de males sociológicos. Está intimamente ligada com as distorções econômicas, a que dei, antes de ninguém, a designação de ‘subdesenvolvimento’".
 
É muito mais simples culpar os miseráveis pela sua própria miséria humana do que querer discutir os reais fundamentos da desequilibrada distribuição de renda entre os indivíduos vivendo numa mesma sociedade. Há ainda aqueles supostos "especialistas" que tratam do tema como se fosse praticamente "profano" a tal ponto que qualquer tentativa de debatê-lo seria em vão (sempre suscitando uma expressão semelhante ao "muito complexo" compondo a discussão da fome). Para os partidários do "complexismo da fome", deveriam perguntar aos que passam fome qual a sensação de não terem absolutamente nada para comer durante horas ou dias (certamente a resposta seria inequívoca!).
 
Naturalmente, dentro dos teares do que o economista austríaco, Karl Polanyi, batizou de "moinho satânico", está o sistema de regulação da natureza capitalista do mercado, que possui na sua gênese a ordem imperativa da desagregação social. O que causa certa perplexidade quando alguns pesquisadores buscam justificar o "ambiente caótico" do capitalismo na aproximação de teorias naturais de caos e complexidade (alguns destes "bombeiros intelectuais" têm a insensatez de adornar tais estudos com um rótulo fantástico de "Econofísica", ou seja, o que seria uma prosaica "Física da Economia"!).
 
Logo, o que sobra para amenizar os conflitos de classes e não proporcionar maiores empecilhos ao capital (por exemplo, revoltas e revoluções por parte dos excluídos do processo deste sistema)? Uma forma muito bem oportuna é patrocinar a querela cristã da piedade ou caridade. Destaca-se no "Novo Testamento" a importância da doação como oferenda divina e não como necessidade de justiça social: "O poder divino deu-nos tudo o que contribui para a vida e a piedade, fazendo-nos conhecer aquele que nos chamou por sua glória e sua virtude" (Segunda Epístola de Pedro, 1:3).
 
A piedade sob a forma de caridade é uma vil promessa de cura que apenas sustenta a linha entre a vida e a morte. Atos de caridade podem ser muito salutares como dogmas religiosos (salvação da alma avarenta em busca de bonança na Terra Prometida), porém, são um nefasto caminho para justificar a suposta amenização da fome. Tratar a questão da fome como um problema isolado e passível tão somente da assistência providencial da caridade na esfera pública é proporcionar a perpetuação latente da degradação humana. A miséria não pode ser estancada com cômodas medidas circenses de piedade contemplativa cujos resultados são paliativos ou inócuos.
 
Excetuando períodos de guerra ou profundas calamidades naturais, é permanente o desequilíbrio social em praticamente todos os países, sejam os mais desenvolvidos, em desenvolvimento ou subdesenvolvidos. O que difere tais blocos de países em diferentes condições de progresso material é o apoio logístico que o Estado concede em cada um destes países, alguns mais propensos à amenização da pobreza, enquanto outros relegam seus habitantes à própria sorte. A fome é o símbolo máximo do lento genocídio do descarte humano.
 
Wellington Fontes Menezes é mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), bacharel e licenciado em Física pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Rede Pública do estado de São Paulo.


Fonte: http://www.correiocidadania.com.br 

terça-feira, 15 de junho de 2010

 Biologia sintética: novas soluções ou problemas?

Fatima Oliveira *

Transformamos uma célula em outra. É a primeira forma de vida na Terra cujo pai é um computador”. Falou John Craig Venter sobre o feito do Instituto John Craig Venter, que substituiu o DNA natural da bactéria Mycoplasma mycoides por um artificial, criado aleatoriamente por computador, e que assumiu o comando da célula!

 

A façanha éa primeira espécie criada por cientistas e consolida a biologia sintética: biotecnologia que, usando saberes da transgenia, da genômica e outros conhecimentos da biologia, da química, da física, da matemática, da engenharia, da biotecnologia e da informática, cria organismos sob medida: com um novo código genético a partir de DNA artificial  (Science,  20.05.2010).

Quem é John Craig Venter? Geneticista norte-americano, 63 anos, fundador da Celera Genomics (1998, Rockville, Maryland, EUA), empresa privada que mapeou o genoma humano, competindo com o Programa Genoma Humano (PGH); é ex-chefe de uma das equipes do PGH, do qual se desligou alegando divergências “técnicas”, porém o centro das polêmicas era o patenteamento do genoma humano, que ele defendia.

Em 1992 esteve na Conferência Sul-Norte do Genoma Humano (Caxambu-MG), ocasião em já solicitara patentes de 3.000 genes, via Institutos Nacionais de Saúde. Declarou ao Jornal do Brasil que a pesquisa do genoma humano não era uma aventura para países pobres. Ao sair do PGH, fundou uma instituição beneficente de pesquisa, a TIGR que sequenciou o genoma do Haemophilus influenza (1995), o primeiro ser vivo sequenciado. Desde então recebeu vultosos financiamentos privados para competir com a equipe do PGH. E  levou!

Ao criar a Celera Genomics, disse que com US$ 200 milhões, e em três anos, realizaria o sequenciamento total do genoma humano. Àquela época o PGH, consumira quase US$ 1 bilhão, entre fundos governamentais e doações, e prometia a sequência completa apenas para 2005. Venter acusou a equipe do PGH de desperdiçar dinheiro público, utilizando uma técnica lenta, quando já estava disponível um processo mais rápido, criado por ele... Em 2006, saiu da Celera Genomics e fundou o Instituto John Craig Venter, agora é um dos deuses da biologia sintética.

Conforme Silvia Ribeiro, pesquisadora do Grupo ETC, “A biologia sintética é uma nova rubrica científica e industrial cujo objetivo é criar formas de vida artificiais a fim cumprir tarefas ao gosto do desenhista. Não satisfeitos com os problemas criados com os transgênicos – seres vivos nos quais se inserem genes de outras espécies –, trata-se agora de construir organismos vivos a partir do zero, desenhados à la carte, a partir da fabricação de módulos de DNA artificial, programados para serem montados uns com os outros”. (Em “Biologia sintética: a vida descartável”).

Para Charbel Niño El-Hani e Vitor Passos Rios, do Instituto de Biologia da Universidade Federal da Bahia: “A biologia sintética pode ser entendida como a criação de organismos feitos sob medida, sejam eles geneticamente modificados ou construídos a partir do zero (...) O principal objetivo da biologia sintética, bem como sua maior dificuldade, é domesticar o mecanismo de replicação e transcrição de DNA de modo a controlar seu funcionamento, do mesmo modo que um engenheiro elétrico constrói e controla um circuito. É claro que esta empreitada traz consigo toda uma série de questões éticas e sociopolíticas, que não podem ser perdidas de vista. (Em “Vida sintética: uma nova revolução?”).

            Na mesa novas soluções ou problemas?
* Médica e escritora. É do Conselho Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução e do Conselho da Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe. Indicada ao Prêmio Nobel da paz 2005.

Fonte: http://www.vermelho.org.br/coluna

As quatro grandes dívidas

Eduardo Bomfim *

 O Brasil vive uma época de crescimento acelerado em plena crise econômica internacional, quando a Europa patina e vários países da sua comunidade vivem um inferno financeiro de larga magnitude.

De tal maneira que já se chega a comentar o esfacelamento da União Europeia. O que é, acho eu, uma possibilidade remotíssima, senão praticamente nula.

De concreto mesmo é que a onda da bancarrota financeira varreu todos os continentes em uma escala só comparável à grande depressão de 1929. Em comum é que a origem tanto de uma quanto da outra se deu nos Estados Unidos da América.

Quando a atual crise atingiu o País a grande mídia hegemônica nacional, sempre catastrofista e irredutivelmente oposicionista em relação ao governo Lula, esmerou-se em anunciar a derrocada total do desenvolvimento nacional.

Na verdade é o de sempre, o inconformismo de cunho ideológico e político, pelo fato de que o Brasil cresce e, mais que crescer, desenvolve-se com acelerado processo de inclusão social de dezenas de milhões de famílias que saem da linha de pobreza relativa ou absoluta, forjando inclusive uma nova cara da classe média, mais mestiça e mais autenticamente nacional.

Em decorrência desse crescimento e dos projetos estratégicos do Estado brasileiro, coisa abominada pelos neoliberais de Fernando Henrique Cardoso, do papel decisivo do Estado nos destinos do País, o Nordeste também cresceu e avançou em grande ritmo que superou em vários aspectos as regiões mais desenvolvidas, como o Sul e o Sudeste.

No entanto, o bravo Estado de Alagoas é um dos que menos cresceu ou que não acompanhou em mesma escala os outros Estados nordestinos irmãos. E não se pode dizer que não recebeu fartos investimentos do governo federal.

O presidente Lula acaba de liberar nesta terça-feira 1,5 bilhão de reais para obras de duplicação da BR 101 em território alagoano. O que vai implicar em extraordinária injeção de capital, direto e indireto.

Mas apesar de tanto investimento ao longo dos últimos quatro anos nosso Estado encontra-se atolado em quatro grandes graves dívidas. São elas as da educação, da saúde, da insegurança e violência generalizada e das altas e persistentes taxas de desemprego.

As próximas eleições em Alagoas não podem deixar de diagnosticar e apresentar soluções para essas chagas abertas no seio da nossa população. Que são em última instância problemas estruturais fundamentais para a superação de uma realidade que todos nós alagoanos vivenciamos.

* Advogado, Secretário de Cultura de Maceió - AL
Fonte: http://www.vermelho.org.br/coluna.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Em visita ao PCdoB, PC chinês debate o Brasil e a 

América Latina

Com uma visita à sede nacional do PCdoB, em São Paulo, seis dirigentes do Partido Comunista Chinês (PCCh) iniciaram, nesta segunda-feira (14), uma intensa agenda de atividades pelo Brasil. Chefiada por Sun Gan, secretário-executivo do Conselho de Trabalho dos Órgãos subordinados diretamente ao Comitê Central do PC, a delegação chinesa saudou o PCdoB como “partido amigo” e manifestou interesse em “reforçar os laços e os investimentos” entre as duas legendas.

Sun Gan afirmou que os comunistas brasileiros têm uma “trajetória histórica muito respeitável” e demonstraram forças ao resistir a mais de 60 anos na clandestinidade. “O Partido Comunista Chinês valoriza o intercâmbio e a amizade tradicional com partidos como o PCdoB.

Segundo o dirigente chinês, seu partido baseia sua atuação em cinco pilares: ideologia, organização, métodos de trabalho, política anticorrupção e construção do sistema partidário. Também compartilha de princípios resguardados pelo PCdoB, como a combinação de firmeza nos princípios revolucionários com flexibilidade no modo de perseguir os objetivos táticos e estratégicos, além do pressuposto de que não há modelo único de socialismo.

“Cada país deve levar em conta suas peculiaridades e, ao mesmo tempo, estar sintonizada com os avanços do tempo histórico, de modo a não cair em dogmas”, declarou Sun Gan. Sobre a experiência chinesa, destacou o excepcional desempenho do país em 2009. “Apesar da crise econômica, o governo tomou medidas corretas, e a o nosso PIB cresceu 8,9%. Terminamos o ano com US$ 2,4 trilhões de reservas”, agregou o dirigente, agregando que o crescimento econômico da China volta-se, em primeiro lugar, à melhoria da vida do povo.

Informes sobre o PCdoB, o Brasil e a América Latina

Segundo o presidente nacional do PCdoB, Renato Rabelo, um dos principais temas da reunião entre os PCs foi a realidade política brasileira. “O PCCh se mostrou especialmente interessado em temas como o formato de uma disputa eleitoral no Brasil, o processo de escolha dos candidatos, as chances de vitória da pré-candidata Dilma Rousseff e a garantias de que os êxitos do governo Lula terão continuidade.”

Segundo Renato, uma eventual derrota de Dilma “exprimiria um grande retrocesso” para o processo de integração latino-americana. “Sua eleição, ao contrário, traria mais perspectivas de ascenso democrático região”. O dirigente do PCdoB enumerou ao menos quatro trunfos de Dilma na corrida à sucessão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva:

1) a capacidade política de Dilma, que representa como poucos o sucesso do governo Lula;
2) o prestígio de Lula, cuja popularidade mantém níveis recordes após sete anos e meio como presidente;
3) a ampla aliança em torno da pré-candidatura, que inclui PT, PMDB, PCdoB, PSB, PDT, entre outros partidos;
4) o respaldo popular de Dilma, que conta com o apoio das principais lideranças sociais, estudantis e sindicais do Brasil.

 
Ricardo Abreu, o Alemão, secretário de Relações Internacionais do PCdoB, destacou outros dois temas que sobressaíram nos debates: as possibilidades de maior cooperação dos Bric (grupo de países emergentes formado por Brasil, Rússia, Índia e China) e a conjuntura político-econômica na América do Sul e na América Latina. “Foi uma reunião, sobretudo, de atualização. O PC chinês aproveitou o convite do PCdoB para se reunir conosco e entender melhor os rumos tomados pelo Brasil no âmbito das relações internacionais.”


Ao comentar a liderança alcançada pelo Brasil nas negociações com o Irã, o PCdoB sublinhou a ousadia e a correção da política externa do governo Lula, que, segundo Renato Rabelo, “pressupõe valores como a paz, o diálogo e a consolidação de um mundo multipolar”. Os dirigentes chineses responderam que “estão de pleno acordo” — e que a China “tem os mesmos objetivos”.

Construção partidária

Antes do encontro com Renato, os membros do PCCh participaram de uma exposição sobre a história, os princípios e a organização dos comunistas brasileiros. Intitulada “A Construção Partidária no Nível Atual das Exigências”, a exposição foi ministrada por Walter Sorrentino, secretário de Organização do PCdoB.

“É uma grande honra manter essa boa relação entre duas grandes nações, dois povos e dois partidos. Temos um grande papel a jogar no mundo, e esse encontro eleva ainda mais os termos de nosso intercâmbio”, declarou Sorrentino.

A delegação chinesa segue no Brasil até quarta-feira. Na agenda, há reuniões com o líder do PMDB na Câmara Federal, deputado Henrique Eduardo Alves, e os presidentes do Senado, José Sarney (PMDB) e do PT, José Eduardo Dutra. Os dirigentes chineses também devem participar de uma apresentação do Ipea sobre o Estado brasileiro, suas instituições e o serviço público, além de visita a uma fazenda de alta produtividade em Goiás.

De São Paulo,
André Cintra

Fonte: http://www.vermelho.org.br

quarta-feira, 9 de junho de 2010

 Criminalização da pobreza

A polícia do Rio de Janeiro, em comparação com as suas congêneres do Brasil e do mundo, é a que mais mata e a que mais morre. Ela é ao mesmo tempo algoz e vítima de um processo vicioso que só faz agravar a espiral da violência, resultado inevitável de uma política de segurança da qual o governo se vangloria, apesar da sua comprovada ineficácia.
 
Toda vez que se publicam relatórios e dados sobre a questão da violência e os direitos humanos, o cidadão fluminense se vê diante do doloroso dever de constatar a permanência de tão trágica realidade. Exemplo? Basta ver o informe da Human Rights Watch (HRW), publicado com destaque nos jornais desta quarta-feira. Os números são estarrecedores e não foram desmentidos pelas autoridades.
 
Em 2008, os policiais do Rio cometeram 1.137 homicídios durante o expediente ou fora dele. O tamanho do absurdo se mede pela comparação com outros estados e até países. No estado de São Paulo, foram 397 as mortes cometidas por policiais no mesmo período. Na África do Sul e nos Estados Unidos, considerado o país inteiro em ambos os casos, os números foram 468 e 371, respectivamente. A relação entre o número de mortos e número de prisões efetuadas é outro dado altamente revelador. No Rio, para cada suspeito morto por policiais, estes conseguiram efetuar 23 prisões; em São Paulo, 1/348; e nos EUA 1/37.751. Outra dimensão do mesmo descalabro são os dados que medem a relação entre mortes cometidas por policiais para cada óbito de policial. Nos EUA 9,05; em São Paulo, 18,05; e no Rio são 43,73 mortos para cada óbito policial.
 
Toda comparação, claro, padece de problemas e carece de ser relativizada. Mas, no caso, trata-se de uma questão específica, analisada com base em dados oficiais, em regiões assemelhadas. Em todas elas, a violência se concentra nas megalópoles atravessadas pelos problemas típicos do capitalismo pós-moderno. Sendo assim, descartado o castigo de Deus como hipótese, deve haver uma explicação para os números que conferem ao Rio de Janeiro uma distinção tão macabra. Para os estudiosos mais acurados do assunto, a política de segurança adotada pelo governo Cabral é a causa maior do descalabro.
 
Ancorada na lógica do confronto bruto, tal política opera na base da aceitação tácita do uso ilegal da força letal. Há muito que se denuncia, sem que se consiga estancar a sangria literal que daí decorre, os chamados "autos de resistência". São utilizados como forma de justificar os homicídios cometidos e funcionam, na prática, como uma licença para matar. Ao comparar a recente derrubada de um helicóptero policial com a queda das Torres Gêmeas, o secretário de Segurança forneceu justificativa para a espiral de violência. No espírito da vendeta, bandido e polícia se igualam no exercício descontrolado da força e na produção da insegurança coletiva.
 
A brutalidade policial cumpre também uma função política. A reprodução das relações sociais marcadas pela desigualdade e pela injustiça não se faz sem certo grau de violência segregacionista contra os mais pobres. Como escreveu, em artigo recente, Chico Alencar, deputado federal do PSOL/RJ: "uma política de segurança que mira invariavelmente os de baixo, jogando sobre eles toda culpa sobre os malfeitos de uma sociedade desigual, tem nome e sobrenome: criminalização da pobreza".
 
Léo Lince é sociólogo. 
Fonte: http://www.correiocidadania.com.br
 Espetáculo obsceno

O tempo passa, o tempo voa, a bolsa sobe e desce, a crise finge sumir e reaparece, mas a lucratividade dos banqueiros continua numa boa. Na alta ou na baixa, no sujo ou no limpo e até no mal lavado, eles ganham sempre. Mandam e desmandam nos governos, regulam os que deviam regulá-los, seguem soberanos na fortaleza inexpugnável da tirania financeira que avassala o mundo.
 
Em todo e qualquer lugar, seja no Império Americano hipotecado, na tragédia grega ou nos pólos avançados da velha Europa, os protocolos da supremacia absoluta do capital financeiro continuam a girar as roletas do cassino. Por toda a parte, com a voracidade das matilhas, eles atacam sem dó nem piedade.
 
Aqui no Brasil, então, nem se fala. A cada trimestre os balancetes dos bancos registram recordes cuja superação parecia impossível. A regra, que se repete de maneira cronometrada, foi confirmada na safra atual. O lucro líquido declarado pelos maiores bancos privados brasileiros nos três primeiros meses deste ano alcançou um padrão estratosférico. Nunca, em tempo algum, o Itaú, o Bradesco e Santander ganharam tanto dinheiro.
 
Para evitar a sensaboria dos números, vamos nos limitar ao caso do Itaú Unibanco. É, por enquanto, o maior banco privado e declarou, para o trimestre, um lucro líquido de R$ 3,23 bilhões. Um aumento brutal, de cerca de 60%, em relação ao mesmo período do ano passado. Lucratividade espantosa: é o maior valor já registrado para um trimestre ao longo de toda a história do setor.
 
Uma conta simples, dando de lambuja os domingos e feriados, define o montante do lucro líquido diário: R$ 35,9 milhões. Logo, para efeito de comparação, um trabalhador de salário mínimo levaria quase seis séculos para amealhar uma quantia semelhante. Como Brasil foi "descoberto" em 1500, para equiparar ao que o Itaú lucra num dia, o nosso trabalhador hipotético teria que ter começado sua poupança na era pré-colombiana.
 
Uma disparidade absurda. Um retrato cruel do abismo que separa as classes sociais no Brasil de hoje. Não há ou, melhor dizendo, não deveria haver qualquer possibilidade de convívio sereno entre a consciência digna da cidadania e semelhante absurdo. No entanto, no torpor gerado pela morfina-dinheiro, o absurdo é tratado como parte integrante da paisagem. Natural como a explosão de um vulcão.
 
A roleta financeira que gira sem freios é a imagem mais precisa do horror econômico que nos governa. A propriedade que tem o dinheiro - de existir como valor separado de qualquer substância - está na base desta vertigem da pecúnia sem limites. A violenta concentração de poder materializado no dinheiro, hermafrodita que se reproduz na relação consigo mesmo (D-D’), explica muita coisa. A dívida pública, um Himalaia de juros sobre juros. A prevalência do financiamento privado de campanhas eleitorais cada vez mais caras. O tal superávit primário, que sacrifica direitos sociais e sucateia serviços públicos essenciais para garantir o pagamento religioso dos juros.
 
Montaigne, no célebre ensaio "Dos Canibais", relata a presença de índios trazidos do "Novo Mundo" recém descoberto para visitar a reluzente corte francesa. Ao invés de se embasbacarem com tanto luxo e riqueza, eles se espantaram foi com a desigualdade. Para eles, a brutal disparidade entre o palácio e as ruas não era natural. O sentimento igualitário do passado imemorial há de retornar no futuro utópico. Por enquanto, quando os bancos publicarem balancetes, por favor, tirem as crianças da sala para evitar o espetáculo obsceno.
 
Léo Lince é sociólogo. 
Fonte: http://www.correiocidadania.com.br/