quarta-feira, 9 de junho de 2010

 Criminalização da pobreza

A polícia do Rio de Janeiro, em comparação com as suas congêneres do Brasil e do mundo, é a que mais mata e a que mais morre. Ela é ao mesmo tempo algoz e vítima de um processo vicioso que só faz agravar a espiral da violência, resultado inevitável de uma política de segurança da qual o governo se vangloria, apesar da sua comprovada ineficácia.
 
Toda vez que se publicam relatórios e dados sobre a questão da violência e os direitos humanos, o cidadão fluminense se vê diante do doloroso dever de constatar a permanência de tão trágica realidade. Exemplo? Basta ver o informe da Human Rights Watch (HRW), publicado com destaque nos jornais desta quarta-feira. Os números são estarrecedores e não foram desmentidos pelas autoridades.
 
Em 2008, os policiais do Rio cometeram 1.137 homicídios durante o expediente ou fora dele. O tamanho do absurdo se mede pela comparação com outros estados e até países. No estado de São Paulo, foram 397 as mortes cometidas por policiais no mesmo período. Na África do Sul e nos Estados Unidos, considerado o país inteiro em ambos os casos, os números foram 468 e 371, respectivamente. A relação entre o número de mortos e número de prisões efetuadas é outro dado altamente revelador. No Rio, para cada suspeito morto por policiais, estes conseguiram efetuar 23 prisões; em São Paulo, 1/348; e nos EUA 1/37.751. Outra dimensão do mesmo descalabro são os dados que medem a relação entre mortes cometidas por policiais para cada óbito de policial. Nos EUA 9,05; em São Paulo, 18,05; e no Rio são 43,73 mortos para cada óbito policial.
 
Toda comparação, claro, padece de problemas e carece de ser relativizada. Mas, no caso, trata-se de uma questão específica, analisada com base em dados oficiais, em regiões assemelhadas. Em todas elas, a violência se concentra nas megalópoles atravessadas pelos problemas típicos do capitalismo pós-moderno. Sendo assim, descartado o castigo de Deus como hipótese, deve haver uma explicação para os números que conferem ao Rio de Janeiro uma distinção tão macabra. Para os estudiosos mais acurados do assunto, a política de segurança adotada pelo governo Cabral é a causa maior do descalabro.
 
Ancorada na lógica do confronto bruto, tal política opera na base da aceitação tácita do uso ilegal da força letal. Há muito que se denuncia, sem que se consiga estancar a sangria literal que daí decorre, os chamados "autos de resistência". São utilizados como forma de justificar os homicídios cometidos e funcionam, na prática, como uma licença para matar. Ao comparar a recente derrubada de um helicóptero policial com a queda das Torres Gêmeas, o secretário de Segurança forneceu justificativa para a espiral de violência. No espírito da vendeta, bandido e polícia se igualam no exercício descontrolado da força e na produção da insegurança coletiva.
 
A brutalidade policial cumpre também uma função política. A reprodução das relações sociais marcadas pela desigualdade e pela injustiça não se faz sem certo grau de violência segregacionista contra os mais pobres. Como escreveu, em artigo recente, Chico Alencar, deputado federal do PSOL/RJ: "uma política de segurança que mira invariavelmente os de baixo, jogando sobre eles toda culpa sobre os malfeitos de uma sociedade desigual, tem nome e sobrenome: criminalização da pobreza".
 
Léo Lince é sociólogo. 
Fonte: http://www.correiocidadania.com.br
 Espetáculo obsceno

O tempo passa, o tempo voa, a bolsa sobe e desce, a crise finge sumir e reaparece, mas a lucratividade dos banqueiros continua numa boa. Na alta ou na baixa, no sujo ou no limpo e até no mal lavado, eles ganham sempre. Mandam e desmandam nos governos, regulam os que deviam regulá-los, seguem soberanos na fortaleza inexpugnável da tirania financeira que avassala o mundo.
 
Em todo e qualquer lugar, seja no Império Americano hipotecado, na tragédia grega ou nos pólos avançados da velha Europa, os protocolos da supremacia absoluta do capital financeiro continuam a girar as roletas do cassino. Por toda a parte, com a voracidade das matilhas, eles atacam sem dó nem piedade.
 
Aqui no Brasil, então, nem se fala. A cada trimestre os balancetes dos bancos registram recordes cuja superação parecia impossível. A regra, que se repete de maneira cronometrada, foi confirmada na safra atual. O lucro líquido declarado pelos maiores bancos privados brasileiros nos três primeiros meses deste ano alcançou um padrão estratosférico. Nunca, em tempo algum, o Itaú, o Bradesco e Santander ganharam tanto dinheiro.
 
Para evitar a sensaboria dos números, vamos nos limitar ao caso do Itaú Unibanco. É, por enquanto, o maior banco privado e declarou, para o trimestre, um lucro líquido de R$ 3,23 bilhões. Um aumento brutal, de cerca de 60%, em relação ao mesmo período do ano passado. Lucratividade espantosa: é o maior valor já registrado para um trimestre ao longo de toda a história do setor.
 
Uma conta simples, dando de lambuja os domingos e feriados, define o montante do lucro líquido diário: R$ 35,9 milhões. Logo, para efeito de comparação, um trabalhador de salário mínimo levaria quase seis séculos para amealhar uma quantia semelhante. Como Brasil foi "descoberto" em 1500, para equiparar ao que o Itaú lucra num dia, o nosso trabalhador hipotético teria que ter começado sua poupança na era pré-colombiana.
 
Uma disparidade absurda. Um retrato cruel do abismo que separa as classes sociais no Brasil de hoje. Não há ou, melhor dizendo, não deveria haver qualquer possibilidade de convívio sereno entre a consciência digna da cidadania e semelhante absurdo. No entanto, no torpor gerado pela morfina-dinheiro, o absurdo é tratado como parte integrante da paisagem. Natural como a explosão de um vulcão.
 
A roleta financeira que gira sem freios é a imagem mais precisa do horror econômico que nos governa. A propriedade que tem o dinheiro - de existir como valor separado de qualquer substância - está na base desta vertigem da pecúnia sem limites. A violenta concentração de poder materializado no dinheiro, hermafrodita que se reproduz na relação consigo mesmo (D-D’), explica muita coisa. A dívida pública, um Himalaia de juros sobre juros. A prevalência do financiamento privado de campanhas eleitorais cada vez mais caras. O tal superávit primário, que sacrifica direitos sociais e sucateia serviços públicos essenciais para garantir o pagamento religioso dos juros.
 
Montaigne, no célebre ensaio "Dos Canibais", relata a presença de índios trazidos do "Novo Mundo" recém descoberto para visitar a reluzente corte francesa. Ao invés de se embasbacarem com tanto luxo e riqueza, eles se espantaram foi com a desigualdade. Para eles, a brutal disparidade entre o palácio e as ruas não era natural. O sentimento igualitário do passado imemorial há de retornar no futuro utópico. Por enquanto, quando os bancos publicarem balancetes, por favor, tirem as crianças da sala para evitar o espetáculo obsceno.
 
Léo Lince é sociólogo. 
Fonte: http://www.correiocidadania.com.br/
 
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O tempo está doido!
Escrito por Gabriel Perissé   

Tenho ouvido várias vezes, e eu mesmo tenho repetido sem pensar, uma frase cheia de perplexidade: - É, o tempo está doido!
Doido tempo porque simplesmente não quer obedecer à nossa lógica. Ficamos espantados se chove demais, se o sol vem e vai embora sem avisar, sem pedir licença.
Ficamos escandalizados se faz calor no inverno, se faz frio no verão. Queremos, talvez, abrir um processo contra o tempo quando ele, doido, não obedece às nossas previsões.
Mas doido o tempo não é. O tempo nunca foi sensato. Não se pode fazer terapia com o tempo. Nem esperar que ele se comporte como nós, seres tão sensatos que somos. O tempo e seus temporais não são surtos da natureza. Não são manifestações hormonais. São, apenas, naturais.
Que idéia doida a nossa, querer que o tempo seja um rapaz cordato, uma senhora recatada, um cidadão responsável, um funcionário pontual, honesto, sem gestos bruscos, sem palavras intempestivas, um moço ajuizado, de temperamento tranqüilo, uma moça com a cabeça no lugar. O tempo não é gente, minha gente!
Dizem, e digo eu, que o tempo enlouqueceu, que o tempo está maluco. Devemos então interná-lo num manicômio? Devemos prendê-lo em camisa de força? Devemos ministrar remédios que o deixem calmo, sereno, sem tremores, sem lágrimas, sem febres, falando em voz baixa, chuvisco em nosso ouvido?
O tempo, com o passar do tempo, poderá ficar ainda mais louco. Se não tomarmos providências imediatas, o tempo vai amanhecer cada vez mais desgovernado. Poderá tornar-se um problema insolúvel.
Já é tempo de dizer ao tempo que ele administre melhor suas emoções, peça conselhos, leia algum tipo de auto-ajuda. Não é fácil, deve ele admitir, vivermos sob tamanho despautério, não é justo que nós, tão prudentes, sejamos vítimas dessa loucura do tempo, de suas enchentes, suas ventanias, manias.
Tempo lelé, tempo aloprado que ele é. Tempo biruta, demente, capaz de matar a gente num acesso de fúria. Tempo que me desatina, tempo destrambelhado, desvairado. Tempo mentecapto. Tempo pancada, batendo até altas horas o seu tambor. Tempo pinel.
Saio de casa sem saber o que o tempo vai aprontar. Levo guarda-chuva, roupa de inverno, desconfio das nuvens, não me impressiono com a brandura do sol.
E, à noite, o tempo não dorme. Fica acordado, tempo lunático, sua insônia me deixa agitado. Também não consigo dormir.
Gabriel Perissé é doutor em Educação pela USP e escritor. 

Website: http://www.perisse.com.br/
Fonte: http://www.correiocidadania.com.br 


Uso e abuso dos professores

Escrito por Gabriel Perissé

Li na Folha de S. Paulo, no dia 23 de janeiro de 2010, matéria assim intitulada: "SP admite ter de usar professor reprovado".
O verbo "usar" entra pelos olhos, assalta as mentes, espanca o coração, cai torto no estômago e nos faz mal.
O verbo "usar", bem conhecemos. Eu, você, todos nós usamos o verbo "usar". Usamos e abusamos. Faço uso desse verbo porque muitas coisas eu aprendi a usar.
Uso roupa, uso computador, uso escada para subir, uso papel para escrever, uso dinheiro para comprar, uso carro para me transportar, uso de tudo que é lícito para viver humanamente.
Usar não é errado quando uso e manipulo o que é usável e manipulável: objetos a meu dispor, simples ou complexos, caros ou baratos, de qualidade ou vagabundos.
Mas usar pessoas, isso não; isso é demais da conta. Usar pessoas, jamais! Usar alguém para escalar. Usar alguém para ganhar. Usar alguém para gozar. Usar alguém para vencer. Usar alguém é coisa que ninguém deveria fazer. Usar alguém não é do bem. Usar alguém faz mal, e faz mal aos dois: a quem é usado, e também àquele que usa!
Dirão, talvez, que entendi mal. Que o título da matéria não tem maldade. Que "usar" é assim mesmo, usamos sem pensar. Que temos aí um modo de escrever inofensivo. Que estou exagerando a força da palavra. Que estou usando mal a minha capacidade de ler o jornal. Que estou vendo coisas.
Contudo, lá está, a matéria diz: os professores reprovados serão usados. Usados, concluo, porque foram reprovados. E foram reprovados porque sempre foram usados. Porque têm sido objeto de uso e abuso.
O professor fez a prova e foi reprovado. O que será que essa prova provará? Será essa prova eliminatória ou "humilhatória"? O governo de São Paulo garante que o professor, mesmo reprovado, será usado. E ele, o professor, que já se habituou a ser usado faz tanto tempo, voltará a ser temporário. Por quanto tempo?
Usado e mal pago, de manhã, à tarde e à noite, o professor se sente manipulado como uma coisa. Sem aplauso, excluso, mero parafuso, o professor aceita ser usado.
E aqueles que, useiros e vezeiros em usar os professores, humilham o docente, provam, na verdade, que não sabem servir a sociedade. E se não vivem para servir, para que servem?
Gabriel Perissé é Doutor em Educação pela USP e escritor.
Livraria como lugar de terapia 


Entrar numa livraria é, em si mesmo, um ato terapêutico. Tudo ali converge para a cura do tédio e outras doenças: livros que querem gente e gente que gosta de livros, gente que trabalha com livros e gente buscando livros, cheiro de livro, livros em exposição, suas capas, a sensação incontestável de que o mundo é feito de papel e palavras.
Pelo menos uma vez por semana, saia da cama com a idéia fixa: entrar numa livraria. Fique ali durante meia hora, ou mais. Toque os livros e se deixe observar por eles.
Escolha um, leia algumas páginas ao acaso. Visite autores conhecidos. Conheça novos autores. Não pisque, não hesite, arrisque, molhe os pés nas águas frias de algum livro.
Não é preciso comprar nenhum livro no dia em que estiver na livraria. Basta ficar ali dentro, experimentando o clima livral, como se o mundo fosse aquilo só, aquela fosse a paisagem em que nos coube viver.
Escolha um dia qualquer, entre na livraria, para ouvir a respiração dos livros, seus sussurros, seus chamados silenciosos, sentir no ar a aflição dos livros — porque eles querem sair dali para conhecer a realidade aqui fora.
Se algum livro conquistar você, compre-o então, tire-o dali, daquela prisão, daquela redoma, daquele orfanato, daquele abismo. Leve-o para fora, prometa-lhe a leitura mais intensa, as descobertas mais empolgantes, os delírios de quem lê. Leve-o para fora dali. Para dentro da sua vida.
O livro comprado e levado é mais do que uma nova companhia. É compromisso para sempre, na euforia e na depressão, na miséria e na abundância, sem possibilidade de empréstimos, pois bem sabemos que livro não se empresta... Nem se devolve.
Ao chegar em casa, deixe o livro descansar um pouco, não tenha pressa. Deixe que ele se sinta à vontade. Mais tarde, quando enfim vocês dois estiverem juntos e puderem conversar em paz, esqueça-se de tudo, para lembrar o essencial.
Contudo, muitos outros livros estão ainda na livraria, sem destino, correndo o risco do encalhe, abandonados à própria sorte, ameaçados pelo esquecimento, pela morte. É preciso, portanto, voltar até lá, mergulhar outra vez na livraria.
Entre na livraria qualquer dia desses. Lá estão eles, os livros. Não queira saber se são caros ou baratos, famosos ou modestos, compreensíveis ou obscuros. Entre lá. Eles estão esperando por você, ansiosamente.




Gabriel Perissé é doutor em Educação pela USP e escritor. 

Website: http://www.perisse.com.br/ 
Escrito por Gabriel Perissé - 22-Mar-2010

“Os Homens Que Não Amavam as Mulheres”

Sexo, violência, corrupção, antisemitismo, família e religião são os ingredientes usados pelo diretor sueco Niels Arden Oplev para fazer, a partir do romance “Millennium 1”, do escritor Stieg Larsson (1954/2004), um filme que mantém o espectador acesso. Não que os filmes atuais já não tenham saturado o espectador com histórias de igual conteúdo. Só que neste “Os Homens Que Não Amavam as Mulheres”, eles assumem um caráter multifacetado.


Da mesma moeda

Filme do diretor sueco Niels Arden Oplev faz espectador trafegar pelas trilhas obscuras do ódio e da vingança abertas por uma serial killer nazista



Oplev e seus co-roteiristas Rasmus Hersterberg e Nicolai Arcel dotam as sequências em que o sexo predomina de uma brutalidade que o destitui de qualquer erotismo. Torna-se bestial, voltado para prazeres doentios, que revelam a capacidade de o ser humano sentir prazer ao provocar dor no outro.

Mesmo quando a detetive particular Lisbeth Salander (Noomi Rapace) se sente atraída pelo jornalista Mikael Blomkvist (Michael Nyqvist), ela o usa mecanicamente. É como se ela, Lisbeth, temesse extravasar seus sentimentos. Apenas quando sofre abuso sexual, eles se manifestam. E, embora tanto ela quanto seu tutor e algoz sintam prazer em causar dor um no outro, ela sempre racionaliza o sofrimento.

Em duas sequências, ela responde à violência a que foi submetida com uma ferocidade que o surpreende. Sodomia, fetichismo, estupro, vão e voltam, por ação de um e outro. Sua aparente fragilidade é compensada pela rapidez e engenhosidade com que excuta sua ação. O fato de ser mulher pouco importa: ela não se furta a mergulhar no mal absoluto. Só então, seu algoz se retrai por sabê-la capaz de provocar-lhe dores e humilhação insuspeitas.

Em meio ao mal absoluto

Lisbeth Salander acaba tornando-se personagem emblemático deste início de Terceiro Milênio. Dark, andrógina, punk, ela avança pelos espaços disposta a responder a qualquer provocação. Não faz a mulher frágil, desprotegida, ela tem seus instantes de rancor, de vingança. Cerebral, meticulosa, inclemente, ela tem um senso de justiça, ética e moral muito particular. Tornam-se, assim, ferramentas para seus fins. Nada mais.

Diferente dela, Mikael segue a cartilha do politicamente correto. Suas denúncias das falcatruas praticadas por um magnata financeiro publicadas na revista Millennium onde trabalha lhe custam caro. Só o salva, aparentemente, o convite feito pelo bilionário Henrik Vender (Sven-Bertil Taube) para investigar o desaparecimento de sua sobrinha Harriet. Aos poucos, ele percebe que na família Vender reina o ódio entre os irmãos e o temor do passado, marcado pela adesão ao nazismo, antisemitismo, desaparecimentos e mortes misteriosas. E todos procuram se isolar para que nada abale o conglomerado empresarial que dirigem.

Mikael então dependerá de Lisbeth para desvendar esta intrincada teia familiar, cheia de intrigas, incestos e golpes baixos. Ela o ajuda por querer, no fundo, compensá-lo por algo que ele desconhece. E ela própria tem um passado nebuloso contra o qual se debate. Desta forma se completam; se atraem e se repelem. Portanto, uma dupla disfuncional. Daquelas que têm uma química perfeita, mas cujos interesses são dispares, ditados pelas circunstâncias que os fazem lutar juntos.

Trama às vezes é inverossímil

Stieg Larsson e Oplev os obrigam decifrar diversos quebracabeças. Principalmente citações bíblicas plantadas pelo serial killer para despistar sua psicopatia antisemita. São pistas que embaralham a investigação impedindo-os ligá-las a fatos reais. A ponto de assemelhar-se a uma trama urdida por Robert Ludlun (“Círculo Matarese”): nebulosa, inverossímil, cheia de citações que remetem a “Seven” e “Código DaVinci”, sem vinculá-las ao assassino em série, cuja ira descarrega em mulheres judias.

Comportamento que atesta a decadência dos Vender, que tudo fazem para não ter suas ações desmascaradas. Martin, sobrinho de Henrik, revela-se possuidor dos traços malignos do pai, com uma frieza digna de Lisbeth. Esta, no instante em que com ele se defronta, joga sobre ele todo o ódio acumulado em suas relações com os homens que a fizeram sofrer. Inclemente, ela faz da “Lei do Talião”, olho por olho, dente por dente, algo menor: uma cena de arrepiar.

Embora, a narrativa conduzida por Oplev torne o filme instigante, sua trama não deixa de ser nebulosa. Ele tenta torná-la assimilável com uma encenação grandiosa, montagem gráfica, tomadas panorâmicas, ambientes sombrios. Mas tem dificuldade para encontrar o fechamento certo. Usa dois prólogos, dominados pelo emocional, que reduzem o impacto do filme. Descamba para o dramalhão, a necessidade de ter um fecho otimista, numa obra pontuada pelo realismo frio, ditado pela brancura da neve. Puro cinemão, ainda que bem estruturado e cheio de reviravoltas.

“Os Homens Que Não Amavam as Mulheres”. (“Man Sim Hatar Kvinnor”). Aventura. Suécia/Dinamarca/Alemanha. 2009. 152 minutos. Roteiro: Niels Arden Oplev/Rasmus Hersterberg/ Nicolai Arcel, baseado no romance “Millennium 1”, de Stieg larsson. Direção: Niels Arden Oplev. Elenco:Michael Nyqvist, Noomi Rapace e Sven-Bertil Taube.



Cloves Geraldo * * Jornalista e cineasta, dirigiu os documentários "TerraMãe", "O Mestre do Cidadão" e "Paulão, lider popular". Escreveu novelas infantis,  "Os Grilos" e "Também os Galos não Cantam".

Fonte: Publicado dia 21 de Maio de 2010 - 0h08
Portal: http://www.vermelho.org.br/coluna 

Não silencio sobre direitos e cidadania para não ser cúmplice

Sobrevivesse ou não, deveria “entrar na Justiça”

O que dizer a um marido que dirige 120 quilômetros com a mulher em coma, 13 dias após o parto, e não encontrou socorro no caminho, embora tenha tentado num hospital em Pará de Minas? Disse-lhe que desconhecer os riscos dá coragem para atos como o dele.


Raramente algo me surpreende num pronto-socorro, depois de tantos anos pelejando. Mas às 6h30 da matina, após quase 24 horas de plantão, ver o enfermeiro levando uma mulher jovem, aparentemente em coma, para a sala de emergência, e saber que ela veio no carro da família, de um lugar a 120 km da capital, é estranho. Pois Minas é o Estado que mais possui ambulâncias e tem enraizada, desde priscas eras, a ideia da ambulância como, em si, um serviço de saúde. Candidato dono de ambulância não perde eleições nas Gerais.

Doente atendida, ânimos serenados e saindo do plantão, fui à portaria. Lá, uma família desolada: o marido, o filho de uns 8 anos, a mãe e uma irmã da mulher com um bebê de 13 dias nos braços. Uma cena chocante. Procurei chão ao saber que todos vieram no mesmo carro! Sem saber o que dizer, mas, como sou prática, pedi a uma enfermeira que providenciasse um pediatra para examinar o bebê e orientar a família sobre a sua alimentação. O que foi feito.

Meu mal-estar era profundo. De que adiantam as minhas lágrimas? De nada! Então, eu as engoli. Disse ao marido que tudo o que a medicina sabia fazer seria feito, porém estávamos recebendo a mulher em estado gravíssimo; e, se ela sobrevivesse ou não, em nome da dignidade e da memória dela, ele deveria “entrar na Justiça” para que os responsáveis fossem punidos exemplarmente. É uma história que não pode receber o selo da impunidade. Urge que as “autoridades competentes” demonstrem competência, saindo do imobilismo e tomando alguma providência. Morbimortalidade materna tem responsáveis, sempre!

O casal, ela com 37 anos, reside em Conceição do Pará (MG). No dia 11 de maio, ela fez uma cesariana em Pitangui (MG). Obteve alta no dia seguinte. No dia 19, apresentou forte dor de cabeça. Foi ao médico. Mesmo medicada, na sexta-feira à noite, a dor se tornou insuportável. Pediu ao marido que a levasse a Pará de Minas, um lugar de “mais recursos”. Não foi atendida. A mãe declarou que pedia para que não deixassem a sua filha morrer e implorou por uma ambulância. E nada! Sem nenhum médico ter se dignado a vê-la, da porta do hospital, a família pegou a estrada para Beagá.

Era sábado, 22 de maio. Amanhecia. No mesmo dia foi para o CTI, num pós-operatório neurocirúrgico (hemorragia subaracnoidea). Era uma paciente que precisava vir para Beagá, pois em sua cidade e naquela onde não foi acolhida eram parcos os recursos para a doença dela. Todavia, faria uma enorme diferença para ela ter sido atendida antes e transportada adequadamente. São cenas chocantes de descasos assim que dão todo sentido ao 28 de maio - Dia Internacional de Ação pela Saúde da Mulher, e no Brasil, desde 1994, Dia Nacional de Redução da Mortalidade Materna.

“Morte materna é a morte de uma mulher durante a gestação, ou dentro de um período de 42 dias após o parto, independentemente da duração ou localização da gravidez ou por medidas tomadas em relação a ela”. O 28 de maio é uma vitrine da história do feminismo e de todos espaços de resistência da luta mundial das mulheres pelo direito à saúde, em especial o sagrado direito de não morrer antes do tempo por causas preveníveis e evitáveis, e nem cruel, como a morte materna.
Fatima Oliveira  * Médica e escritora. É do Conselho Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução e do Conselho da Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe. Indicada ao Prêmio Nobel da paz 2005.

Fonte: Publicada 26 de Maio de 2010
Portal:  http://www.vermelho.org.br/coluna

Cuidado com as filhas de Obama

Quem advertiu foi o próprio presidente. Malia e Sasha são duas bonitas meninas que completam 11 e 9 anos. Elas têm em Michelle e em Barack um duplo arsenal genético para serem no futuro muito elegantes. Mas, parece que ainda são duas diabinhas, a julgar pela bricadeira que Obama fez, num jantar público, para alguém que se aproximava de suas filhas: "Tenho duas palavras para vocês: zangões predadores".


Foto: Julilanne Showalter (Reuters)  
 
Era uma referência à mais nova arma de extermínio do império que ele governa: o veículo aéreo não tripulado, os aviões zangões da CIA, que vêm realizando operações de assassinato no Afeganistão e no Paquistão. Também já foram usados no Iêmen e na Somália, segundo reportagem especial da Reuters¹, publicada no Huffington Post, sob o sugestivo título de "Como a Casa Branca aprendeu a amar o programa de aviões zangões da CIA".

Mais que uma banalização dos assassinatos, a permanente exibição desses zangões representam a velha arrogância da cultura do poder nos EUA, daquelas que os caubóis de Hollywood materializavam em suas pistolas e botas cravejadas de prata, diante do povoado assustado. A mesma arrogância das ameaças de autoridades da Casa Branca, mostrada no Estadão² desta terça-feira: “O Brasil está desperdiçando toda a boa vontade dos EUA... Se o acordo for usado por outros países para adiar as sanções, isso vai prejudicar Brasil e a Turquia nos EUA”.

 “O acordo não muda as medidas que estamos adotando para que o Irã cumpra suas obrigações, incluindo sanções”, disse o porta-voz da Casa Branca, Robert Gibbs. Uma arrogância que bate de frente com a receptividade do Financial Times³, que em editorial apoiou o acordo como uma saída para o impasse com o Irã. Ou com a observação do Council on Foreign Relations4, de NY, a instituição mais influente sobre a política externa dos EUA, para quem o acordo “põe EUA e seus parceiros europeus em situação difícil”, mas “afinal, receber bem a troca de combustível anunciada pode ser a escolha certa para os EUA”.

O analista David Rothkopf, da Foreign Policy5, avalia que o acordo pode ter derrubado anos de decisão bilateral entre EUA e União Soviética e depois EUA e a “comunidade internacional”, no conflito para definir os rumos da região. O acordo Brasil/Turquia/Irã também foi reconhecido por setores brasileiros que costumam ser críticos à nossa política externa, como a Folha de S Paulo6, em editorial nesta terça-feira. Como o ex-ministro Rubens Ricupero, em entrevista ao portal Terra Magazine7, e como o jornalista Jânio de Freitas8, para quem “Já se pode considerar que Lula e a sua equipe de relações externas fizeram no Irã um trabalho positivo para o Brasil”.

Em editorial nesta terça-feira The Guardian9 também caminha na contramão da arrogância de EUA e “comunidade internacional”. O sóbrio jornal britânico disse que o rascunho de sanções preparado contra o Irã “pode ser visto como um tapa das grandes potências nos esforços de negociação de outros países”. E aconselhou: “porém, neste mundo multipolar, Obama não pode se permitir tal coisa”. O jornal também elogiou Turquia e Brasil e lembrou o Japão: “juntas, essas nações assumiram o papel de negociador honesto abandonado por Inglaterra, França e Alemanha”, disse The Guardian.

Na mesma contramão, Roger Cohen, do New York Times10, lamenta que Brasil e Turquia tenha sido esnobados depois de “responderam ao chamado de Obama por uma nova era de responsabilidades compartilhada”. Para Cohen, os EUA não conseguem mais "impor soluções" às crises globais e sua reação ao acordo em Teerã "não fez nenhum sentido". Também o francês Le Monde11, em editorial desta quinta-feira, destaca as atuações de Brasil e Turquia que, depois de sucessos nos temas ambiental e comercial, marcaram uma nova etapa. “Os livros de história vão guardar esta data, 17 de maio, quando o Brasil e a Turquia propuseram à ONU o acordo negociado com Teerã”.

Se os zangões predadores de Obama deixarem.

(1) http://www.reuters.com/article/idUSTRE64H5SL20100518

(2) http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100518/not_imp553182,0.php

(3) http://www.ft.com/cms/s/0/9304584a-61e2-11df-998c-00144feab49a.html

(4) http://www.cfr.org/publication/22144/irans_sketchy_uranium_deal.html

(5) http://rothkopf.foreignpolicy.com/posts/2010/05/17/the_return_of_plan_b_emerging_power_diplomacy_in_the_middle_east

(6) http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1905201001.htm

(7) http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI4435512-EI6578,00-Lula+merece+aplausos+opina+Ricupero+sobre+acordo+com+Ira.html

(8) http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1805201005.htm

(9) http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2010/may/19/iran-nuclear-processing-un-sanctions

(10) http://www.nytimes.com/2010/05/21/opinion/21iht-edcohen.html

(11) http://www.lemonde.fr/opinions/article/2010/05/19/nucleaire-iranien-le-sud-emergent-veut-sa-place-dans-la-negociation_1353888_3232.html

Sidnei Liberal  * Médico, membro da Direção do PCdoB – DF

Fonte: Publicada 26 de Maio de 2010 - 0h02
http://www.vermelho.org.br/coluna