segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Mulher livre numa sociedade livre

Carlos Pompe *

A sociedade considera a mulher inferior ao homem ? a sociedade, pois inclusive muitas mulheres assim pensam e poucos, talvez pouquíssimos, homens pensam o contrário. É verdade que a maioria dos homens é mais forte e tem estatura maior do que as mulheres.

Naturalmente, durante a gestação e a amamentação a fêmea de qualquer mamífero vive situações de desvantagens em relação ao macho, tanto no que diz respeito à busca de alimentação quanto na autodefesa num ambiente hostil. Num escrito de 1969, Isaac Asimov, abordando o que seria a sociedade em 10 mil antes de Cristo, aventa que o sexo e algum tipo de status provavelmente levavam a que o caçador primitivo cuidasse da mulher, em especial nos períodos de gravidez e, depois, da mãe e do recém-nascido. E aponta que, já nesse período, a mulher ficava em desvantagem, pois trocar sexo por alimento era “um acordo terrivelmente injusto, pois uma das partes pode rompê-lo impunemente e a outra, não”. Daí ele argumenta que, por razões fisiológicas, “a união original entre homens e mulheres era estritamente desigual, com o homem no papel do amo e a mulher no papel da escrava.”
Quando a humanidade chega à história escrita, essa divisão estava consolidada. Mire o exemplo das mulheres de Atenas: eram inferiorizadas e sem direitos, como mostra a canção do Chico Buarque e Augusto Boal. Na Bíblia, não faltam exemplos de destrato da mulher pelo homem, inclusive no Novo Testamento. Note-se os modos de Jesus com a mãe, aos 12 anos, em Lucas 2: 41-52, quando, após três dias desaparecido, os pais o encontram conversando com doutores no Templo. A mãe pergunta-lhe por que fez sumiu sem avisar, e o pivete rebate: “Por que me procuravam? Não sabiam que eu devo estar na casa do meu Pai?” Os pais ficaram sem entender o que o garoto acabava de lhes dizer, registra o evangelista. Ou veja-se o desdém com que a trata, já na cruz: “Jesus viu a mãe e, ao lado dela, o discípulo que ele amava. Então disse à mãe: ‘Mulher, eis aí o seu filho”. Depois disse ao discípulo: ‘Eis aí a sua mãe’. (João 19: 25-27). Falasse eu assim com minha mãe (inclusive o descaso de chamá-la “mulher” e não “mãe”), e levaria um safanão – “Foi pra isso que te criei, filho ingrato?”, diria dona Anita.
A submissão da mulher ao homem também está na carta de Paulo aos Efésios, considerada pela Igreja Católica como “a carta do mistério da Igreja”. Assim está escrito: “Mulheres, sejam submissas a seus maridos, como ao Senhor. De fato, o marido é a cabeça da sua esposa, assim como Cristo, salvador do Corpo, é a cabeça da Igreja.  E assim como a Igreja está submissa a Cristo, assim também as mulheres sejam submissas em tudo a seus maridos” (5: 22-24).
Coisas do passado? Nem tanto. É claro que as mulheres obtiveram avanços em coisas que, embora recentes, hoje, parecem triviais, como o direito de votar e se candidatar. E a violência contra elas, mesmo longe de ter acabado, tem sido inibida em vários países. No Brasil, temos a Lei Maria da Penha, que penaliza autores de brutalidades contra as mulheres, mas mesmo esta legislação ainda é contestada, inclusive por juízes. No início do passado mês de fevereiro, por apenas um voto de diferença, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que lesões corporais leves praticadas contra a mulher no âmbito familiar também constituem delito de ação penal pública incondicionada. Dois juízes não aceitaram essa interpretação, mas felizmente três votaram pela decisão.
As mulheres caminham para a igualdade? Os fatores físicos que, lá na pré-história, na visão de Asimov, teriam levado à supremacia masculina, continuam presentes. A maioria dos homens continua sendo mais forte e tendo estatura maior que as mulheres e estas mantêm a exclusividade da gestação. Porém, os avanços científicos permitiram que mesmo os trabalhos mais pesados já não exijam músculos, mas maquinarias, o que põe abaixo a primeira “vantagem” masculina. E apesar da reação conservadora e religiosa, já se desenha a possibilidade da gestação ocorrer fora do corpo da mulher. O sexo, em especial depois dos métodos anticonceptivos, foi desvinculado da procriação.
Ao mesmo tempo, o desenvolvimento social já colocou para a humanidade um problema que ela pode resolver: relações sociais e econômicas que sejam de cooperação, e não de exploração. Porque a sociedade dividida em classes – exploradoras e exploradas – existe há milênios, mas não é eterna e estão dadas as condições objetivas, de produtividade, para ser substituída por um mundo novo, sem burgueses e proletários e sem, também, as proletárias dos proletários. Como antecipam Karl Marx e Friedrich Engels, no Manifesto do Partido Comunista, em substituição à sociedade dividida “com as suas classes e os seus antagonismos de classe, surgirá uma associação em que o livre desenvolvimento de cada um será a condição do livre desenvolvimento de todos”. A luta emancipacionista de mulher integra e dá força à luta da humanidade por sua própria emancipação.

Batinas alvoroçadas com o bispo reprodutor

Carlos Pompe *

“Às vezes, quero crer, mas não consigo. É tudo uma total insensatez”, cantavam Vinícius de Moraes e Toquinho numa de suas obras de sucesso. A constatação vem à mente neste momento em que saem à luz mulheres que afirmam ter filhos com o presidente paraguai

Uma de suas ex-concubinas afirma que ele é pai de pelo menos seis bastardos. A direita latino-americana – brasileira inclusive – assanha-se, porque Lugo é identificado com a democracia e a esquerda, palavras que causam ojeriza às elites regionais. E, pelo lado dos cristãos, o assunto reacende o debate sobre o celibato a que os seguidores do Vaticano se comprometem ao serem ordenados.


Em Mateus, 8:14, Jesus cura a sogra de Pedro (considerado pelos católicos seu primeiro papa) de uma febre – Pedro era, portanto, casado. Estudiosos afirmam que no início do cristianismo, o celibato era uma opção pessoal, geralmente adotada por eremitas e monges.


Quando, em 313 d.C, o Imperador Constantino tornou o cristianismo fé oficial, os dirigentes cristãos passaram a ser pagos pelos seus serviços eclesiásticos e a gozar privilégios especiais na sociedade romana. Os bispos passaram a  ser autoridade civil e jurídica. Os chefes da Igreja se tornaram hierarquia governante. Escreve o ex-padre John Shuster: “A igreja adotou a prática romana de permitir que somente os homens mantivessem a autoridade institucional. ... O celibato foi criado”.
Segundo este autor, os romanos se abstinham “das relações conjugais, para conservar a energia, antes de uma batalha ou de um evento esportivo”, o que levou a que fosse ordenado aos padres “absterem-se de intimidade com suas esposas, na véspera da celebração das missas. ... o celibato foi estabelecido como o mais elevado estado de santidade e consequente supressão do sacerdócio casado”.
Em 366, o papa Damásio proibiu os padres de ter relações sexuais com suas (deles) esposas. Em 385, são Sirício abandonou esposa e os filhos para ser papa e proibiu os padres de continuarem casados. Ele enviou carta a Himério de Tarragona (10 de fevereiro de 385) considerando ser um “crime” gerar filho muito tempo depois da ordenação, mesmo “da própria esposa”; “estejam todos os padres e levitas obrigados, por uma lei indissolúvel, a consagrar-se à castidade de coração e de corpo desde o dia da ordenação”, insistiu, pois considerava os atos sexuais “apetites obscenos”. Dois anos após sua morte (que ocorreu em 399), outro santo católico, Agostinho, escreveu: “Nada é tão poderoso para neutralizar o espírito de um homem como a carícia de uma mulher”.
Como em outros mistérios, foram interesses bastante terrenos que levaram a Igreja a investir contra o casamento dos integrantes da sua hierarquia, do padre ao papa e às mulheres que aderiam ou lhe eram entregues na condição de madres e freiras. No concílio de Trento, ocorrido entre 1545-63, o celibato foi adotado como regra. Segundo alguns estudiosos, para evitar que a Igreja perdesse posses em eventuais disputas de herança. A favor dessa tese, está o fato de que o papa Urbano II (ele legislou de 1088 a 1099) ordenou a prisão dos padres casados que ignorassem a lei do celibato e determinou a venda de suas esposas e filhos como escravos, com o dinheiro destinado à Igreja, para suas divinas obras. Daí a prática de padres que colocam suas posses em nome de familiares próximos (pais, irmãos, tios, primos), como forma de evitar que a Igreja açambarque tudo.


A fertilidade do ex-bispo e atual presidente paraguaio levou a que a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Assembleia Geral em Indaiatuba, interior paulista, desde o dia 20, resolveu voltar a discutir (e, tudo indica, reafirmar) o celibato. O presidente da entidade, dom Geraldo Lyrio Rocha, inimigo da educação sexual nas escolas e do uso de camisinha (esta sua orientação parece ser seguida, ao menos às vezes, pelo paraguaio...) lamentou os episódios envolvendo seu ex-parceiro de batina.


Os que têm fé que continuem insistindo na ignorância sexual e descartando o uso da camisinha. Mas, convenhamos, Vinícius e Toquinho têm razão: “É tudo uma total insensatez”..

 Woodstock e o triunfo do indivíduo

Carlos Pompe *

Foi há 40 anos. De 15 a 17 de agosto de 1969 ocorreu o Festival de Woodstock. Um encontro de rock and roll movido a muitas drogas, que se transformou num ato em defesa do amor livre, da paz e contra o alistamento militar obrigatório que obrigava jovens estadunidenses a lutarem no Vietnã.

Numa fazenda despreparada para a grandiosidade que o encontro alcançou, 31 atrações musicais foram apresentadas, incluindo o guitarrista Jimi Hendrix e as cantoras Janis Joplin e Joan Baez – esta, grávida de seis meses e com o pai da criança preso, por ter se recusado a ir matar vietnamitas na Ásia.

Woodstock foi um projeto comercial que fugiu totalmente do controle de seus idealizadores, Michael Lang, John P. Roberts, Joel Rosenman e Artie Kornfeld. Planejavam um espetáculo ao ar livre, sem nenhum outro intuito que o retorno financeiro, e que atrairia umas 200 mil pessoas. 

Foram surpreendidos por mais de 500 mil jovens que derrubaram as cercas da fazenda,tornaram o show gratuito e forçaram a que o governo improvisasse uma enorme infraestrutura para garantir-lhes alimentação e atendimento médico e sanitário. Prudentemente, as autoridades liberaram as drogas. Surrealmente, a comunidade conservadora de proprietários agrícolas woodstockiana ficou feliz em constatar que a garotada era boa gente e – pasmada – que não foram registrados furtos ou violências durante os “três dias de paz e amor”, como ficaram conhecidos quando lançados os discos e o filme (hoje CDs e DVD) que documentam o episódio.

As únicas fatalidades foram uma morte devido a uma provável overdose de heroína e outra decorrente de um atropelamento por trator, além de quatro abortos. Por outro lado, dois nascimentos ocorreram, um dentro de um carro no congestionamento e outro em um helicóptero.

Canções e discursos falaram contra a guerra do Vietnã. Artistas ainda desconhecidos do grande público mundial conquistaram renome e até hoje estão presentes no cancioneiro popular, como Carlos Santana e Joe Cocker – que com sua interpretação deu novo sentido e roupagem completamente nova para With a Little Help from My Friends (Com uma pequena ajuda de meus amigos), de Lennon e McCartney. O beatle George Harrison estava lá, mas não se apresentou.

A interpretação de Jimi Hendrix da Star Spangled Banner, o hino nacional norte-americano, simulando tiros de metralhadora e bombas caindo, tornou-se marco do rock instrumental. Joplin apresentou sua versão imortal de Summertime. No ano seguinte, ambos com 27 anos, morreriam (ele, em setembro; ela, em outubro) em virtude do abuso de drogas. Ou, como conta o historiador Eric Hobsbawn, “caíram vítimas de um estilo de vida fadado à morte precoce”.

Os três dias de música, drogas e defesa da paz se tornaram símbolo da época. Organizadores e público não tinham objetivos políticos claros e definidos – alguns artistas, sim; a maioria dos que se apresentaram, não. Mas o sentimento pacifista se fez presente e se fez marca do evento. Não se tratava de uma contestação ao modo de vida americano, mas um desejo de que esse modo de vida fosse possível sem guerras de conquista, sem agressão aos outros povos, sem corrida armamentista. A liberdade e liberalidade sexual assumiam a forma de protesto contra o Estado, a família, o convencionalismo. “Quando penso em revolução, quero fazer amor” era uma das palavras de ordem daqueles jovens. Como observou Hobsbawn, o anarquismo de Bakunin ou Kropotkin correspondiam muito mais de perto às idéias da maioria daqueles rebeldes, com sua pregação espontânea, não organizada, antiautoritária e libertária. Não havia um projeto solidário ou social, mas o triunfo do indivíduo – de milhões de indivíduos – sobre a sociedade.

Muitos daqueles jovens embarcaram e fizeram o movimento hippie. Como afirmou outro beatle, Ringo Starr, já no final do século passado, “alguns hippies ainda estão por aí, mas aquilo acabou”.

CARISMA E PODER


Atentado religioso contra o Estado brasileiro

Carlos Pompe *

Um acordo entre o governo brasileiro e a Santa Sé, estabelecendo um Tratado Jurídico da Igreja Católica com o país, foi aprovado na noite de 26 de agosto pela Câmara dos Deputados e encaminhado para o Senado Federal. Entidades e pessoas de bom senso vêm se manifestando contra mais esse atentado contra a inteligência.

Lula e Papa Bento 16

Unidos em Cristo, contra a laicidade

Na Câmara alguns parlamentares conseguiram deixar o projeto menos indigesto, mas nem por isso a papa é tragável. O documento que o governo quer tornar lei foi assinado pelo presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, em novembro de 2008.

Mais uma vez a Igreja Católica se vale de seus adeptos no poder para obter privilégios e atropelar o conjunto da sociedade. No caso do presente acordo, como os evangélicos também querem usar dinheiro e espaços do poder público para seus fins, conseguiram que a Câmara chancelasse também um projeto de lei de julho de 2009 que praticamente copia o que diz o acordo com o Vaticano, só que estendendo os benefícios a todas as religiões.

Mesmo aprovado, o projeto ainda não está com sua redação final pronta, devido aos trâmites burocráticos. Nessa guerra religiosa ninguém é santo. O deputado federal Miguel Martini (PHS-MG), católico, quis tripudiar: “Hoje, qual o critério para se abrir uma igreja evangélica? Nenhum.” Assim como para abrir um templo católico, judeu, islâmico ou do candomblé, acrescento eu. Mas se os ateus formos abrir uma casa para a difusão da ciência, teremos que pagar impostos e não poderemos invadir as escolas públicas para nos contrapor à lavagem cerebral de nossas crianças...

Um dos pontos do texto diz que "o ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental". Quem frequenta escolas que ministram pregação religiosa (elas usam o eufemismo “aula de religião”) sabe o quanto é constrangedor um aluno sair da sala porque não quer assisti-la ou porque seus pais rezam por outra cartilha. Uma agressão ao estudante. A professora titular da Faculdade de Educação da USP, Roseli Fischmann, lembra um outro problema: " muitas pessoas dizem que quem luta pelo Estado laico é contra a religião, contra os católicos [e isso criaria uma antipatia entre os grupos]".

Em parecer de junho deste ano, a Coordenadoria de Ensino Fundamental do Ministério da Educação afirmou que o acordo fere a legislação brasileira e poderá gerar discriminação dentro da escola pública. No caso da particular, o documento ressalta que as instituições de ensino cristãs têm autonomia para deliberar sobre o conteúdo. O Itamaraty diz que o MEC havia dado parecer favorável ao artigo em dezembro de 2007, mas o ministério reafirma que já havia manifestado sua discordância anteriormente. A AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) divulgou uma nota pública informando que a ratificação do texto "implicará em grave retrocesso ao exercício das liberdades e à efetividade da pluralidade enquanto princípio fundamental do Estado".

Além da pregação religiosa, o projeto ainda trata do casamento e da assistência espiritual que a Igreja Católica pode dar a presidiários (outro público preferencial dos evangélicos) e em hospitais.

Segundo o presidente da Atea (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos), Daniel Sottomaior, o texto traz uma "linguagem confusa proposital", e cita o artigo sobre o casamento, que abriria espaço para que a Justiça brasileira passe a ser obrigada a aceitar sentenças de anulação matrimonial do Vaticano.

Mas além de se locupletar com a estrutura estatal, o papa e sua cúpula querem mais! Pelo acordo, querem impedir também legalmente que padres, freiras ou outras categorias de religiosos recorram à Justiça do Trabalho reivindicando direitos por serviços prestados à Igreja. Querem vetar, assim, o acesso de seus pastores e ovelhas aos direitos da legislação trabalhista brasileira. Há casos de padres que, ao deixar o sacerdócio, buscam indenização. O mesmo ocorre com fiéis voluntários.

Dificilmente essa gororoba indigesta deixará de ser aprovada no Congresso e de ser sancionada pelo presidente confessadamente católico.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Maldita realidade concreta

Luciano Siqueira *

Sobre a necessidade de se considerar a realidade como ela é, e não como a idealizamos, já se disse e se escreveu muito. Dependendo do estado de humor ou do ambiente, se austero ou descontraído, tanto podemos citar Plekhanov, para quem se deve lutar “com as quatro patas assentadas na realidade” ou o amigo poeta e ex-companheiro de cadeia Marcelo Mário de Melo, que costuma dizer que o problema de uma certa esquerda atuante no país é justamente “a maldita realidade, que teima em mudar”.

O fato é que, quando se trata da política real, todo e qualquer comportamento apoiado tão somente em nossos desejos, por mais legítimos e meritórios que sejam, sem a devida consideração do curso objetivo dos acontecimentos, está fadado ao fracasso. Ou ao estéril doutrinarismo.

Nesses dias turbulentos em que a crise do Senado esteve (ou ainda está?) no centro de tudo, o PT virou saco de pancadas tanto de quem a ele se opõe frontalmente (as correntes de oposição), como de muitos que, embora permaneçam na área de influência petista (e de Lula) aproveitam a onda para sair bem na foto.

Tem de tudo. Desde a tese de que Sarney terá se tornado o divisor de águas entre o PT “ético” e o PT “pragmático”, até os que – como o Frei Beto, em sua breve passagem pelo Recife – chegam a cobrar do presidente a responsabilidade por não ter erradicado a pobreza nem realizado reformas fundamentais.

Não se trata de contestar as boas intenções do religioso amigo de Lula, nem medir a dimensão do seu desencanto com o Partido dos Trabalhadores. Mas é preciso sublinhar que acabar com a pobreza no Brasil é empreitada que extrapola em muito os limites do governo, pois reclama transformações de caráter estrutural. E as reformas – diria cá com meus botões de militante do PCdoB -, sejam elas a seis essenciais e urgentes (agrária, educacional, tributária, urbana, política e da mídia) dependem muito mais do que da vontade e do poder de fogo atual do presidente.

Na verdade, reformas dessa envergadura só se viabilizam com uma inversão na correlação de forças ora existente na sociedade brasileira. Ou seja, o estado em que se encontram as forças políticas e sociais que as desejam; as forças que a elas se opõem; e o grau de adesão da maioria da população. Esse é um dado da “maldita realidade concreta” que não podemos abstrair, sob pena de não sincronizarmos desejos com possibilidades e de desconhecer a variável acúmulo de forças por parte dos que querem efetivamente avançar nas reformas.

Muitas das dificuldades atuais que limitam o governo Lula repousam precisamente na dita correlação de forças, que impele o PT a priorizar a aliança com o PMDB para assegurar a governabilidade e a maioria eleitoral necessária em 2010. E alterar a maldita realidade concreta.

Mudar isso exige mais do que opiniões difusas, exige muito trabalho cotidiano para elevar o nível de consciência e de organização do nosso povo – fator decisivo para alterar a correlação de forças numa direção mais avançada.

COVARDIA DA GOVERNADORA DO RIO GRANDE DO SUL

De Canudos à Fazenda Southall: Crônicas de Mortes Anunciadas

Diorge Konrad *

“O adversário tem, daquela hora em diante, visando-o pelo cano da espingarda, um ódio inextinguível, oculto no sombreado das tocaias...”


“Pelas frinchas das paredes estourava de minuto em minuto um tiro de espingarda. (...) foram de cobardia feroz” (Euclides da Cunha, em Os sertões) **

Em 1909, quando Euclides da Cunha se foi, já havia sido um enorme sucesso em vida, ganhando a imortalidade na Academia Brasileira de Letras e um lugar no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Seu livro Os sertões, lançado sete anos antes, apesar do conservadorismo positivista, se transformou em um marco do pensamento social brasileiro, expressão original das contradições históricas de nosso País e da luta pela terra, heranças de um passado escravista e latifundiário. Cem anos depois da morte de Euclides, a luta e as mortes retratadas em sua obra continuam. No coração do latifúndio gaúcho, em São Gabriel, foi assassinado mais um sem-terra: Elton Brum da Silva.

Em Canudos, se falava de um movimento reacionário, messiânico, anti-republicano. Contra os miseráveis, liderados por Antônio Conselheiro, uma República da lei e da ordem que não aceitava a existência da questão social, tratando-a como caso de polícia.

Para a solução do conflito agrário, resultado do abandono político de milhares de sertanejos despossuídos, a repressão armada a serviço das classes dominantes, regionais ou nacionais.

Euclides da Cunha desvelou não apenas Canudos, mas o Brasil da miséria e da exploração. Contraditoriamente, formado na mesma ideologia política dos que massacraram Canudos, sua pena ajudou a compreender parte de um País e de uma classe dirigente que não dá os anéis, nem teme perder os dedos.

Em dois anos, de 1896 a 1897, parte do sertão da Bahia foi marcado por um movimento social e de religiosidade popular que a visão eurocêntrica dos senhores não podia conceber e entender. A grave crise econômica oriunda da transição do trabalho escravo para o trabalho livre, com a opção elitista pela força de trabalho branca e imigrante, restou mais grave para as regiões de latifúndio. Somado com as fases de seca, o desemprego no campo levou os sertanejos para a esperança do Arraial de Canudos, reunindo milhares de famélicos, mas esperançosos trabalhadores do campo.

Uma condição social temerosa para os grandes fazendeiros, para setores da Igreja Católica, enfim, para a oligarquia republicana. A solução do ?problema? se deu pelas expedições militares, três delas derrotadas, que passaram a determinar o destino de Canudos. Milhares de sertanejos mortos, mais um quarto deste total de militares, além do incêndio dos mais dos cinco mil casebres da localidade.

No Rio Grande do Sul, mais de um século depois do Canudos, tão bem retratado por Euclides da Cunha, temos uma tardia e teimosa ofensiva neoliberal, quase extemporânea diante da grave crise da política econômica hegemonizada pelo capital financeiro. No governo de Yeda Crusius, marcado pela criminalização dos movimentos sociais, para o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e o adiamento da solução da questão agrária no estado, bem como para outras reivindicações, a lei e a ordem, a repressão tem sido a marca para a solução dos conflitos.

Como já disse no artigo ?Novo jeito de governar privado, corrupto e repressor?, publicado aqui, em 25 de junho de 2008, no governo de Yeda Crusius, iniciado em 2007, o novo jeito de governar, plataforma de campanha, começou a mostrar a sua velha face neoliberal logo em seu início: a forma foi a venda de ações do Banrisul, através do processo de privatização travestido de capitalização, além da opção pelo chamado déficit zero, uma aberta política de não-investimento social. Porém, não bastava somente a privatização do Estado. Este processo veio acompanhado de corrupção e repressão.

No primeiro caso, quase dois anos depois da Operação Rodin, iniciada em novembro de 2007, as denúncias iniciais do Ministério Público e da Polícia Federal, as quais demonstraram as articulações entre as Fundações Privadas de Apoio (Fatec e Fundae), ligadas a Universidade Federal de Santa Maria, empresas sistemistas e a direção do Detran-RS, num super-esquema de desvio de recursos públicos que envolveria em torno de 44 milhões de reais, transformaram a governadora em ré em uma ação de improbidade administrativa ajuizada pelo Ministério Público Federal. A ação contra ela e mais oito importantes nomes da política gaúcha, entre assessores e deputados da base aliada, fez a crise política definitivamente bater as portas do Rio Grande do Sul e do modo tucano de governar. Mesmo que a grande mídia nacional faça blindagem deste processo, sem relacioná-lo com o projeto das classes dominantes para 2010.

Como resultado, depois da CPI do DETRAN, desenvolvida em 2008, nova Comissão Parlamentar de Inquérito está tendo início na Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, a fim de averiguar o governo do PSDB-DEM.

Pois, foi nesta quadra de uma corrupta política neoliberal que a face para quem protesta e reivindica ganhou seu capítulo mais recente.

Diante das denúncias de corrupção e a crise instalada no centro do governo do Rio Grande do Sul, o movimento social gaúcho voltou às ruas, retomando as manifestações públicas, exigindo o Fora Yeda. Estudantes, sindicalistas, Via Campesina, MST, Movimento de Luta pela Moradia e partidos políticos de oposição, entre outros movimentos, resolveram enfrentar a opção governamental. Tendo atrás de si o velho discurso da manutenção da lei e da ordem, as classes dominantes gaúchas e seu governo, chegaram a colocar Paulo Roberto Mendes no comando da Brigada Militar, numa clara demonstração da opção pelo confronto.

Depois de alguns meses de intensa repressão, o coronel foi promovido para a Justiça Militar do Rio Grande do Sul, enquanto a mudança formal não mudou a linha política de militarização na solução das questões sociais.

O clima político repressivo no Rio Grande do Sul tem na Farsul, entidade que representa os proprietários e grandes latifundiários gaúchos, base do apoio social ao governo de Yeda Crusius, um dos seus principais representantes.

Ainda em 2003, durante o Governo Germano Rigotto, ao qual também a Farsul deu sustentação política, a marcha do MST em direção a São Gabriel se tornou uma marca dos conflitos agrários recentes na formação social do estado. Os fazendeiros chegaram instrumentalizar seus peões em cavalgadas intiidatórias, fazendo de tudo para que os Sem Terra não chegassem até a Fazenda Southall, desapropriada como improdutiva para fins de reforma agrária.

Nas cidades vizinhas, enquanto as famílias rumavam para aquela cidade da fronteira Oeste, erguiam-se barreiras de camionetas importadas a fim de impedir que se chegasse a São Gabriel. Proprietários rurais e o prefeito da cidade, Rossano Gonçalves,[1] se colocaram ideologicamente contra a desapropriação da Fazenda, após a publicação de decreto do governo federal que a declarou de utilidade pública para fins de reforma agrária, numa área de 13 mil hectares.

O Poder Judiciário estadual chegou a paralisar a marcha, enquanto os reacionários gabrielenses lançaram manifestos apócrifos contra os miseráveis e deserdados da terra. Num deles, chamado ?Exterminar os ratos do MST?, o bisonho texto demonstrava o ódio de classe dos herdeiros atuais dos que justificaram os massacres de Canudos, na Bahia, de Contestado, entre Santa Catarina e Paraná, do Fundão, no Rio Grande do Sul e de Eldorado dos Carajás, no Pará. Vejamos:

?Povo de São Gabriel, não permita que sua cidade, tão bem conservada nesses anos todos, seja agora maculada pelos pés deformados e sujos da escória humana. São Gabriel, que nunca conviveu com a miséria, terá agora que abrigar o que de pior existe no seio da sociedade. Nós não merecemos que essa massa podre, manipulada por meia dúzia de covardes que se escondem atrás de estrelinhas no peito, venham trazer o roubo, a violência, o estupro, a morte. Esses ratos precisam ser exterminados. Vai doer, mas para grandes doenças, fortes são os remédios. É preciso correr sangue para mostrarmos nossa bravura. Se queres a paz, prepara a guerra. Só assim daremos exemplo ao mundo que em São Gabriel não há lugar para desocupados. Aqui é lugar de povo ordeiro, trabalhador e produtivo. Nossa cidade é terra de oportunidades para quem quer produzir e não oportunidades para bêbados, ralé, vagabundos e mendigos de aluguel. Se tu, gabrielense amigo, fores procurado por um faminto rato do MST, dê-lhe um prato de comida, com três colheres cheias de qualquer veneno para rato. Se possui um avião agrícola, pulveriza à noite 100 litros de gasolina em vôo rasante sobre o acampamento de lona dos ratos. Sempre terá uma vela acesa para terminar o serviço e liquidar com todos eles. Se és proprietário de terras ao lado do acampamento, usa qualquer remédio de banhar gado na água que eles utilizam para beber. Rato envenenado bebe mais água ainda. Se possui uma arma de caça calibre 22, atira de dentro do carro contra o acampamento, o mais longe possível. A bala atinge o alvo mesmo há 1200 metros de distância?.[2]

No entanto, as ameaças de repressão e as ações judiciais não foram suficientes para que os Sem Terra desistissem da Fazenda Southall. Em 2008, à Estância do Céu, uma área de 5 mil hectares, parte da área, foi desapropriada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), possibilitando abrigar dezenas de famílias.

Por outro lado, a ameaça do sangue e da guerra, mantida pelos fazendeiros e pela Farsul que, não por coincidência, tem como vice-presidente Tarso Teixeira, presidente do Sindicato Rural de São Gabriel, ganhou orientação política pela Secretaria de Segurança Pública (SSP) do novo governo estadual, a partir de janeiro de 2007.

Também não foi coincidência a audiência pública, em 27 de Janeiro de 2009, que reuniu a SSP, lideranças rurais de cidade, o Ministério Público e segmentos da segurança de municípios região, em evento ocorrido justamente no Sindicato Rural de São Gabriel. Na ocasião, o secretário estadual da Segurança Pública, Edson Goularte,[3] disse que o tema segurança no campo era prioridade do estado, afirmando que a Brigada Militar e a Polícia Civil estavam permanentemente mobilizados e motivados para os enfrentamentos da questão. Goularte, entre outras declarações, disse que o parâmetro de atuação seria ?sempre a lei?, pois a secretaria sabia o que a sociedade queria.

Na ocasião, o secretário enfatizou que ?a reunião de trabalho em São Gabriel representou mais um passo decisivo na construção de ações integradas entre a Pasta, prefeituras e entidades rurais para qualificar os trabalhos já desenvolvidos no combate a violência no campo?. Ressaltou ainda que a Segurança estava ?agregando ao seu planejamento estratégico e operacional? a parceria de outras secretarias ? mais Farsul e a Federação das Associações dos Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs), visando partilhar informações que fortalecessem, mobilizassem e dessem continuidade aos ?processos de fiscalização, prevenção e segurança?. Lembrou, ainda, que o tema vinha sendo debatido pela SSP e a Farsul desde agosto de 2008, sendo que o Governo vinha dando ?constantes demonstrações de firmeza em ações de reintegração de posse, amparado pela Justiça na manutenção do respeito para com a lei e a ordem pública?.

No encontro, o proponente da audiência, Tarso Teixeira, disse que o encontro demonstrava que o Executivo estadual não media esforços na busca de ?resoluções para aumentar a segurança no meio rural?. Demonstrou a preocupação com a chegada ao município de 1.544 famílias, ou quase 10 mil pessoas, a ser assentadas em áreas recentemente adquiridas pelo INCRA. Observou que esse panorama poderia ?gerar uma espécie de favelização rural, visto a União não ter se preocupado com as variáveis de segurança, saúde, emprego, educação e impacto ambiental em São Gabriel e região quando da aquisição das terras?. Assim, para enfrentar a ?nova realidade?, o líder ruralista reivindicou o ?fortalecimento da Brigada Militar e Polícia Civil na cidade, com reforço nos efetivos e na infra-estrutura das instituições?, sem deixar de afirmar que a cidade era berço do ?Maio Verde?, uma ?espinha na garganta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra?. Sua afirmação final foi uma das mais cabais demonstrações de confiança no Governo de Yeda Crusius: ?sabemos que o Governo do Estado e a Secretaria da Segurança estão conosco?.[4]

Goularte

Edson Goularte (de pé) com Tarso Teixeira (camisa azul) e lideranças de São Gabriel e região
Foto: Amilton Belmonte/ASCOM SSP

Pois a promessa de combate à violência no campo não tardou para encontrar a sua face em São Gabriel. Na manhã de sexta-feira, 21 de agosto de 2009, após ações violentas que retiraram sem-terras da sede da prefeitura e para cumprir o mandado de reintegração de posse da ocupação da Fazenda Southall, a morte anunciada se confirmou.

O covarde assassinato do trabalhador rural sem terra Elton Brum da Silva,[5] vitimado com um tiro pelas costas de uma espingarda calibre 12, durante a desocupação pela Brigada Militar, mostrou a face do acordo entre os ruralistas de São Gabriel e o governo de Yeda Crusius. São eles os responsáveis por mais este assassinato cometido pelas classes dominantes brasileiras. É a eles que os trabalhadores brasileiros devem imputar a responsabilidade da morte de Elton. Não apenas ao comandante da operação ou ao policial militar que efetivou o disparo,[6] como querem seus superiores e os setores da mídia que tem incitado a condenação da luta pela terra no Rio Grande do Sul.



Foto de Elton, assassinado pela Brigada Militar
comandada por Yeda Crusius, no Rio Grande do Sul [7]

Como já foi dito na nota pública que o MST lançou sobre o assassinato de Elton Brum, ?o uso de armas de fogo no tratamento dos movimentos sociais revela que a violência é parte da política deste Estado. A criminalização não é uma exceção, mas regra e necessidade de um governo, impopular e a serviço de interesses obscuros, para manter-se no poder pela força?.[8]

Para terminar esta crônica, diante da indignação dos lutadores pela terra e por outro Brasil, parafraseando Euclides da Cunha, voltemos a Elton Brum, assassinado no ano do centenário da morte do grande escritor fluminense: ?a repressão legal o atingiu (...) imerso de todo no sonho de onde não mais despertaria?. Depois disso, após o passeio pelo Arraial de Canudos arrasado, Cunha ainda escreveria: ?e o silêncio descia de novo, reinando outra vez o mesmo silêncio formidável: soldados mudos e imóveis, acaroados com a borda da tapada sinistra, espectantes, na tocaia; ou, ao fundo, em roda dos brasidos, reatando as merendas ligeiras, que tinham, às vezes, uns trágicos convivas - os moradores assassinados, estirados pelos recantos...?.[9]

Notas

** ver CUNHA, Euclides da. Os sertões: campanha de Canudos. 39 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves/Publifolha, p. 104 e 132. Coleção Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro.

[1] Rossano Gonçalves, ex-deputado estadual pelo PDT, atualmente é prefeito de São Gabriel.

[2] Grifos nossos.

[3] Edson Goularte estava acompanhado do comandante-geral da Brigada Militar, coronel João Carlos Trindade Lopes, do ouvidor da Segurança, Adão Paiani, do delegado regional da Polícia Civil, Sezefredo Lopes, e do diretor do Departamento de Gestão da Estratégia Operacional da SSP, tenente-coronel Marco Antônio Moura dos Santos,

[4] Grifos nossos. As declarações acima se encontram no próprio portal da SSP do Rio Grande do Sul. Disponível em http://www.ssp.rs.gov.br/portal/principal.php?action=imp_noticias&cod_noticia=12554. Acesso em 24 ago. 2009.

[5] Elton Brum, 44 anos, pai de dois filhos, natural de Canguçu,

[6] O comandante da operação foi o coronel Lauro Binsfield, cujo histórico inclui outras ações de violência contra os trabalhadores, como no 8 de março de 2008, quando repetiu os mesmos métodos contra as mulheres da Via Campesina.

[7] Foto no blog RS Urgente, de Marcos Weissheimer. Disponível em http://rsurgente.opsblog.org/2009/08/21/fotos-mostram-que-elton-foi-morto-pelas-costas/. Acesso em 24 out. 2009.

[8] Ver a integra da nota no Portal do MST. Disponível em http://www.mst.org.br/node/7977. Acesso em 24 ago. 2009.

TRAIÇÃO EUCARISTICA


O VERGONHOSO PAPEL DA IGREJA EM HONDURAS

O golpe militar em Honduras relembra o triste papel da Igreja Católica na defesa dos privilégios dos ricaços na América Latina. Nas décadas de 1960/1970, a sua alta hierarquia organizou as marchas com “Deus, pela família e pela propriedade”, preparando o clima para a derrubada de presidentes nacionalistas. Com seu discurso anticomunista, ela deu apoio ostensivo a sanguinárias ditaduras. No Chile, ela abençoou o fascista Pinochet; na Argentina, alguns “religiosos” participaram até de sessões de tortura. Esta ligação carnal com os poderosos rachou a Igreja, com o florescimento da Teologia de Libertação e das Comunidades Eclesiais de Base, ligadas aos anseios populares.

Este setor progressista cresceu e jogou papel de destaque na luta pela democracia e por reformas profundas no continente. Mas com a ascensão do cardeal polonês Karol Wojtyla, o Papa João Paulo II, houve nova guinada direitista no Vaticano, que investiu para dizimar os religiosos mais engajados nas lutas dos povos “pelo reino de Deus na Terra”. A hierarquia ligada aos poderosos retomou a ofensiva e voltou a cometer atrocidades, como no frustrado golpe na Venezuela de abril de 2002, no apoio aos separatistas da Bolívia ou nas ações de desestabilização do governo de Cristina Kirchner na Argentina. Agora, ela novamente mostra sua fase horrenda em Honduras.

Papável com as mãos sujas de sangue

Logo após o golpe de 28 de junho, a Conferência Episcopal de Honduras divulgou nota de apoio aos militares e condenou o presidente Manuel Zelaya por “traição à pátria, abuso de autoridade e usurpação de funções”. Já o cardeal Oscar Rodrigues Maradiaga, que chegou a ser cotado para substituir o reacionário Wojtyla no Vaticano, implorou na TV que Zelaya não retornasse ao país. Agora, num habilidoso jogo de poder, a Igreja Católica tenta se cacifar politicamente. “Depois da clara aprovação do golpe, a máxima hierarquia eclesiástica reproduz, numa linguagem melosa e hipócrita, os convites ao diálogo, ao consenso e a reconciliação”, critica o filósofo Rubén Dri.

A alta hierarquia católica está temerosa com a onda de revolta da população. “O nosso país vive um caos. Não sabemos o que vai acontecer. Nas ruas, as manifestações ocorrem num ambiente de grande incerteza. As manifestações a favor do ex-presidente são muito agressivas, no sentido de que sujam tudo, e ocorreram vários atos de vandalismo em defesa de Zelaya”, apavora-se o elitista Carlos Nuñez, secretário particular do cardeal Maradiaga. A Igreja Católica de Honduras, bastante distanciada do povo, tem perdido prestígio no país. Em 2006, por exemplo, 15 paróquias foram assaltadas e 35 imagens sacras sumiram. No começo deste ano, ela solicitou proteção para os seus templos. Com o apoio ao truculento golpe militar, a tendência é a descrença aumente.

Rejeição nas bases católicas

A ação golpista do papável Oscar Rodrigues não foi consensual nas bases da igreja hondurenha. O bispo Luis Affonso, da Diocese de Copán, repudiou “a substância, a forma e o estilo com que se impôs ao povo um novo chefe do Poder Executivo”. Já a Rádio Progresso, ligada aos jesuítas e que se opôs ao golpe, foi invadida por 25 militares, que ordenaram o cancelamento “de maneira absoluta da programação” e agrediram os trabalhadores. Ela também gerou críticas do Conselho Latino-Americano de Igrejas (CLAI), que condenou o golpe, e causou mal-estar até no Vaticano.

Segundo o correspondente do jornal Clarín em Roma, caiu a máscara do cardeal. “Considerado um papável no conclave de abril de 2005, que elegeu Bento 16, com seu gesto lamentável ele perdeu todas as chances que ainda tinha de ser o eventual sucessor do atual pontífice. Maradiaga, um dos mais conhecidos cardeais latino-americanos, com vastos contatos em todos os níveis da Cúria de Roma, fez mais do que apoiar o golpe. Sua Eminência é um inspirador dos golpistas. Ele os brindou com uma cobertura que os reforça e contribui ainda mais para ferir a causa democrática na America Latina, onde os golpes de Estado pareciam um anacronismo superado”.

O golpismo da Conferência Episcopal de Honduras confirma as opiniões do escritor uruguaio Jorge Majfud. “Na América Latina, o papel da Igreja Católica quase sempre foi o dos fariseus e dos mestres da lei que condenaram Jesus na defesa das classes dominantes. Não houve ditadura militar, de origem oligárquica, que não recebesse a benção de bispos e de sacerdotes influentes, legitimando a censura, a opressão e o assassinato em massa dos supostos pecadores... Agora, no século XXI, o método e os discursos se repetem em Honduras como uma chibatada no passado”.