quarta-feira, 13 de julho de 2016

O valor do reconhecimento

Diretor do Instituto Nacional de Educação (NIE) de Cingapura, Lee Sing Kong defende a valorização do professor como a principal forma de incentivar os educadores a prosseguir com a missão de transformar o futuro de uma nação


Por, Daniele Pechi

Há pouco menos de 60 anos, Cingapura deu início a uma reforma educacional que possibilitou a essa cidade-estado figurar no 2º lugar do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos) e transformar uma sociedade que possuía índices altíssimos de analfabetismo e abandono escolar em um fornecedor de mão de obra qualificada para empresas de todo o mundo.

Apesar de ter alcançado um nível de excelência educacional já no final dos anos 1990, o governo local promoveu recentemente, entre os anos de 2006 e 2015, uma revisão sistemática dos programas de formação de professores tendo por base orientadora o currículo nacional. Essa revisão originou um modelo batizado de Thinking teachers, cujo objetivo é desenvolver valores, habilidades e conhecimentos que respondam aos desafios da educação no mundo contemporâneo.

Além de diretor do organismo responsável pela formação local de professores, Lee Sing Kong é membro do Centro Nacional para Educação e Economia (NCEE) dos Estados Unidos, órgão que tem como objetivo analisar a economia e a educação no mundo, identificando os melhores caminhos para a política educacional dos Estados Unidos.

Em entrevista durante visita a São Paulo, Lee falou sobre outros avanços obtidos por meio da reforma educacional realizada em Cingapura, e ressaltou a importância da valorização docente como condição para o desenvolvimento de uma nação.

Desde o ano passado, a base nacional curricular brasileira está sendo elaborada e discutida em todo o país. Como esse processo foi desenvolvido em Cingapura?

Antes de falar sobre o desenvolvimento do currículo, gostaria de dizer que o nosso sistema funciona muito por meio da identificação do que os estudantes precisam aprender e que a organização de um documento como esse deve ser um processo muito participativo. No caso de Cingapura, consultamos educadores, gestores, organizações da sociedade civil e pais de alunos. Depois que recebemos todos os feedbacks, nós os cristalizamos e decidimos quais conhecimentos as crianças precisariam ter, em quais áreas e assim por diante. Então, o currículo, no fim das contas, é o documento em que constam os conceitos fundamentais com os quais nossos alunos devem ser educados antes de chegarem à universidade.

Qual é o grande desafio da educação de Cingapura?

Considero que o desafio de qualquer sistema educacional hoje é formular um currículo que seja capaz de atender às mudanças das demandas, que estão cada vez mais rápidas. A tecnologia se transforma de forma muito acelerada e, conforme isso se dá, as habilidades requeridas nos empregos também mudam. Então, a pergunta que todos devemos fazer é: como elaborar um sistema educacional que forme estudantes relevantes para as novas necessidades? O que precisamos que os estudantes saibam? Eles precisam dominar os conteúdos em detalhes? Quais são os conhecimentos fundamentais que precisamos fornecer? Na minha opinião, alguns muito básicos: linguagem, conceitos de ciências e de matemática.

Em Cingapura, o salário do professor pode ser equiparado ao de um médico ou engenheiro. O salário inicial de um professor brasileiro é menos da metade do de um engenheiro, por exemplo. Como tornar essa carreira atrativa, tendo em vista os baixos salários e as condições de trabalho ainda precárias?

Creio que a questão salarial não é mais importante do que a valorização dos profissionais da educação pela sociedade. Isso determina muito o moral dos professores de um país. O salário é um componente importante, sem dúvida. Porém, se a remuneração é baixa e a sociedade atribui muito respeito aos professores, pela contribuição que dão para a construção e o desenvolvimento de uma nação, acredito que isso seja capaz de levantar o moral deles e fazê-los seguir em frente. A sociedade e os líderes precisam começar a celebrar o bom trabalho dos professores e ajudá-los a serem reconhecidos positivamente pela contribuição que dão na educação das crianças, que serão o futuro da nação. Isso, obviamente, tem de ser uma política de governo. Em Cingapura, em toda primeira sexta-feira de setembro é comemorado o Dia do Professor. Nessa data, o presidente convida os educadores para uma cerimônia em seu palácio, na qual alguns deles são premiados.

E como funciona o plano de carreira docente?

Há três caminhos possíveis. No passado, havia apenas uma possibilidade de carreira, na qual o professor só podia ascender a cargos de gestão escolar, deixando assim o dia a dia da sala de aula. Isso significava que os professores que tinham os melhores desempenhos não eram promovidos. Agora, eles podem ocupar os cargos de professores seniores, professores líderes, mestres e assim por diante. Financeiramente falando, o salário de um professor mestre e de um diretor escolar podem ser equiparados. Há ainda uma situação mais específica, para educadores que são muito habilidosos em desenvolver currículo, elaborar sequências didáticas e dar consultorias. A evolução da carreira depende, portanto, da expertise do profissional e, claro, do desempenho deles.

Como funciona o processo seletivo dos professores em Cingapura?

Temos um processo seletivo muito rigoroso. Antes de um professor ser contratado, ele tem de passar por uma entrevista, como acontece em quase todas as outras profissões. Depois de aprovado na primeira triagem, ele é encaminhado ao Instituto Nacional de Educação para receber treinamento. Nessa etapa, ele participa de estágios em escolas; 35% do tempo de todo o treinamento é realizado em instituições de ensino. Se durante esse período de testes diante dos alunos ele falhar nas práticas, fica definido que esse profissional não será admitido.

Como funciona o Thinking teachers (programa de formação de professores do país)?

Os professores precisam ter as competências para ajudar os alunos a atingir as expectativas de aprendizagem, porém, o papel desses profissionais mudou muito nos últimos anos e é por isso que passamos quase dez anos reformando nossa forma de ensinar. Quando eu era estudante, sentava na carteira e ficava ouvindo o professor e não fazia muita coisa durante o processo de aprendizagem. Hoje, os alunos conseguem fazer isso por poucos minutos e logo ficam entediados. Chamamos os estudantes da atualidade de epic, ou seja, eles gostam da experiên­cia, de compreender o que estão aprendendo passo a passo. Sentem necessidade de participação no processo de aprendizagem, guiados pelo imediatismo, e gostam de ficar conectados enquanto grupo para estudar.

Então, nossos professores são treinados para promover o aprendizado de modo colaborativo, de forma a incentivar os estudantes a aprenderem juntos.

Qual é o papel dos gestores?

Os gestores devem entender como desenvolver os professores para fazer deles melhores educadores, precisam elaborar novos programas para engajar os estudantes e ajudá-los no processo de aprendizagem. E o ministro, embora tenhamos um sistema educacional centralizado, dá muita autonomia aos líderes escolares. Toda instituição recebe uma verba calculada a partir do número de alunos que possui. O diretor tem o poder de decidir como esse dinheiro será usado, sem precisar consultar o ministro para aprovar as ações.



Quão próximos eles são?


Muito próximos. Todas as políticas desenvolvidas pelo ministro são comunicadas aos líderes e os líderes são consultados no desenvolvimento das políticas.

De que forma o abandono escolar foi superado?

Isso era um problema nos anos 70 em Cingapura. No período, 20% dos estudantes não completavam dez anos de educação. Já nos anos 80 foram desenvolvidos programas de recuperação para esses alunos, que podiam condensar dez anos de estudos em quatro ou cinco, dependendo do caso. Com essa medida, reduzimos o abandono escolar de 20% para 2%, em dez anos.

Quais ações o senhor acha que poderiam ser reproduzidas em países como o Brasil?

Não acho que existam modelos que possam dar conta de toda e qualquer situação. O que precisa ser avaliado, caso a caso, é o porquê de os alunos deixarem a escola. Acham estudar desinteressante? Ou eles não conseguem acompanhar o que é ensinado por alguma falha cometida em etapas anteriores? Para os entediados, é necessário ter professores que façam das aulas algo mais interessante, que os engaje. Quando um país possui problemas educacionais, é preciso entender as razões disso. Só depois de um exame aprofundado do cenário é possível transformá-lo.

Fonte: Revista Educacao

À procura de um modelo para o Ensino Médio

Em meio às discussões sobre a Base Nacional Comum Curricular, debate coloca em pauta modelos de flexibilização e o temido aprofundamento de desigualdades


Por, Flávia Siqueira


Quais os modelos possíveis para o ensino médio? Não é possível discutir ajustes ou reformas na etapa final da educação básica sem considerar a heterogeneidade na origem, nas necessidades e nos desejos de seus estudantes, nas diferentes trajetórias e regimes de trabalho dos docentes, nas particularidades do local e da região em que cada escola está instalada. É preciso tratar o ensino médio no plural e, justamente por isso, é quase consenso que a etapa deve ter algum grau de flexibilidade curricular. Por outro lado, também é necessário cuidado para que o conjunto de opções e sua estrutura não aprofundem ainda mais as desigualdades.

Segundo a proposta preliminar da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), 40% do conteúdo da educação básica deverá ser determinado regionalmente, considerando as escolhas de cada sistema educacional. O Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) divulgou, no começo de março, seu posicionamento sobre a Base. A organização defende que o documento seja “um ponto de partida para o desenvolvimento de diferentes arranjos curriculares” e que as competências e os objetivos de aprendizagem relativos ao ensino médio não estejam seriados, mas “apresentados de forma a deixar clara sua progressão”.

Para o Consed, as competências descritas pela Base devem ocupar, no máximo, 1.600 horas da carga horária total do ensino médio – considerando-se uma carga horária total mínima de 2.400 horas. O restante do currículo deve ser preenchido por “opções de aprofundamento e formação”, considerando possibilidades de formação técnica e aprofundamento em uma de quatro áreas de conhecimento: linguagens, matemática, ciências da natureza e ciências humanas. Para estruturar o modelo, o Consed propõe a construção de uma referência para a flexibilização no prazo de dois anos após a aprovação da BNCC, em parceria com o MEC. Na mesma linha, o Conselho também apresentou suas propostas dentro do Projeto de Lei nº 6.840, de 2013, que altera a Lei de Diretrizes e Bases e formaliza a visão que os secretários têm para o ensino médio.

Rossieli Soares da Silva, secretário-coordenador da Iniciativa Ensino Médio do Consed e secretário de Educação do Amazonas, diz que o ensino médio atual tem ênfase em generalidades e se tornou excessivamente conteudista. Ao defender a proposta de aprofundamento por áreas de conhecimento, exemplifica: “se o aluno vai muito bem em matemática, mas tem dificuldades em português, a escola o colocaria para ter aulas de reforço em português, quando ele poderia ser lapidado em matemática”. A possibilidade de o estudante se aprofundar no que faz de melhor, afirma o secretário, aumentaria a motivação do aluno e ajudaria a “despontar talentos”. A proposta foi criada a partir das percepções das redes estaduais, que respondem pela maioria das turmas de ensino médio no país.

O “enciclopedismo” é outro ponto abordado pelo Consed. Em sua lista de recomendações, o conselho defende que a Base se limite “ao que for essencial ao desenvolvimento de todos os estudantes”, com a definição de padrões de desempenho. Antônio José Vieira Neto, secretário estadual de Educação do Rio de Janeiro e coordenador da iniciativa Base Nacional Curricular no Consed, diz que, enquanto a primeira versão da Base apresenta, no caso do ensino fundamental, conteúdos ainda passíveis de ajustes, mas mais coesos, o documento ainda repete a “estrutura conteudista demais” para o ensino médio. “A Base Nacional não pode ser um currículo. É a partir dela que nascerá o currículo.”

Agora, é preciso esperar o documento final da BNCC para verificar o quanto essa e as demais propostas e contribuições recebidas serão incorporadas. Após a publicação da segunda versão, ocorrida em 3 de maio, estava prevista a realização de seminários para que as secretarias estaduais e municipais façam observações. O Plano Nacional de Educação (PNE) determina que o documento final seja encaminhado para análise e votação do Conselho Nacional de Educação (CNE) até 24 de junho. Há expectativa, no entanto, sobre a manutenção do calendário após o afastamento da presidente Dilma Rousseff.

► Desigualdades

Também no começo de março, o Centro de Pesquisas e Estudos em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec) divulgou os resultados preliminares da pesquisa Ensino Médio, Qualidade e Equidade: Avanços e Desafios em Quatro Estados: CE, GO, PE e SP. O estudo apresenta dois objetivos centrais: descrever e analisar políticas implantadas pelos quatro estados brasileiros para o ensino médio e avaliar como escolas situadas em territórios vulneráveis “respondem aos desafios e às possibilidades criadas por essas políticas”. Os estados do Ceará, Goiás, Pernambuco e São Paulo foram escolhidos pelo avanço em indicadores como o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) e por implementarem, de forma mais abrangente, “medidas que outros estados vêm colocando em prática de forma mais restrita” – entre elas, oferta de matrícula em tempo integral, investimento em reformas curriculares, monitoramento de processos pedagógicos e formação continuada de docentes.







Sobre o risco de um novo modelo de ensino médio aprofundar desigualdades, Antônio Neto e Rossieli da Silva, do Consed, afirmam que é justamente o formato atual que faz isso – e, portanto, é preciso mudar. “Desigualdade está em tratar os desiguais de forma igual. Sabemos que nossa proposta é divergente, mas o importante é que, no meio do silêncio, surgiu uma proposta”, afirma Silva. “A desigualdade existe com o ensino médio que temos hoje, com uma disparidade muito grande entre os períodos integral, parcial e noturno”, complementa o secretário do Rio de Janeiro. Os integrantes do Consed afirmam que é necessário começar as mudanças por algum ponto – no caso, o currículo – e que outras questões relacionadas devem ser tratadas em diferentes âmbitos e momentos.

Uma das conclusões a que chegaram os pesquisadores é que “a execução das políticas de diversificação da oferta de ensino médio produz desigualdades educacionais”. Segundo Antônio Augusto Batista, coordenador de pesquisas do Cenpec, em alguns casos a disparidade é tão grande que chegam a se formar “sub-redes dentro da rede”. Um dos exemplos mais claros está na comparação entre o ensino médio noturno e o cursado em tempo integral: neste último, é maior o nível socioeconômico dos estudantes, e quase 80% dos alunos apontam como razão para frequentar sua escola o fato de ela ser considerada boa. No noturno, o nível socioeconômico é mais baixo e quase 65% dos alunos dizem frequentar a escola por ser perto de casa ou a única em seu bairro ou município. O resultado dessas diferenças pode ser uma “seleção social”.

Ao comparar os períodos parcial e integral, apenas no Estado de Pernambuco não foi encontrada a mesma correlação quando considerado o nível socioeconômico – ou seja, os dados indicam que “as escolas de tempo integral pernambucanas não tendem a recrutar predominantemente alunos de nível socioeconômico mais alto”, como aponta o relatório da pesquisa. Segundo dados do Censo Escolar de 2014, todos os municípios do estado têm escola integral – e talvez esteja aí um dos motivos de sua rede ser uma exceção no critério estudado. Como mesmo os municípios pequenos e de renda menor têm pelo menos uma escola integral, isso garante que alunos de menor nível socioeconômico tenham acesso a ela. As turmas, assim, tendem a ser mais heterogêneas.

Nos demais estados, os municípios que não têm escolas integrais são maioria e, em seu conjunto, apresentam média de renda familiar per capita menor do que o conjunto de cidades com uma ou mais instituições com ensino médio em período integral.

“A flexibilização por si só não é um problema. O jovem tem o anseio de escolher”, afirma Batista. A questão é como esses modelos são estruturados e se, ao mesmo tempo, é dada aos jovens a chance de pensar de maneira crítica sobre suas opções. Nem sempre as decisões que tomamos são feitas de maneira totalmente livre. “As escolhas que os jovens fazem muitas vezes são ditadas pelas condições de vida”, explica o pesquisador. “É preciso falar sobre isso. Quanto mais conhecemos o modo como a sociedade nos constrange, mais nos libertamos desse constrangimento.”

Embora ainda estejamos no começo da discussão sobre o que queremos para o ensino médio, a pesquisa do Cenpec alerta para não perdermos de vista questões importantes. Será que todos os estudantes terão, realmente, a chance de escolher entre todas as opções disponíveis? Ou para alguns – provavelmente os mais pobres – sobrarão as opções menos “valorizadas”? Ou, talvez, o que a escola mais próxima tem condições (limitadas) de oferecer?

Antônio Batista também põe em questão o tema da especialização. “Não acho que seja um caminho. O próprio mercado de trabalho quer pessoas adaptáveis a diferentes ambientes e contextos.”



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► Experiências

Batista, do Cenpec, afirma que há o que aprender com as experiências dos estados pesquisados. Ele dá como exemplo a disciplina Projeto de Vida, inserida nas escolas em tempo integral de São Paulo. “Desde que as pessoas tenham conhecimento dos determinantes sociais e de que essa abordagem não seja feita de maneira burocrática, pode apontar, sim, um caminho.”

Maria Sílvia Sanchez Bortolozzo, coordenadora de Ensino Integral de São Paulo, diz que o objetivo do programa é formar alunos “autônomos, solidários e competentes”. Ela explica que as atividades da disciplina Projeto de Vida começam no ingresso dos alunos. Eles expõem seus planos e conversam com o professor. Depois, o trabalho segue com duas aulas semanais. Segundo Maria Sílvia, os professores responsáveis pela disciplina são escolhidos pelos diretores, por perfil. Não há uma formação específica, mas os docentes passam por orientação.

Outras características do programa em São Paulo incluem disciplinas eletivas, que podem ser criadas pelos professores em discussão com os alunos – como exemplo, Maria Sílvia cita uma disciplina de maquetes – e uma matriz curricular integrada, em que não há uma divisão por turno de disciplinas obrigatórias e eletivas.

► Trabalho e ensino superior

Uma crítica recorrente ao formato atual do ensino médio é de que é muito pautado pelos vestibulares e pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Nesse sentido, o Consed propõe que o Enem seja revisado como consequência da BNCC, “de tal forma que não inviabilize a proposta do Novo Modelo de Ensino Médio”. Em sua carta de princípios sobre o ensino médio, destaca que menos de 20% dos jovens de 18 a 24 anos frequentam o ensino superior.

Fonte: Revista Educacao
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Emmi Pikler, a narratividade e a compreensão da criança

''Médica desenvolveu técnicas de cuidado para criar uma experiência de vida para as crianças que estimulassem seu desenvolvimento e evitassem as faltas dramáticas provocadas pela ausência dos pais''

Por, Myriam Chinalli*

A médica Emmi Pikler (1902-1984) atuou co­mo pediatra em Budapeste, na Hungria, a partir dos anos 1930. Desde seus primeiros trabalhos com as famílias, afirmava que a criança pequena era uma pessoa ativa, competente, capaz de tomar iniciativas. Mostrou-se muito atenta à qualidade da relação entre adulto e criança, principalmente nos momentos de cuidados, que, segundo ela, deveriam ser vivenciados de forma íntima e profunda.

Em 1946, na Budapeste profundamente atingida pela Segunda Guerra Mundial, assumiu a direção de uma instituição hoje chamada Instituto Pikler, que tinha a função de acolher crianças órfãs ou abandonadas pelas famílias, sem, no entanto, procurar reproduzir o comportamento maternal – trabalho vão numa instituição. Na mesma linha de seu trabalho com as famílias, Emmi Pikler procurou desenvolver ali técnicas para criar uma experiência de vida para as crianças que estimulassem seu desenvolvimento e evitassem as faltas dramáticas provocadas pela ausência dos pais.

Sua equipe de colaboradoras, coordenada por Judith Falk, oferecia cuidados que permitiam a construção de vínculos fortes entre a criança e sua cuidadora, principalmente em decorrência de uma atenção exclusiva oferecida a cada uma durante os cuidados cotidianos – banho, troca de roupa, alimentação –, de uma rotina coerente e respeitosa com a criança, de uma estabilidade dos adultos e de respostas justamente adaptadas às necessidades individuais. Como consequência, graças a essa atenção e a essa sustentação, a criança se percebia como competente, digna de atenção e reconhecida em sua individualidade. 

Emmi Pikler dirigiu esse instituto até 1979, alguns anos antes de sua morte. Ainda hoje, mais de cem anos após o nascimento da médica, as técnicas desenvolvidas ali continuam sendo referência de atenção à criança, iluminando experiências, principalmente europeias, de educação em creches e escolas infantis. 


Muitas ideias da psicanálise foram utilizadas para o desenvolvimento desses procedimentos com a criança e com a equipe cuidadora. Uma das ações centrais das profissionais do Instituto Pikler é a narratividade, que constrói um espaço de trocas verbais entre o cuidador e a criança, em que ambos são convocados mais a compreender do que a sentir. A criança e seu cuidador compartilham experiências em sintonia afetiva, mas compreendidas por ambos. A narração das ações realizadas pelo adulto cuidador evita a tensão aniquiladora, vivida pela criança como intrusiva e invasiva.


Para o psicanalista Didier Anzieu, que desenvolveu o conceito de eu-pele, a palavra, o som da voz apaziguadora do adulto, é uma espécie de envelope narcísico, que serve de apoio ao eu da criança durante suas fases precoces de desenvolvimento. Esse envelope inclui também o estímulo à parte sensorial, com o toque respeitoso, o olhar atento, ao lado das palavras descritivas das ações que estão sendo realizadas.


Um exemplo de cuidado respeitoso está na narração detalhada e afetuosa pelo adulto de como será sua atuação com a criança: “Agora vou tomar você em meus braços. Vou acomodar bem a sua cabecinha para trocarmos a sua camiseta. Vou levantar um pouco esse braço, para retirar essa manga. Vamos ao outro braço?”. Também é importante convocar delicadamente a criança a interagir com o adulto cuidador: “Você está confortável? Vamos esperar um pouco antes de retirar suas meias? Obrigada por colaborar com esse momento tão gostoso...”.