sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

UMA CULTURA CUJO CENTRO É O CORAÇÃO

''A essência do ser humano é o coração que deve ser cuidado para ser afável, compreensivo e amoroso. Toda a educação que se prolonga ao largo da vida é cultivar a dimensão do coração.''


Leonardo Boff
A nossa cultura, a partir do assim chamado século das luzes (1715-1789) aplicou de forma rigorosa a compreensão de René Descartes (1596-1650) de que o ser humano é “senhor e mestre” da natureza podendo dispor dela ao seu bel-prazer. Conferiu um valor absoluto à razão e ao espírito científico. O que não conseguir passar pelo crivo da razão, perde legitimidade. Daí se derivou uma severa crítica a todas as tradições, especialmente à fé cristã tradicional.

Com isso se fecharam muitas janelas do espírito que permitem também um conhecimento sem necessariamente passar pelos cânones racionais. Já Pascal notara esse reducionismo falando nos seusPensées da logique du coeur ( “o coração tem razões que a razão desconhece”) e do esprit de finesse que se distingue do esprit de géométrie, vale dizer, da razão calculatória e instrumental analítica.

O que mais foi marginalizado e até difamado foi o coração, órgão da sensibilidade e do universo das emoções, sob o pretexto de que ele atrapalharia “as ideias claras e distintas” (Descartes) do olhar científico. Assim surgiu um saber sem coração, mas funcional ao projeto da modernidade que era e continua sendo o de fazer do saber um poder e um poder como forma de dominação da natureza, dos povos e das culturas. Essa foi a metafísica (a compreensão da realidade) subjacente a todo o colonialismo, ao escravagismo e eventualmente à destruição dos diferentes, como das ricas culturas dos povos originários da América Latina (lembremos Bartolomé de las Casas com sua História da destruição das Índias) e também do capitalismo selvagem e predador.

Curiosamente a epistemologia moderna que incorpora a mecânica quântica, a nova antropologia, a filosofia fenomenológica e a psicologia analítica tem mostrado que todo conhecimento vem impregnado das emoções do sujeito e que sujeito e objeto estão indissoluvelmente vinculados, às vezes por interesses escusos (J. Habermas).

Foi a partir de tais constatações e com a experiência desapiedada das guerras modernas que se pensou no resgate do coração. Finalmente é nele que reside o amor, a simpatia, a compaixão, o sentido de respeito, base da dignidade humana e dos direitos inalienáveis. Michel Maffesoli na França, David Goleman nos USA, Adela Cortina na Espanha, Muniz Sodré no Brasil e tantos outros pelo mundo afora se empenharam no resgate da inteligência emocional ou da razão sensível ou cordial. Pessoalmente estimo que, face à crise generalizada de nosso estilo de vida e de nossa relação para com a Terra, sem a razão cordial não nos moveremos para salvaguardar a vitalidade da Mãe Terra e garantir o futuro de nossa civilização.

Isso que nos parece novo e uma conquista – os direitos do coração – era o eixo da grandiosa cultura maya na América Central, particularmente na Guatemala. Como não passaram pela circuncisão da razão moderna, guardam fielmente suas tradições que vêm pelas avós e pelos avôs, ao largo das gerações. O escrito maior o Popol Vuh e os livros de Chilam Balam de Chumayel testemunham essa sabedoria.

Participei mais vezes de celebrações mayas com os seus sacerdotes e sacerdotisas. É sempre ao redor do fogo. Começam invocando o coração dos ventos, das montanhas, das águas, das árvores e dos ancestrais. Fazem suas invocações no meio de um incenso nativo perfumado e produtor de muita fumaça.

Ouvindo-os falar das energias da natureza e do universo, parecia-me que sua cosmovisão era muito afim, guardadas as diferenças de linguagem, da física quântica. Tudo para eles é energia e movimento entre a formação e a desintegração (nós diríamos a dialética do caos-cosmos) que conferem dinamismo ao universo. Eram exímios matemáticos e haviam inventado o número zero. Seus cálculos do curso das estrela se aproximam em muito ao que nós com os modernos telescópios alcançamos.

Belamente dizem que tudo o que existe nasceu do encontro amoroso de dois corações, do coração do Céu e do coração da Terra. Esta, a Terra, é Pacha Mama, um ser vivo que sente, intui, vibra e inspira os seres humanos. Estes são os “filhos ilustres, os indagadores e buscadores da existência”, afirmações que nos lembram Martin Heidegger.

A essência do ser humano é o coração que deve ser cuidado para ser afável, compreensivo e amoroso. Toda a educação que se prolonga ao largo da vida é cultivar a dimensão do coração. Os Irmãos de La Salle mantém na capital Guatemala uma imenso colégio –Prodessa – onde jovens mayas vivem na forma de internato, onde se recupera, bilíngue, e sistematiza a cosmovisão maya, ao mesmo tempo em que assimilam e combinam saberes ancestrais com os modernos especialmente ligados à agricultura e a relações respeitosas para com a natureza.

Apraz-me concluir com um texto que uma mulher sábia maya me repassou no final de um encontro só com indígenas mayas em meados de fevereiro.”Quando tens que escolher entre dois caminhos, pergunta-te qual deles tem coração. Quem escolhe o caminho do coração jamais se equivocará” (Popol Vuh).

Fonte: https://leonardoboff.wordpress.com

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

COMO REINVENTAR O TEMPO E O ESPAÇO DA ESCOLA

Mais convivência, soluções democráticas e contato com a natureza podem mudar espaços de convivência e aprendizagem.

Gabriel Jareta

Foto: Gustavo Morita
Uma árvore pode ser um elemento de escolarização, tal qual um quadro-negro ou uma carteira? A sala de aula pode prescindir de paredes e divisões? Algumas experiências escolares dizem que sim – e que as relações com a natureza e o aprofundamento da convivência entre os estudantes podem ser tão importantes quanto os elementos tradicionais da escola. “À luz da produção científica no campo da educação, é descabido manter a expressão ‘sala de aula’ no discurso pedagógico. Falemos, antes, de espaços de aprendizagem. De espaços de convivência reflexiva, de que as escolas carecem”, afirma o pedagogo José Pacheco, idealizador da Escola da Ponte e colunista de Educação.

A escola, criada em 1976, e localizada em Vila das Aves, Portugal, é uma das experiências mais bem-acabadas da gestão democrática escolar, em contraposição à organização tradicional da escola. Ao promover uma educação “horizontal” e com protagonismo dos alunos, a Escola da Ponte é um reflexo das ideias de Pacheco sobre a educação escolar. “Uma escola não educa para a cidadania, educa na cidadania, em espaços onde se exercite uma liberdade responsável”, diz. E completa: “Reflitamos sobre competências-chave do século 21: interagir em grupos heterogêneos da sociedade, agir com autonomia, usar ferramentas interativamente, competências que, dificilmente, o modelo de ensino convencional logra desenvolver”.

► MUNDO EXTERIOR

A concepção democrática da escola muitas vezes inclui a derrubada (às vezes metafórica, às vezes literal) dos muros que dividem as salas entre si e que separam a escola da comunidade ao redor. Nas palavras de Pacheco, a busca é por “recriar o espaço e o tempo de aprender”. Numa escala mais viável para o dia a dia das escolas brasileiras, o contato das turmas de estudantes com o mundo exterior pode se dar com uma aula eventual ao ar livre ou em um ambiente fora da escola. Isso inclui outro elemento em falta no ambiente escolar que, na opinião de alguns educadores, é fundamental para a escola: uma relação mais próxima
com a natureza.

“Muitas escolas têm árvores, plantas, mas elas não fazem parte da experiência das pessoas, estão lá apenas como objeto decorativo. E muitas vezes elas nem mesmo podem ser tocadas, porque as crianças podem estragá-las. Escolas de educação infantil cobrem o chão com piso emborrachado, para as crianças não correrem riscos. Mesmo em muitos parques é proibido subir nas árvores”, observa Rita Mendonça, autora do livro Atividades em áreas naturais, publicado pelo Instituto Ecofuturo. Bióloga de formação, Rita trabalha junto a professores para desenvolver projetos de educação voltados para a natureza.

Para ela, uma única árvore na escola é capaz de abrir possibilidades de ensino que os professores e diretores muitas vezes não são capazes de perceber. “Mesmo quando você leva elementos da natureza para a sala de aula, as crianças ficam ativadas com todos os sentidos”, diz. Rita afirma que diversas disciplinas podem ser trabalhadas usando a natureza – a própria matemática, lembra, é uma abstração do mundo natural. “A vida real é a vida corpórea, a vida da natureza, essa é a vida real”, aponta.

► SILÊNCIO

De acordo com Rita, as aulas na natureza tornam os alunos mais calmos, cooperativos e com reações mais espontâneas, valores que deveriam ser considerados importantes na escola. Segundo os relatos de professores com quem ela trabalhou, aqueles alunos mais agitados e irrequietos ficam mais tranquilos e participam com mais interesse de atividades que exigem concentração e silêncio. “Aquilo que a gente pensa dentro da sala é o mesmo que a gente pensa fora dela? O contato com a natureza favorece o desenvolvimento cognitivo, a criatividade e a prontidão para resposta”, diz. Mesmo para os professores, é muito exaustivo tentar manter as crianças e jovens em silêncio e concentradas por muito tempo dentro da sala de aula.

Na opinião da educadora, os espaços escolares atuais têm uma abundância grande de objetos – inclusive tecnológicos – mas não oferecem tempo e espaço adequados para os alunos. Além disso, pais e professores não estão sendo capazes de olhar para as reações das crianças e entender o que elas significam, sem uma compreensão da dimensão emocional da educação. “A gente está se colocando a serviço da tecnologia, e não a tecnologia ao nosso serviço. Isso causa um desequilíbrio”, diz. Esse desequilíbrio, segundo ela, poderia ser atenuado ao tirar as crianças do ambiente fechado da sala, mesmo que por um breve período: fazer uma aula em uma praça, por exemplo, sair para as ruas ou quebrar um pouco o concreto da escola. “A natureza não é previsível: pode passar um passarinho cantando, pode chover, pode alguém tropeçar. Trabalhar essa disponibilidade para o imprevisível é muito importante”, afirma Rita.

COMO AUMENTAR A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA ATÉ 2030

Coordenadora de educação da Unesco no Brasil fala sobre avanços nos últimos 15 anos e destaca passos a serem dados para que a qualidade acompanhe a expansão do acesso

Mariana Ezenwabasili

Os 195 países-membros da Organização para a Educação, a Ciência e a Cultura das Nações Unidas (Unesco) estão em um novo ciclo de trabalhos para a melhoria da educação em seus territórios. Vencido o prazo de validade do Marco de Ação de Dakar, registrado no documento Educação para todos: cumprindo nossos compromissos coletivos e norteador das metas internacionais da área entre os anos 2000 e 2015, entra vigor neste ano o Marco de Ação de Educação 2030 (versão em inglês).

O novo texto-guia da educação mundial para os próximos quinze anos foi aprovado no fim de 2015, durante a 38ª Conferência Geral da Unesco, em Paris, na França. Suas metas têm base no que foi decidido na Conferência Mundial de Educação, realizada em maio do ano passado, na cidade de Incheon, na Coreia do Sul. Entre elas, destaca-se: a previsão de que os países da Unesco invistam, no mínimo, entre 4% e 6% de seu Produto Interno Bruto (PIB) em educação, e garantam à população uma educação primária e secundária gratuita e de qualidade com duração de nove anos.

Rebeca Otero, coordenadora de Educação da Unesco no Brasil, esteve presente em todas as etapas de elaboração e assinatura dos novos documentos. Ela destaca que, enquanto muitos países não conseguiram cumprir várias das metas entre 2000 e 2015, o Brasil progrediu. “Mas, por exemplo, a garantia de qualidade e de acesso à educação infantil, a isso a gente não conseguiu chegar”, diz.

Na entrevista a seguir, Rebeca pondera aspectos positivos e negativos das políticas educacionais brasileiras frente às de outros países, e fala sobre por que a expansão do acesso à Educação Básica por aqui não foi acompanhada da melhoria do ensino e, consequentemente, da aprendizagem.

Muitos países não conseguiram cumprir as metas estabelecidas para a educação no mundo entre os anos de 2000 e 2015. O que explica isso?

A maior parte das nações não conseguiu chegar às metas do ciclo de 2000 a 2015. No entanto, tem alguns pontos que a Unesco avalia como importantes e que prejudicaram o cumprimento. Um deles é o financiamento. Não ter uma meta de financiamento [no documento Educação para todos: cumprindo nossos compromissos coletivos] fez com que os países não alocassem recursos [na área]. Por isso, nesse novo pacto de ação há um compromisso com esse tema. Estamos tentando trabalhar um pouco melhor essa questão do investimento, porque sem ele realmente fica difícil alcançar as metas.

Estamos aprimorando o monitoramento do cumprimento das metas para que, durante o próprio período de quinze anos, antes que se diga “ah, não alcançou”, os países já possam ir trabalhando as suas dificuldades. O entendimento é que os países querem fazer, querem avançar. Os que não cumpriram as metas tiveram falta de vontade política e outras dificuldades mesmo. Existem países muito carentes, muito precários. Em vários deles, há necessidades de que haja doações de recursos em nível mundial, uma forma de contribuir para que alcancem as metas.

E o Brasil, cumpriu as metas estipuladas para o período? O que esperar daqui para a frente?

O Brasil teve bastante avanço. Não chegou a cumprir todas as metas, mas avançou em várias delas: cumpriu a de acesso à educação primária, a de paridade de gênero para o acesso ao ensino também. Mas, por exemplo, a garantia de qualidade e de acesso à educação infantil, a isso a gente não conseguiu chegar. Já estamos quase lá: temos 80% de crianças matriculadas na pré-escola. O Brasil avançou muito também nos sistemas de avaliação, que vão contribuir com a qualidade para a melhoria do aprendizado. Mas, no geral, ainda precisamos trabalhar várias das metas. Agora, o foco está nas novas metas, que contemplam também o que não foi alcançado antes. Se o Brasil cumprir exatamente o seu Plano Nacional de Educação, vai conseguir avançar muito e ter um papel bastante relevante em nível mundial.

Como observa o processo de universalização de acesso à Educação Básica no país? Acha que a medida foi suficiente e eficiente?

O Brasil deu acesso, ou seja, as pessoas estão na escola no ensino fundamental, há vaga para meninos e para meninas. No entanto, tem um problema de qualidade dentro da escola. Os mais novos vão à escola, mas não conseguem aprender como deveriam para que saiam de lá com o desempenho desejado. No geral, o Brasil ainda tem um problema de qualidade e estamos correndo atrás. Estamos tentando, mas ainda falta. Mas, então, como contornar a falta de qualidade na educação? Para a Unesco, isso tem muito a ver com a questão da formação do professor e com os fatores associados à educação que estão relacionados a questões sociais, à violência, às drogas, essas coisas que permeiam também, em especial, as áreas mais vulneráveis da população do nosso território, áreas onde temos uma qualidade menor da educação.

Temos de melhorar a qualidade dos professores. Não é que os nossos professores não sejam bons, eles são bons, mas precisam se qualificar ainda mais para responder a esse novo aluno do século 21. Esse professor precisa saber mexer com as tecnologias, estar atualizado, não estar sobrecarregado, ser valorizado, precisa ter um plano de carreira. Tudo isso é bastante importante. Também precisamos alocar professores onde eles são mais necessários e atrair os jovens que querem ser docentes para a carreira. E essa carreira tem de ser atrativa, tem de ter formação continuada, tem de ser respeitada pela população.

O Marco de Ação de Educação 2030 prevê a cooperação internacional para a formação docente em países subdesenvolvidos e em desenvolvimento. O Brasil precisa dessa ajuda?

O Brasil tem capacidade de formar os seus professores, tem diversas universidades. A gente precisa melhorar essa formação inicial, fazer com que ela seja mais atual, mais moderna, tenham componente pedagógico maior e não só conteúdo teórico. E já temos um grupo muito bom de universidades que trabalham na formação docente inicial. Então, vejo que o Brasil pode, sozinho, resolver os seus próprios problemas com relação aos docentes, não precisa apelar para uma formação que vai ser dada por algum país. Claro que é importante também fazer um intercâmbio entre professores de vários países, fazer redes de troca de conhecimento e metodologias.

Isso também deve estar no horizonte. Mas, no geral, se o Brasil fizer um bom investimento na área docente junto às universidades, aos centros de formação, às secretarias de Educação que promovem a formação continuada, se melhorar os salários e a carreira, nossos professores rapidamente vão ter um salto muito grande de qualidade, e a nossa educação também.

É produtivo fazer marcos gerais de educação para países com históricos sociais e culturais diferentes?

Por causa dessas diferenças as metas são bem gerais. Tem, por exemplo, um compromisso com uma educação de nove anos gratuita que deve ser oferecida em todos os países. No caso do Brasil, isso é muito pouco, porque já temos mais do que isso [em termos de oferecimento de anos de estudos]. Então, para o nosso país, é importante entender que as metas são gerais e dadas para o nível global. Ou seja, até 2030 todos os países deverão ter nove anos de educação livre, gratuita para todas as pessoas; até 2030, queremos ter o acesso à educação infantil de qualidade, em especial a pré-escola, garantida em todos os países-membros da Unesco e signatários do documento. Como as metas são muito gerais, cada país tem de desenvolver o seu plano nacional de educação.

A Unesco vai acompanhar a elaboração dos planos nacionais, que devem contemplar, no mínimo, o que foi estabelecido no Marco de Ação. No caso do Brasil, temos um Plano Nacional de Educação para os próximos dez anos. Ele contempla tudo o que o Marco de Ação solicita e ainda inclui mais quesitos. Nosso PNE tem pontos sobre a formação de professores, sobre um financiamento que chega a 10% do PIB, um percentual maior do que 4% ou 6% [como previsto no Marco de Ação]. Isso quer dizer que o PNE tem toda uma especificidade para o Brasil, e é assim que deve funcionar.

Por que os últimos marcos de ação da educação mundial priorizam a Educação Básica?

Realmente, nas metas do documento Educação para todos: cumprindo nossos compromissos coletivos, estipuladas em 2000 e válidas até hoje, havia questões sobre a ampliação da educação infantil nas escolas e nas creches. Isso é um ponto bastante importante, porque a primeira infância é fundamental para o desenvolvimento cognitivo da criança nos anos posteriores. A criança que passa por uma boa educação infantil tem muito mais chances de ter um aprendizado melhor nos últimos anos da Educação Básica. A Unesco sugere que os governos foquem bastante essa etapa e tentem expandi-la e ampliá-la. No sistema educacional brasileiro, isso é responsabilidade dos municípios, e muitas vezes as cidades não têm recursos suficientes. Isso tem de ser discutido em algum momento.

A inclusão escolar voltada especificamente para pessoas com necessidades especiais está prevista no atual Marco de Ação como prioridade internacional?

O documento é pautado pela inclusão. É um princípio presente no texto que a educação tem de ser inclusiva, tem de ser para todos, e, obviamente, isso inclui as pessoas com deficiência. Com relação ao Brasil, estamos avançados nesse sentido, temos uma legislação que obriga as escolas a incluir as crianças especiais no seu programa regular. No entanto, ainda existem desafios a serem superados: a estrutura dessas escolas para acolher essas crianças e a formação de professores. Em aspectos gerais, a escola tem de ser inclusiva, tem de estar preparada para receber os cadeirantes, os cegos, os surdos. Não é fácil, mas, a cada desafio, a escola vai se estruturando e se definindo. Também é direito dessas pessoas ter acesso à educação.

Uma curiosidade: recentemente, a área estatística da Unesco chegou a divulgar a intenção de criar uma avaliação mundial de educação. Como anda esse processo?

Essa ideia de avaliação ainda está um pouco tímida. Além do acompanhamento dos indicadores das metas dos marcos de ação, a Unesco desenvolve apenas alguns estudos relacionados à avaliação. Por enquanto, temos desenvolvido alguns estudos e feito comparações entre países. No campo da América Latina e do Caribe, desenvolvemos um estudo que se chama Terce e pode ser encontrado em nosso site [www.unesco.org]. Esse estudo faz uma comparação entre países da América Latina e do Caribe, equiparando currículos. Ou seja, compara currículos similares de diferentes nações. Para a elaboração, foi medida a aprendizagem dos alunos a partir da aplicação de uma prova, uma avaliação.

Também foram estudados fatores associados à educação que influenciam na aprendizagem, como classe social, condição socioeconômica e escolaridade dos pais. Esse é um exemplo do início do desenvolvimento de uma avaliação maior. Mas não há um processo global de avaliação coordenado pela Unesco. O Pisa [Programa Internacional de Avaliação de Alunos, sigla em inglês] é um processo mais global, mas ele só pega países da OCDE [34 nações] e alguns outros. No caso do nosso Terce, só foram avaliados países que concordaram em participar do estudo. Assim, também temos feito estudos na Ásia e na África que estão contribuindo para a construção de um processo avaliativo mais global. Mas, do meu ponto de vista, isso ainda está bastante longe de acontecer.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

AS ROSAS PEDEM ÁGUA, MAS MORREM AFOGADAS EM SANGUE

''Em qualquer relação onde houver agressão física, não há mais espaço para o amor, para a paixão, para a reconciliação.''
É triste a gente ler as notícias da cidade onde fixamos nossas raízes e saber que mais uma mulher é assassinada covardemente – sim, covardemente por aquele que dizia ser seu companheiro. A tristeza não vem do fato da morte em si, mas saber que ela é apenas mais um número da estatística e que neste momento dezenas, centenas, milhares estão sendo agredidas em suas casas, por telefone, em seu trabalho e vão ter a vida ceifada em breve por pilantras que sabem da impunidade, da lentidão da justiça e o descaso com a vida.

A gente não precisa ir longe para ver os trastes má intencionados que tem por aí, psicopatas a procura de um corpo para seus desejos e não uma companheira para sonharem juntos. Basta passar em alguns bares, frequentar essas casas de dança urbana ou escutar o papo dos machões caçadores. Eles não estão em busca de uma companheira, mas de uma mercadoria para manipulação, domínio e agressão. E para isso basta apenas um olhar de consentimento, de carência, de submissão da vítima após uma dança, um apertão, uma pegada, um olhar malicioso, pretensioso ou uma passagem por esses ambientes.

Não quero com isso jogar nas mulheres a culpa pela violência sofrida até porque vejo a negligência do Estado como ferramenta do terror. Quero sim dizer que as mulheres merecem mais que o tempo de espera em solidão, merecem mais que um corpo conhecido numa dança de domingo à tarde no forró da esquina, de uma piada galanteadora de um Dom Juan da violência. As mulheres merecem desfrutar dos critérios da boa escolha, tempo para conhecer e direito de decidir sem pressão qualquer para início de relacionamento e fim do mesmo se assim for necessário como direito constituído a liberdade de escolha.

Nenhuma mulher morrerá de fome alimentar, fome afetiva, fome social e qualquer tipo de solidão neste mundo, ou será menos sofrido enfrentar essa realidade do que ser agredida por um bandido. Essa autonomia tem que prevalecer, ser critério primeiro para livrarem-se dos milhares de tranqueiras que circulam por aí a procura de seu objeto sexual. Há um universo de interrogações colocadas a sombra do terror em vigência, perguntas que saltam a indignação, que pedem passagem, respostas concretas, ações apontando mudanças – são como gritos coletivos:

- Até quando as agressões físicas, verbais, e ameaças cotidianas serão entendidas apenas como briga de casal?

- Até quando a justiça entenderá a necessidade de intervenção somente por reincidência e sangue?

- Até quando as mulheres se submeteram a conquistas de papo fajuto de pilantras cachaceiros, zoneiros e pé de cana, metidos a pé de valsa nesses lugares de dança onde caçam suas vítimas?

- Até quando as agressões serão entendidas como briga de casal sem intervenção ou denúncias por parte de vizinhos, amigos, familiares, que sabem das agressões sofridas pela vítima?

- Até quando será permitido que pilantras façam de suas companheiras produtos de suas perversões, posse e direito de bater e matar?

- Até quando a estatística servirá apenas para escrever livros, balizar seminários de debates e fóruns pelo fim da violência doméstica?

- Até quando os filhos serão telespectadores deste cinema de terror gravado dentro da própria casa?

- Até quando a punição permanecerá apenas com prisão e não por pena de morte?

Basta executar alguns covardes em praça pública, aos olhos de todos e veremos que as estatísticas perdem o rumo que hoje seguem a passos largos, sem qualquer instrumento que as possam frear.

Enquanto as mulheres permaneceram reticentes a primeira agressão verbal, a segunda agressão será para afirmar covardia e a terceira para matar.

Enquanto as mulheres se deixarem levar pelo papo fajuto de pilantras que andam por aí como Dom Juan na pele de bichos pouca coisa mudará.

Enquanto as mulheres se deixarem levar pelo olhar do bandido que cobiça, agindo como caçador voraz que vai para cima com pinta de pegador, não estará apenas abrindo porta para suprir humanas carências afetivas, mas abrindo a porta do inferno para o demônio entrar - está cheio deste tipo por aí.

Enquanto no Brasil o crime desse nível de crueldade for punido apenas com cadeia para vagabundo jogar baralho e dar despesas ao Estado não podemos esperar resultados eficientes. Talvez agora somente a abertura da temporada de caça a todos os covardes pode surtir efeitos - faça sua lista. Ou continuaremos com estes relacionamentos afetivo regados com terror e regidos pela dura promessa: ‘até que a morte nos separe’!

Em qualquer relação onde houver agressão física, não há mais espaço para o amor, para a paixão, para a reconciliação. Isso não é determinismo pois os número da violência doméstica retratam essa dura realidade. Nestas relações a morte se torna a irmã gêmea do perdão (perdoar para morrer), não há perdão onde há dor latente – os números dizem isso até como retrato de uma justiça de Estado falida e inoperante.

Não há como chorar pela morte de todas as mulheres porque elas morrem as centenas, milhares neste momento em que escrevo, ...não há como gritar por cada uma, somente por todas, mas os gritos se calam, as vozes ficam roucas e aí é preciso a voz do Estado. Mas onde é o Estado? - é um campo de violência sobre os instrumentos de combate a violência. A negligência é por excelência a ferramenta da morte, fazendo de estatísticas o nosso doloroso jardim de espinhos, onde as rosas pedem água e então: Sangram, Sangram e
 Sangram.


Prof.Ms.Neuri Adílio Alves – Filosofia PUC/PR, Ms. Antropologia Filosófica/PUCCamp, Assessor de Educação e Formação Popular Fetraf/SC.