sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

O IDEOLOGO DO AGRONEGÓCIO E O GENOCÍDIO


"Felizes sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo mal contra vós por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque é grande a vossa recompensa nos céus. Pois foi deste modo que perseguiram os profetas que vieram antes de vós." (Mateus 5, 11-12).

O texto assinado por Denis Lerrer Rosenfield no Globo em 16 de novembro de 2015 ataca o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), cuja credibilidade é atestada nos seus mais de 40 anos de ação missionária em defesa dos direitos indígenas. Nossa atuação é fundamentada no Evangelho de Jesus Cristo e na premissa de que é preciso promover a vida e a dignidade, em especial daqueles que têm sido excluídos e desrespeitados. Esta opção teológica em favor dos povos indígenas contraria quem defende que tudo deve se dobrar à lógica do mercado.

Rosenfield contesta as informações divulgadas pelo Cimi sobre os assassinatos de indígenas no Mato Grosso do Sul. Esclarecemos que as informações veiculadas em nossos relatórios anuais provêm de fontes oficiais, de notícias da imprensa e dos povos indígenas com os quais atuamos. Estes dados, vistos no seu conjunto, permitem afirmar que se trata, sim, de genocídio, entendimento compartilhado pelo Ministério Público Federal (MPF), pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e pela Anistia Internacional. E, nesse sentido, em boa hora, a Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul criou a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Genocídio, investigação que poderá demonstrar as precárias condições de vida a que estão submetidos os povos indígenas daquele estado.

Em Mato Grosso do Sul, 390 indígenas foram assassinados (2003 a 2014) e 707 cometeram suicídio (2000 a 2014), conforme dados do Ministério da Saúde. A situação de confinamento em terras ínfimas, a prolongada permanência em acampamentos em beira de rodovias, a falta de perspectivas e a violência e a discriminação cotidianas estão entre os fatores que levam ao incremento dos suicídios e assassinatos entre os indígenas. A questão fundiária está, portanto, na raiz desta grave realidade.

Os dados sobre violências contra os indígenas em Mato Grosso do Sul estão estampados cotidianamente nos jornais, são denunciados pelo Ministério Público Federal, por lideranças indígenas e pelos movimentos de defesa dos direitos humanos no Brasil e no exterior. A situação é tão grave que, por vezes, o governo federal intervém diretamente, a exemplo do que ocorreu em agosto de 2015, quando a Polícia Federal e o Exército foram enviados ao município de Antônio João para evitar que fazendeiros agissem cruelmente contra os Guarani e Kaiowá da terra Cerro Marangatu, onde o indígena Semião Vilhalva foi assassinado.

Outro argumento utilizado por quem defende uma ideologia desenvolvimentista é o de que o Cimi estaria a serviço de interesses internacionais. Recomendamos uma leitura atenta dos artigos 20 e 231 da Constituição federal, que conceituam as terras indígenas como sendo bens da União, destinadas ao usufruto exclusivo dos índios. A demarcação é um modo de assegurar que essas terras não estejam disponíveis à ganância exploratória internacional. Não se pode afirmar o mesmo de áreas de latifúndio voltadas à exportação ou de empreendimentos agropecuários e minerários vinculados a empresas multinacionais.

Rosenfield defende que o marco temporal da Constituição de 1988 seria uma linha divisória na demarcação das terras indígenas. No entender do Cimi, não há como compactuar com manobras jurídicas ou políticas que restrinjam direitos, e é absurda a interpretação de que a data de promulgação de nossa Lei Maior anule direitos fundamentais que a antecedem. Se isso ocorresse, se conflagraria um estado de insegurança jurídica sem precedentes.

Reiteramos nosso compromisso com os povos indígenas pela defesa da vida e de seus direitos constitucionais. Nossa inspiração missionária vem das palavras de Jesus Cristo: "Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em plenitude" (João, 10, 10).


Artigo do presidente do Cimi, Dom Roque Paloschi, originalmente publicado no jornal O Globo do dia 08/12/2015.


Fonte: http://www.cimi.org.br/

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

RETROCESSOES NA AMÉRICA LATINA

''(...) os governos progressistas se omitiram quanto à única via capaz de garantir-lhes sustentabilidade: formação e organização política de suas bases eleitorais.''

Frei Betto, Escritor, Religioso Dominicano
A vitória eleitoral de Macri, novo presidente da Argentina, é mais um passo da América Latina rumo ao neoconservadorismo. O processo de desmonte das políticas neoliberais, tão em voga nas décadas de 1980 e 1990, teve início com a eleição de Chávez na Venezuela, em 1998.

Em seguida, foram eleitos vários presidentes progressistas: Lula no Brasil, Lugo no Paraguai, Zelaya em Honduras, Funes em El Salvador, Bachelet no Chile, Morales na Bolívia e Mujica no Uruguai. Cuba e Nicarágua foram pioneiras nesse processo.

Esse avanço neutralizou a proposta da ALCA e favoreceu a criação de instituições de articulação regional e continental, como Aliança Bolivariana, Unasul, Celac, e fortaleceu o Mercosul.

No conjunto da América Latina, as condições sociais melhoraram significativamente, com a redução da miséria absoluta.

Ser de esquerda em um mundo dominado pela direita é quase como se manter virgem no bordel. A ascensão das forças progressistas na América Latina, na virada dos séculos 20 e 21, despontou como a ocasião de desmontar a tese de Robert Michels (1911), de que todo partido de esquerda que trafega nas vias da legalidade burguesa é inevitavelmente cooptado por ela.

Em dois países a direita enveredou pelo atalho do golpismo, e interrompeu a possibilidade de reformas pela via democrática: Honduras (2009) e Paraguai (2012). Nos demais, a direita tem sido beneficiada por erros dos governos progressistas.

Com exceção de Cuba e da Bolívia, todos eles acreditaram poder segurar o violino com a esquerda e tocar com a direita… O que se vê é um concerto desafinado.

Ainda que políticas sociais tenham sido implementadas com êxito e livrado milhões de pessoas da miséria, as reformas estruturais, quando feitas (infelizmente não é o caso do Brasil), não foram suficientes para criar um modelo alternativo ao neodesenvolvimentismo consumista.

A economia permaneceu com todas as suas características neocoloniais, de exportação de produtos primários, agora denominados commodities. Não se criou um mercado interno sustentável, nem se reduziu a desigualdade social, ainda que tenha havido aumento do poder aquisitivo dos pobres.

O erro principal, porém, foi não complementar a inclusão econômica com a inclusão política. Os benefícios aos mais pobres vieram como iniciativa do Estado e não como conquista do povo. Não se organizou politicamente o pobretariado. Não se conscientizou o oprimido. Não se fez da grande massa de eleitores protagonistas políticos. A exceção é a Bolívia, onde há o mais consistente governo progressista da América Latina. E o é justamente por priorizar, no arco de alianças políticas, os movimentos sociais.

A Argentina pode ser a primeira peça do dominó a tombar. Brasil e Venezuela se destacam no alvo dos neoliberais.

Em um mundo que, ameaçado pelo terrorismo, troca a liberdade pela segurança, e cujo poder financeiro (especulação) se sobrepõe ao industrial (produção), e no qual a ambição de consumo prevalece sobre o direito à cidadania, os governos progressistas se omitiram quanto à única via capaz de garantir-lhes sustentabilidade: formação e organização política de suas bases eleitorais. Muitos partidos se deixaram contaminar pela corrupção, e não cuidaram da “alfabetização política”.

Eis que o sonho ameaça virar pesadelo. A menos que a esquerda perca a vergonha de ser de esquerda.

Frei Betto - Teólogo, Escritor e Religioso Dominicano

Fonte: http://www.patrialatina.com.br

Rico é “sonegador”. Pobre é “caloteiro”, “vagabundo”, “aproveitador”

''Ricos que cometem um crime são “jovens''. Pobres que cometem crimes são “menores infratores''

Uma milícia branca armada até os dentes que toma um prédio público no Oregon e promete resistir contra a opressão do governo federal é composta de “ativistas armados''. Grupos por direitos civis que fecham vias públicas para protestar contra a violência policial contra negros por lá adotam práticas “terroristas''. A discussão sobre esse caso tomou a mídia dos Estados Unidos e Europa e há bons textos mostrando como um “dois pesos, duas medidas'' tem sido adotado para aborda-lo. Conhecemos bem essa prática:
Ricos que cometem um crime são “jovens''. Pobres que cometem crimes são “menores infratores''.
“Manifestantes'' são aqueles que fecham avenidas para lutar por algo com o qual concordamos. “Baderneiros'' são aqueles que fazem o mesmo por algo sobre o que discordamos.
Empresas que grilam terras públicas são “ocupantes irregulares''. Grupos de sem-terra que permanecem em fazendas griladas e pedem sua destinação à reforma agrária são “invasores''.
Da mesma forma, proprietários de imóveis mantidos vazios para a especulação imobiliária que devem o seu preço em IPTU atrasado são “devedores do poder público'', enquanto os sem-teto que ocupam esses imóveis pedindo sua destinação à moradia popular são “invasores''.
Árabe que se mata com bombas pelo corpo é um “fanático'' que prova a irracionalidade das culturas não-ocidentais. Um ocidental que sai matando todo mundo em protesto contra política de diversidade social é um “louco''.
Rico que deixa de pagar milhões em impostos não é “ladrão''. Ele está apenas exercendo seu protesto contra a pesada carga tributária. “Ladrão'' é pobre que rouba xampu. De um lado, “sonegador'', do outro, o “caloteiro'', o “vagabundo'', o “aproveitador'' que não pagou a mensalidade do carnê da geladeira.
A discussão de qualquer política para regulação de rádio e TV, que são concessões públicas, é “censura e ataque à democracia''. Mas quando o novo presidente da Argentina desmonta a agência pública que trata do assunto por decreto, sem passar a discussão pelo Congresso, escutamos um estrondoso silêncio.
A escolha de uma palavra para nomear um fato ou qualificar um fenômeno, parece aleatória, é consequência de uma série de processos na nossa cabeça que evocam experiências vividas, traumas, aprendizados, doutrinações, medos, bloqueios.
Da mesma forma, aquilo que não dizemos, o interditado, fala tanto sobre nós quanto os termos que escolhemos para explicar o mundo. Porque algo não dito tem tanto significado quanto aquilo que é dito pela razões acima.
É possível e desejável ficar atento e frear uma palavra que vem não sei de onde antes que seja dita ou escrita e refletir sobre ela, tentando entender o porquê de você a estar usando e se não haveria um termo melhor, que não fizesse outra pessoa sofrer ou que fosse mais justo com a realidade. Dessa forma, evitamos perpetuar discursos de opressão – que não foram produzidos por nós, mas que nos aprendemos muito bem, transmitidos pela escola, a família, a igreja, a mídia, o trabalho, e para os quais somos instrumentos muito competentes de difusão.
Isso resolve o caso de quem usa essas palavras sem pensar. O problema é que muita gente faz essas opções conscientemente.
Leonardo Sakamoto - Professor de Jornalismo na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SC), ativista no combate e erradicação do trabalho escravo.
Fonte: Blog do Sakamoto ( http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br )


A sociedade do cansaço e do abatimento social

''(...) temos uma tarefa histórica a cumprir para nós, para nossos descendentes e para a própria humanidade. Utopia? Sim.''


Ha uma discussão pelo mundo afora sobre a “sociedade do cansaço”. Seu formulador principal, é um coreano que ensina filosofia em Berlim, Byung-Chul Han, cujo livro com o mesmo título acaba de ser lançado no Brasil (Vozes 2015). O pensamento nem sempre é claro e, por vezes discutível, como quando se afirma que “cansaço fundamental” é dotado de uma capacidade especial de “inspirar e fazer surgir o espírito” (cf. Byung-Chul Han, p. 73). Independentemente das teorizações, vivemos numa sociedade do cansaço. No Brasil além do cansaço sofremos um desânimo e um abatimento atroz.

Consideremos, em primeiro lugar, a sociedade do cansaço. Efetivamente, a aceleração do processo histórico e a multiplicação de sons, de mensagens, o exagero de estímulos e comunicações, especialmente pelo marketing comercial, pelos celulares com todos os seus aplicativos, a superinformação que nos chega pelas midias sociais, nos produzem, dizem estes autores, doenças neuronais: causam depressão, dificuldade de atenção e uma síndrome de hiperatividade.

Efetivamente, chegamos ao fim do dia estressados e desvitalizados. Nem dormimos direito, desmaiamos.

Acresce ainda o ritmo do produtivismo neoliberal que se está impondo aos trabalhadores no mundo inteiro. Especialmente o estilo norteamericanmo cobra de todos o maior desempenho possível. Isso é regra geral também entre nós. Tal cobrança desequilibra emocionalmente as pessoas, gerando irritabilidade e ansiedade permanente. O número de suicídios é assustador. Resuscitou-se, como já referi nesta coluna, o dito da revolução de 68 do século passado, agora radicalizado. Então se dizia: “metrô, trabalho, cama”. Agora se diz: “metrô, trabalho, túmulo”. Quer dizer: doenças letais, perda do sentido de vida e verdadeiros infartos psiquicos.

Detenhamo-nos no Brasil. Entre nós, nos últimos meses, grassa um desalento generalizado. A campanha eleitoral turbinada com grande virulência verbal, acusações, deformações e reais mentiras e o fato de a vitória do PT não ter sido aceita, suscitou ânimos de vindita por parte das oposições. Bandeiras sagradas do PT foram traídas pela corrupção em altíssimo grau, gerando decepção profunda. Tal fato fez perder costumes civilizados. A linguagem se canibalizou. Saiu do armário o preconceito contra os nordestinos e a desqualificação da população negra. Somos cordiais também no sentido negativo dado por Sergio Buarque de Holanda: podemos agir a partir do coração cheio de raiva, de ódio e de preconceitos. Tal situação se agravou com a ameaça de impeachment da Presidenta Dilma, por razões discutíveis.

Descobrimos um fato, não uma teoria, de que entre nós, vigora uma verdadeira luta de classes. Os interesses das classes abastadas são antagônicos aos das classes empobrecidas. Aquelas, historicamente hegemônicas, temem a inclusão dos pobres e a ascensão de outros setores da sociedade que vieram ocupar o lugar, antes reservado apenas para elas. Importa reconhecer que somos um dos países mais desiguais do mundo, vale dizer, onde mais campeiam injustiças sociais, violência banalizada e assassinatos sem conta que equivalem em número à guera do Iraque. Temos ainda centenas de trabalhadores vivendo sob condição equivalente à escravidão.

Grande parte destes malfeitores se professam cristãos: cristãos martirizando outros cristãos, o que faz do cristianismo não uma fé mas apenas uma crença cultural, uma irrisão e uma verdadeira blasfêmia.

Como sair deste inferno humano? A nossa democracia é apenas de voto, não representa o povo mas os interesses dos que financiaram as campanhas, por isso é de fachada ou, no máximo, de baixíssima intensidade. De cima não se há de esperar nada pois entre nós se consolidou um capitalismo selvagem e globalmente articulado o que aborta qualquer correlação de forças entre as classes.

Vejo uma saída possível, a partir de outro lugar social, daqueles que vem debaixo, da sociedade organizada e dos movimentos sociais que possuem outro ethos e outro sonho de Brasil e de mundo. Mas eles precisam estudar, se organizar, pressionar as classes dominantes e o Estado patrimonialista, se preparar para eventualmente, propor uma alternativa de sociedade ainda não ensaiada mas que possui raízes naqueles que no passado lutaram por um outro Brasil e com projeto próprio. A partir daí formular outro pacto social via uma constituição ecológico-social, fruto de uma constituinte exclusiva, uma reforma política radical, uma reforma agrária e urbana consistentes e a implantação de um novo designde educação e de serviços de saúde. Um povo doente e ignorante nunca fundará uma nova e possível biocivilização nos trópicos.

Tal sonho pode nos tirar do cansaço e do desamparo social e nos devolver o ânimo necessário para enfrentar os entraves dos conservadores e suscitar a esperança bem fundada de que nada está totalmente perdido, mas que temos uma tarefa histórica a cumprir para nós, para nossos descendentes e para a própria humanidade. Utopia? Sim. Como dizia Oscar Wilde: “se no nosso mapa não constar a utopia, nem olhemos para ele porque nos está escondendo o principal”. Do caos presente deverá sair algo bom e esperançador, pois esta é a lição que o processo cosmogênico nos deu no passado e nos está dando no presente. Em vez da cultura do cansaço e do abatimento teremos uma cultura da esperança e da alegria.

Leonardo Boff, colunista do JB on line e escritor