sábado, 24 de setembro de 2016

Charter school: uma escola pública que caminha e fala como escola privada

Em conversa com a professora Nora Krawczyk, da Unicamp, pesquisador americano Dwight Holmes explica por que esse modelo de ensino vem ganhando espaço em seu país e ameaça o Brasil.

Escolas charter têm pouquíssimos professores sindicalizados
Vivemos no Brasil um intenso processo de mudança da racionalidade organizacional da educação, que afeta de maneira radical a lógica de gestão e o trabalho na escola pública. As escolas charter (charter schools), modelo de escola pública que adota a lógica da gestão privada, têm sido apontadas como principal referência de excelência para as mudanças que se tenta implantar. São glamouralizadas e exaltadas no Brasil (como se faz com supostas excelências da gestão privada) sem que haja um verdadeiro debate sobre o tema.
Até que ponto essa visão midiática das escolas charter é real? Onde terminam suas qualidades e começa a mitificação? Foi em busca de respostas para questões como essas que vim para o berço das escolas charter, os Estados Unidos, estudar o sistema de educação local, com bolsa concedida pela Fapesp.
Dado o momento que o Brasil vive, no qual se tenta impor soluções e contaminar todos os espaços (inclusive o educacional) com posturas conservadoras e antidemocráticas, um verdadeiro debate sobre o que são as escolas charter, como funcionam e quais consequências trazem para a escola pública parece fundamental. Afinal, com o afastamento de Dilma Rousseff, o governo interino parece disposto a favorecer mudanças radicais na gestão da escola pública, dando suporte a medidas tomadas pelos estados, como a extinção dos concursos públicos para professor em Goiás, e outras em andamento como os modelos de escolas charter.
Pesquisador em educação desde 1977 e das escolas charter nos Estados Unidos, Dwight Holmes, analista sênior de políticas com foco em questões de equidade na educação para a Associação Nacional de Educação (NEA), explica em entrevista ao Carta Educação a origem desse modelo, quais os interesses e de que maneira essas escolas aprofundam desigualdades.
Leia a seguir:
Carta Educação: O que é uma escola charter? Como elas começaram?

Dwight Holmes: Para começar, gostaria de dizer que eu não estou falando em nome da NEA. São minhas próprias opiniões. Em poucas palavras, escola charter é uma escola mantida com recursos públicos, mas cuja gestão é privada. Ela tem origem na década de 1980, curiosamente pensada para ser uma escola liderada por professores e para acolher os alunos que fracassavam nas escolas tradicionais. Pensavam que poderiam contornar regras administrativas para poder experimentar diferentes abordagens de ensino com estudantes que enfrentam desafios maiores. Lamentavelmente, essa boa ideia virou uma indústria poderosa, que compete com as escolas públicas para atrair estudantes e recursos públicos preciosos.
CEO livro Myths and lies about who’s best, de David C. Berliner e Gene V. Glass, mostra que a escola charter é um tipo de escola que anda e fala como uma escola privada, mas na realidade é uma escola pública, porque recebe dinheiro dos contribuintes. Você concorda?
DH: Sim. As escolas charter são públicas porque recebem dinheiro dos governos estaduais e federal, com os mesmos critérios que as escolas públicas tradicionais. As regras de governança e de responsabilização variam muito segundo as leis de cada estado para as escolas charter. Por isso, podemos dizer que elas funcionam mais ou menos como as escolas particulares, dependendo do estado onde estão localizadas e das agências que as autorizam.
Em seguida, é importante entender que existem duas grandes categorias de escolas charter. Existem as chamadas “Mamãe & Papai Charter”, escolas sem fins lucrativos iniciadas por educadores locais ou líderes comunitários e geridas de forma independente. E existem as escolas charter que são parte de uma “organização de gestão da educação” (Education Management Organization, em inglês), muitas dessas consideradas “cadeias nacionais”. Algumas delas são organizações sem fins lucrativos, enquanto outras indiretamente acabam sendo puro business. Atualmente, cerca de 60% de todas as escolas charter são independentes (Mamãe e Papai) e 40% são administradas por contrato com organizações de gestão da educação, sendo metade organizações com fins lucrativos.
Evidentemente também há aspectos condenáveis em parte das escolas do tipo Mamães & Papai. Há casos de fraudes entre elas, e algumas são abertas por grupos interessados em se ver livres de problemas das escolas tradicionais, como alunos indisciplinados e crianças com dificuldades de aprendizagem.
CE: Você disse que os regulamentos das escolas charter são diferentes de um estado para o outro. Em linhas gerais, quais regras são mais comuns e onde estão as diferenças mais importantes entre os estados?
DH:  A educação pública nos EUA é um sistema federal de 50 estados, cada qual com um próprio sistema. A Constituição dos EUA não faz nenhuma menção à educação pública. As únicas leis federais que se aplicam a todas as escolas do país, incluindo as escolas charter, são aquelas que dizem respeito à proteção dos direitos civis para os estudantes (com base na etnia, religião, nacionalidade, deficiências) e às condições vinculadas ao dinheiro federal para o estado, distrito ou escola.
Em média, as receitas federais representam 10% da receita total da escola, e 90% são provenientes de governos estaduais e municipais. Em geral, onde o poder político é mantido pelo Partido Republicano, as leis para as escolas charter são mais flexíveis, permitem maior liberdade tanto para a agência que autoriza sua criação quanto para as próprias instituições de ensino. Onde o Partido Democrata está no poder e a influência de sindicatos de professores é mais forte, as leis para as escolas charter tendem a ser mais restritivas e existe maior controle e responsabilização das escolas. Há grandes exceções a essa regra geral, como a Califórnia: um estado fortemente democrata, com um sindicato docente muito atuante e leis pró-charter.

CE: Você sabia que o Brasil também tem escolas charter? Saiba mais como esse modelo começou no País e na região:
Na América Latina, o país pioneiro na transferência de escolas públicas para gestão privada foi o Chile durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), em pleno processo de privatização de todos os serviços públicos. Atualmente, no entanto, a referência em matéria de escola charter não apenas na região e no mundo são os Estados Unidos.
No Brasil, esse processo começou em 2005, em Pernambuco, com a implantação de Centros de Ensino em tempo integral (Procentro) pela Secretaria de Educação do Estado, em parceria com o Instituto de CoResponsabilidade pela Educação (ICE). Essa experiência recebeu muita atenção da mídia e passou a ser divulgada por fundações e organizações sociais ligadas à educação como um modelo de escola charter.
Outros estados, tais como Sergipe, Ceará, Piauí e Rio de Janeiro adotaram variações desse modelo. Já em Goiás, o caminho tem sido a transferência da gestão das escolas para organizações sociais, com mudanças das condições de trabalho, como o fim do concurso público e o pagamento de bônus aos professores conforme o rendimento dos alunos – o que mantém o baixo nível salarial. No estado de São Paulo, Campinas e outros municípios também vêm transferindo a gestão escolar para organizações sociais, por enquanto em unidades de Educação Infantil.

























CE: Há algum tipo de recomendações para os estados?
DH: A Aliança Nacional para Escolas Públicas Charter, um importante lobby pró-charter, publicou um “modelo de lei para a escola charter”, que descreve o mundo como eles gostariam que fosse. Ela também classifica os estados de acordo com a proximidade de suas leis para as escolas charter com a “lei modelo”. Nesse modelo, os componentes essenciais de uma lei para escola pública charter são a autorização ilimitada do número de escolas charter, a possibilidade de criar diferentes tipos de escolas charter, incluindo virtuais/on-line, e que organizações externas estejam autorizadas a gerir escolas charter. Ela quer também as escolas charter isentas das leis e convenções estaduais coletivas, evitando que os professores possam se organizar em sindicato.
CE: Como assim? Os professores que trabalham nas escolas charter não podem participar do sindicato? O sindicato de professores tem possibilidades de negociar as condições de trabalho desses docentes?
DH: São pouquíssimos os professores das escolas charter sindicalizados. Um dos estados onde o NEA e a Federação Americana de Professores (AFT) estão tendo algum sucesso nas campanhas para organizar os professores das escolas charters é Nova Jersey. Mas isso tem preocupado bastante a associação das escolas charter local, principalmente pelas condições deploráveis de trabalho dos professores e porque os professores não têm voz nas escolas charter.
CE: Como são as condições de trabalho dos professores na escola charter? São diferentes daquelas das escolas públicas tradicionais?
DH: Muitas. Os estados não exigem que os professores das escolas charter tenham a certificação correspondente para ensinar. Como disse, muito poucos são sindicalizados e, embora AFT e NEA estejam atuando nessas escolas, os números ainda são pequenos. Os professores das escolas charter tendem a ser mais jovens, menos qualificados, com menos experiência, recebem menos, têm menos benefícios e volume de trabalho superior. Na Flórida, por exemplo, o salário médio anual dos professores nas escolas charter em 2011-2012 era de 38.459 dólares e nas escolas públicas tradicionais de 46.273 dólares.
A porcentagem de professores com apenas um ou dois anos de experiência era de 69% nas escolas charter e de 21% nas escolas públicas tradicionais. Além disso, as cadeias nacionais de escolas charter deixam muito pouco nas mãos dos professores sobre o que, como e quando ensinar. A maioria delas utilizam currículos estruturados e orientados para o teste. Os professores são obrigados a usar apostilhas, produzidas de forma centralizadas para todo o país.
CEComo funciona o financiamento público para as escolas charter?
DH: Em geral, recebem o mesmo financiamento por aluno que as escolas públicas tradicionais para despesas operacionais. O financiamento de capital e aquisição de instalações escolares têm sido um problema para as escolas charter na maioria dos estados. Algumas recebem grandes quantidades de contribuições privadas, embora haja poucos dados sobre isso.
CE: Quantas escolas charter existem hoje nos EUA e que porcentagem representam no total das escolas públicas?
DH: Nos Estados Unidos temos atualmente 90.189 escolas públicas, sendo 94% tradicionais. Essa relação se mantém, aproximadamente, em todos os níveis de ensino básico[1]. O ensino privado representa 24% das escolas do país e 10% de todos os alunos do ensino básico.
CE: Realmente a porcentagem de escolas charter é bastante pequena, só o 6% das escolas públicas em todo o país, mas elas têm aumentado. Por que isso está acontecendo?
DH: Por diferentes razões, mas gostaria de destacar que a administração de Obama tem sido bastante pró-charter. O Programa Federal Escolas Charter gastou mais de 3,7 bilhões de dólares ao longo dos últimos 10 anos, na criação de escolas charter em todo o país. Outro motivo é que as organizações que defendem o modelo charter como alternativa mais eficiente às escolas tradicionais têm pressionado muito para aumentar o número de escolas charter e flexibilizar ainda mais as leis que as regulam.
Uma forma de pressão é injetar grandes quantidades de dinheiro nas escolas charter para que diferentes grupos possam iniciar novas escolas charter. Um dos financiadores que se destaca é a fundação da família Walton, dona do Walmart e uma das mais ricas do país. Além do investimento em escolas charter, durante décadas investiram milhões tentando desviar fundos da escola pública às escolas privadas com bônus. De qualquer maneira, é importante destacar que o investimento federal, através do Programa Charter, tem superado os investimentos realizados por grandes fundações privadas.
CE: Um dos argumentos favoráveis às escolas charter é as famílias terem a possibilidades de escolha. O que você acha disso?
DH: Seguramente existem escolas charter “Mamãe e Papai” que trabalham bem e que, em média, são menores que as escolas públicas tradicionais. Mas hoje o setor charter de escolas públicas está dominado pelas corporações. O volume de negócios é elevado. Lembre-se que muitas dessas escolas são administradas por empresas com fins lucrativos e têm de obter seus 15% de lucros de algum lugar.
O que significa isso quando pensamos nas oportunidades educacionais para crianças e jovens? Por exemplo, uma escola tradicional pode gastar 65 mil dólares por ano em eletricidade. Se um grupo de alunos sai e vai para a escola charter, o uso de eletricidade não diminui e as contas têm de ser pagas, mas parte do financiamento vai embora junto com os alunos para as escolas charter. Os impactos negativos sobre as escolas de bairro tradicionais são enormes. E, sem falar das denúncias de segregação e mãos tratos que as crianças e jovens sofrem em algumas escolas charter.
CE: Muitas escolas fecham após um tempo de funcionamento, não?
GH: Sim, esse é um problema grave para os alunos. Temos muitas ​​interrupções na escolaridade de crianças e jovens causadas por fechamento de escolas charter. Dados de 2000- 2012, os últimos disponíveis, mostram o fechamento de 27% das escolas charter nesse período. Uma análise desses dados nos indicam que quantos mais anos de funcionamento tem a escola, maior é a probabilidade de ela fechar. Cerca de 40% não sobrevive após 12 anos desde o nascimento. No entanto, também temos um número considerável de escolas charter que deixam de funcionar já no primeiro ano de funcionamento.
CEQual é a taxa de graduações nas escolas charter e em escolas públicas tradicionais? Há diferenças por conta de diferentes etnias?
DH: Em geral, são muito mais baixas nas escolas charter vis-à-vis escolas públicas tradicionais. E isso é verdade independentemente da etnia.  Em 2015, a taxa de graduação no Ensino Médio nas escolas públicas tradicionais foi de 84%, contra 61% das escolas charter
CE: Por que corporações têm interesse nas escolas charter?
DH: Lucro. O custo da educação básica pública está se aproximando de 1 trilhão de dólares por ano, sendo 80% para pagamento de pessoal. As forças privatistas têm procurado captar de diferentes maneiras uma parte significativa desse dinheiro para si. Por exemplo, através da emissão de bônus (voucher) para pagar a mensalidade em escolas privadas para crianças pobres, benefícios fiscais para quem paga escola pública, terceirização de funções tradicionalmente desempenhadas por funcionários públicos (alimentação, transporte e limpeza) e agora, também, via escolas charter.
No geral, os milionários defensores da escola charter são obcecados em criar e expandir um sistema de educação paralelo à educação pública tradicional que reflita os valores corporativos e não seja responsável publicamente frente aos pais e a comunidades. Esse esforço exacerba a desigualdade de renda, uma vez que drena recursos de distritos escolares públicos e prejudica o seu sucesso.
Modelo ameaça educação pública precária do Brasil (Foto:
Fernando Frazão/ Agência Brasil)

CE muitas denúncias sobre corrupção nas escolas charter.
DH: Há muitos casos de corrupção em escolas charter. O governo federal dá todos aqueles milhões de dólares e não monitora o dinheiro. Os estados tampouco o fazem. A NEA pressiona para que as leis da escola charter incluam mais exigências na prestação de contas, mas existe uma resistência maciça do lobby da escola charter. Eles se queixam de regras “onerosas” e dizem que precisam de “liberdade” para inovar, mas o que conseguem é um ambiente em que ninguém sabe (ou não quer saber) onde e como o dinheiro é gasto ou se as necessidades dos alunos e professores estão sendo atendidas.
Claro que tem havido casos de corrupção na administração do ensino público também. Mas são poucos e por um bom motivo: há muitos controles contábeis e financeiros. Já o modelo de gestão da escola charter permite um truque fiscal muito hábil. Informações levantadas em  Los Angeles mostram que:  as corporações criam organizações sem fins lucrativos para gerir cadeias de escola charter e criam empresas de responsabilidade limitada para controlar as propriedades da escola.
Na Califórnia, ganham dinheiro alugando imóveis para escolas charter, pelos quais são reembolsados por verbas de agências estaduais e federais. Essas empresas podem até emitir títulos negociáveis no mercado que, em última instância, estão garantidos pelo contribuinte. Houve recentemente um escândalo em Ohio, onde encontraram dados falsos sobre o sucesso das escolas charter de uma dessas corporações, usados para receber mais verbas federais.
CE: Por que o número de escolas charter tem aumentado e o mesmo não acontece com o sistema de bônus para as escolas privadas?
DH: Boa pergunta. Não tenho certeza, mas certamente os americanos entendem que é impossível ter o controle do dinheiro público se ele é entregue às escolas privadas. A maioria das escolas que aceitam estudantes com bônus são escolas religiosas. Acho que isso também pesa porque duvido que as pessoas estejam de acordo que os alunos recebam educação religiosa com dinheiro público.
CE: A escola charter é inevitável? Se sim, por quê?
DH: No curto e médio prazo, com certeza. Em parte, porque elas preenchem uma demanda social e uma parte dessas escolas são bem-sucedidas. Mas principalmente porque elas servem aos interesses políticos de capturar o máximo de orçamento da educação pública para o lucro privado e de minar os professores e seus sindicatos. Isso é muito sério porque exacerba ainda mais as desigualdades já existentes em nosso sistema de educação pública e serve como uma distração para os passos reais necessários para melhorá-la.
*Nora Krawczyk é professora da Faculdade de Educação no Departamento de Ciências Sociais e Educação e membro do Grupo Políticas Públicas e Educação na Unicamp. Atualmente faz pós-doutorado na Universidade de Maryland, EUA. norak@unicamp.br 

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