quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

CIÊNCIAS HUMANAS COM A NOVA BASE NACIONAL CURRICULAR

Como ficam as ciências humanas com a nova base nacional curricular?

Disciplinas de humanas são tradicionalmente aquelas em que os conflitos decorrentes de diferentes visões de mundo mais vêm à tona. A Base Nacional não foge à regra.



As ciências humanas devem fazer os alunos refletir sobre
temas como a responsabilidade coletiva sobre o mundo
A área de ciências humanas reúne no texto de referência da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) os componentes curriculares de história, geografia e ensino religioso no ensino fundamental, incluindo no ensino médio também a filosofia e a sociologia. O grande objetivo da área é levar os alunos a refletir sobre a própria existência, o valor dos direitos humanos, além da autonomia e a responsabilidade coletiva sobre o mundo a ser herdado pelas próximas gerações.

Ileizi Fiorelli Silva, professora de ciências sociais na Universidade Estadual de Londrina (UEL) e membro da equipe de especialistas que redigiu o texto de referência da Base, diz que a intenção é orientar a organização das escolas, favorecendo as metodologias ativas. “Queremos que os alunos se apropriem do conhecimento, sejam sujeitos de sua construção”, afirma. Ela reconhece que não se trata de um documento “dos sonhos”, mas sim de um modelo que se aproxima da realidade das escolas de hoje, do que já é praticado no Brasil. Em praticamente todas as disciplinas, contudo, há bastante discordância entre acadêmicos sobre as escolhas do grupo que redigiu a Base.

Para Artur Whitacker, professor de geografia da Unesp, os dissensos são naturais e eram esperados. “É um equilíbrio muito tenso com a decisão de quais conteúdos abordar e como abordar, sobretudo no que não é instrumental. Quanto mais a gente se aproxima das ciências humanas, mais pontos de tensão aparecem, porque os conhecimentos dependem de visões de mundo”. Na geografia há conceitos mais instrumentais, como saber a localização, e as partes que tratam das dinâmicas da natureza – quanto a eles, não costuma haver polêmicas. “Mas ao discutir fronteiras e cidades aparecem mais conflitos, porque implicam julgamentos de valor, visões de mundo”, explica.

Perto e longe

Uma sequência que aparece em todas as disciplinas é partir da realidade mais próxima ao aluno, para aos poucos ir se distanciando. Na geografia, os objetivos de aprendizagem das crianças mais novas estão ligados a questões da casa, da família, do bairro, da escola – coisa que elas conhecem bem. “Já no ensino médio, a capacidade de abstração está ampliada e a realidade do aluno não é mais só aquela da proximidade física. Ele pode lidar com fatos e acontecimentos que não sejam necessariamente da sua vizinhança, porque não precisa trabalhar com o empírico”, diz Whitacker.

A escolha que privilegia a proximidade fez com que o texto de história fosse criticado até pelo ex-ministro da Educação, Renato Janine, que, quando ainda no cargo, considerou que a Base estava abordando em demasia a história do Brasil e da África, deixando de lado a história do mundo de forma mais ampla. Para Palma Filho, da Unesp, mesmo na história brasileira há problemas, pois a ênfase parece estar em discutir o presente. “Há um esvaziamento da história política do país; eventos políticos não aparecem no programa. História é para saber como foi o passado; se for para falar do presente, então é sociologia”, afirmou.

Marcos Silva, professor de metodologia da história na USP, considera o texto bom, pois entende que a base não pretende indicar tudo. “Foi priorizada a história do Brasil, o que a meu ver é positivo, porque é o lugar de onde o professor fala, onde os alunos estão. É a grande referência para todos”. Segundo Silva, o Brasil deve ser visto como o ponto de partida. “Você aborda a colonização e logo vai estudar também outros países que foram colonizados, vai falar sobre a Europa e sobre o catolicismo. Para falar do catolicismo tem de abordar a história antiga hebraica, egípcia, mesopotâmica, depois a história da Grécia e do império romano. A história vai se desdobrando”, acredita.

Mas esse entendimento é polêmico. Há quem veja no documento um olhar a-histórico que privilegia “supostas essências culturais”, em detrimento de uma visão mais processual. É o que escreveram os professores Demétrio Magnoli e Elaine Senise Barbosa em artigo no caderno Ilustríssima, da Folha de S.Paulo (A abolição da história – A proposta do MEC mata a temporalidade, em 8 de nov. de 2015). Ou seja, segundo essa interpretação, ao pouco valorizar as periodizações típicas da história e os ciclos anteriores à história do Brasil ou a ela pouco diretamente conectados, o documento não só empobrece a grande diversidade de fatos, como também de sentidos. Afinal – e aqui já não são as palavras dos autores, mas a interpretação que delas se faz – essa visão mais essencialista corresponderia a privilegiar cortes mais sincrônicos do que diacrônicos, procurando estruturas sem situá-las no tempo.

Parece, mais uma vez, que as opções extremadas tomadas para corrigir uma distorção anterior acabam por agregar uma nova distorção, sem corrigir a anterior. Ou seja, para privilegiar a história brasileira, não é preciso obscurecer a universal, assim como para melhorar o contato com a prática nos cursos de pedagogia não é preciso ceifar o ensino dos fundamentos da educação.


Filosofia do cotidiano

Em filosofia, Sérgio Augusto Sardi, professor de filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e membro do Conselho Editorial da Coleção Filosofia e Ensino, elogia a opção de quase sempre abordar o cotidiano. “O texto traz os conteúdos para a realidade do aluno, não ficam restritos à erudição”, diz. Contudo, ele critica a falta de outros elementos, como a história da filosofia e as diferentes formas de pensamento filosófico, como a metafísica, a hermenêutica. “Se é por achar que um aluno de ensino médio não pode acompanhar, acho preconceituoso, porque eles são, sim, capazes”. Sardi também estranhou não haver sequer menção à palavra “crítica”, que “é uma das essências da filosofia”.

Na sociologia, as conexões com a vida cotidiana têm a meta de tornar o estudante capaz de fazer uma leitura do seu aprendizado e da sua vida. “A sociologia é aplicada, e não uma história das ideias de certos autores. O texto consagra a ideia de que o aluno consiga estranhar e desnaturalizar seu cotidiano”, diz Ileizi. Para ela, a sociologia ajuda a formar um cidadão capaz de se inserir criticamente na sociedade, para além de ter conhecimentos técnicos.

Mas será que a Base vai realmente ajudar a formar cidadãos melhores? Antônio Augusto Batista, coordenador de pesquisas do Cenpec, acredita que falta uma abordagem mais direta a questões de gênero e raça para que isso de fato aconteça. “Esses conteúdos até aparecem, mas de forma eufemizada. Quase não se menciona a palavra gênero, mal se fala em raça. Isso é um retrocesso. No governo FHC [Fernando Henrique Cardoso, 1995-2003], os parâmetros curriculares abordavam enfaticamente essas questões, e a escola conseguiu muito bem lidar com elas. No contexto atual de polarização política, só aparecer a palavra diversidade já causa polêmica”, avalia.

Resta saber se a proposta terá fôlego para que os docentes trabalhem com os estudantes também as ferramentas vitais para que eles possam vir, por si próprios, a pensar, analisar e construir visões de história, do mundo e do homem.

O desafio da interdisciplinaridade 
© iStockphoto
Encantar, desafiar, usar recursos lúdicos e promover interações dos alunos com o mundo são algumas das propostas presentes no documento de referência para a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) na área de ciências da natureza. Os objetivos são divididos por quatro eixos estruturantes: conhecimento conceitual; contextualização histórica, social e cultural; processos e práticas de investigação; linguagens das ciências da natureza. 

Assim como os objetivos de língua portuguesa são aplicados em diferentes “campos”, nas ciências da natureza, os conhecimentos são mobilizados de acordo com seis “unidades de conhecimento”, que são materiais, ambiente, saúde, Terra, vida e sentidos. “A BNCC representa um grande avanço na direção de um ensino interdisciplinar, contextualizado e realizado a partir de uma integração conceitual nas ciências da natureza, capaz de projetar o atual cenário da pesquisa científica e tecnológica, nas diferentes instâncias educacionais, da Educação Básica à universitária”, afirma Carlos Alberto dos Santos, professor do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e ex-avaliador de cursos do MEC.

A área de ciências da natureza, contudo, tem a peculiaridade de ser uma disciplina única no ensino fundamental, que é subdividida em três no ensino médio – química, física e biologia. É aí que os problemas para manter a integração entre os assuntos estudados começam, avaliam alguns especialistas. 


Interdisciplinaridade

Embora o texto se proponha já na apresentação a trabalhar as ciências da natureza de forma integrada, na prática, quando o componente é dividido em três no ensino médio, não é isso que acontece. “A interdisciplinaridade está conceitualmente proposta na BNCC, mas sua implementação necessita de ajustes, sendo essa uma tarefa muito difícil por causa da arraigada defesa da formação disciplinar demonstrada por inúmeros especialistas da área”, avalia Santos.

Aparentemente, os especialistas de biologia, física e química não trataram do planejamento de uma integração conceitual, acredita o professor. “Por exemplo, energia e matéria são dois dos conceitos mais transversais nas ciências da natureza. Uma boa abordagem interdisciplinar poderia ser implementada se a estrutura conceitual de biologia, física e química fosse apropriada pelos alunos a partir desses conceitos.” 

O que se tem na Base são os conteúdos referentes a energia e matéria apresentados em física e química no 1º ano, enquanto entram em biologia apenas no 2º ano. “Nesse caso, o deslocamento da biologia dificulta o tratamento contextualizado de energia e matéria. Seria necessário que a estrutura curricular de biologia fosse alterada para colocar o tema de energia e matéria no 1º ano”, sugere Santos, que também cita conceitos repetidos em física e química, como os referentes aos modelos atômicos. 

Para a bióloga Maria de Lourdes Lazzari, professora da Universidade de Brasília (UnB), contudo, não há interdisciplinaridade de fato desde os primeiros anos do fundamental, além de faltarem outras condições para melhorar o ensino. “O letramento científico que a Base propõe é a capacidade de entender e usar o conhecimento para explicar fenômenos e tirar conclusões baseadas em evidências. Mas não basta só pensar em conteúdos, eles têm de conversar entre si e virem atrelados a outras políticas públicas, como formação inicial e continuada, infraestrutura nas escolas”, afirma. 

Maria de Lourdes cita como exemplos de boas práticas educacionais das escolas a realização de feiras de ciências e projetos de saúde, coisas que não são contempladas pela Base. Nesse caso específico, resta saber se a Base deveria contemplar também práticas que caracterizam mais o como fazer do que o que ensinar. (LA)


Por Luciana Alvarez e Rubem Barros
Fonte: http://revistaeducacao.com.br

QUALIDADE DA EDUCAÇÃO INFANTIL

'Para psicólogo americano, qualidade da educação infantil depende da relação professor-aluno. Em entrevista exclusiva, Hirokazu Yoshikawa fala sobre realidade e tendências da etapa no mundo.'

Hirokazu Yoshikawa: ênfase na qualidade 
do processo educacional
Nas últimas décadas, pesquisas nas áreas da economia e da neurociência ajudaram a fundamentar e ampliar a oferta de políticas públicas para a primeira infância em diversos países. Tornou-se comum afirmar que o investimento em educação infantil tem alta taxa de retorno social. A busca pela ampliação do acesso, entretanto, nem sempre foi acompanhada pela qualidade dos sistemas. A consequência é que estamos perdendo a chance de produzir os efeitos desejados.

As conclusões são do psicólogo Hirokazu Yoshikawa, que desde a década de 1990 conduz pesquisas sobre políticas públicas e programas para a primeira infância em países de baixa renda. Para Hiro, como é conhecido, chegou a hora de analisar como esses investimentos são realizados. “A pesquisa que deve guiar os próximos 15 anos é como apoiar os professores para realmente produzir a qualidade que todos gostaríamos de ver.” Para o pesquisador, o que mais importa para as crianças na educação infantil é a qualidade da interação e das atividades propostas pelos professores. 

Hiro, que leciona globalização e educação na Universidade de Nova York, conduziu recentemente projetos em duas regiões do Chile e na cidade americana de Boston. Nesses locais e no estado americano de Oklahoma, tutores passaram a acompanhar os professores, que recebiam devolutivas sobre o seu trabalho. Os resultados, combinados com outras estratégias, foram positivos. 

Na entrevista a seguir, concedida durante sua passagem por São Paulo para participar do V Simpósio Internacional de Desenvolvimento da Primeira Infância, Hiro fala sobre a importância de avaliar o processo educacional, e não apenas os insumos oferecidos nessa etapa de ensino.

Quais são os efeitos da educação pré-escolar para o desenvolvimento infantil? 

Há centenas de estudos conduzidos nos últimos 60 anos que avaliam de forma rigorosa como a pré-escola afeta o crescimento e o desenvolvimento das crianças. Mostram que, no curto prazo, pode melhorar o aprendizado e o desenvolvimento social. No longo prazo, pode reduzir o crescimento da repetência no ensino médio, aumentar a renda e diminuir a criminalidade. Mas isso acontece quando a educação pré-escolar é de alta qualidade.

Como definir o que significa qualidade nessa etapa?

O conceito de qualidade tem algumas dimensões. As mais fáceis de regulamentar pelas políticas públicas são as relacionadas a padrões de saúde e segurança, tamanho das turmas e qualificação dos professores. Mas as dimensões que mais importam são a qualidade da interação na sala de aula, dos materiais, e o tempo dedicado a atividades que construam habilidades e desenvolvam áreas específicas. É um desafio muito maior. E apenas algumas pesquisas recentes apontam como melhorar essa forma de qualidade, a do processo educacional.

Podemos dizer que esse é o grande desafio no momento? 

Diria que são dois: o acesso e a qualidade. Concordaria que num país como o Brasil, onde o acesso tem crescido nos últimos anos, a qualidade, provavelmente, é mais importante. As pesquisas que conheço do Brasil mostram que, assim como em muitos países, a escola pública pré-escolar tem qualidade relativamente baixa. Isso significa que não estamos tendo todos os benefícios que as pesquisas mostram. Para isso, precisamos focar a qualidade do processo educacional na sala de aula.

Os governos estão investindo recursos na educação pré-escolar sem alcançar os resultados desejados?

Na maioria dos países a quantidade de investimento no primeiro ano da educação pré-escolar é menor do que na educação primária. Muito porque os professores não têm o mesmo nível de qualificação. É um campo marginalizado, pouco profissionalizado. Nos países de baixa renda o investimento fica abaixo do desejado. Há muitos países em que os governos não estão investindo quase nada. Mas o Brasil entra no rol dos que investem bastante. Entre esses países, diria que sistemas de larga escala de educação pré-escolar estão alcançando os resultados que nós gostaríamos de ver.

Quais países têm alcançado práticas de alta qualidade? 

Em todos os países há lugares em que uma educação pré-escolar de qualidade está sendo implementada. Isso é verdade no Brasil e em vários países da América Latina. Não tenho certeza de que um país inteiro tenha uma estrutura política que possa ser importada como modelo, em detrimento de suas preferências culturais. Temos de pensar em sistemas descentralizados, e que possam funcionar. Há abordagens para melhorar o processo da qualidade que incluem primeiro ter uma ligação entre um padrão nacional de qualidade e o currículo. Normalmente não há essa relação. Os padrões estão lá, e talvez apareçam na formação dos professores, mas, uma vez que o professor está na sala de aula, o que acontece é que ele escolhe o que fazer, sem uma sequência de atividades ao longo do ano pré-escolar. As pesquisas mostram que sequências de atividades que constroem as habilidades das crianças ao longo do tempo em áreas especificas, como linguagem, desenvolvimento socioemocional, ou ciência, ajudam o desenvolvimento infantil. Além disso, se um tutor vem e observa a sala de aula, o seu ensino, pode dar apoio e fazer comentários.

Este sistema de tutoria foi testado? Quais os principais resultados?

Testamos isso em pequena escala no Chile. Boston implementou em toda a cidade, e foram detectados efeitos muito amplos em linguagens, vocabulário, assim como em habilidades socio-emocionais e autorregulação. Em Bogotá, na Colômbia, foi testado na cidade toda, também com bons resultados. Mas esse tipo de apoio depende das habilidades do tutor.

Como é realizado esse trabalho de tutoria?

É um apoio em serviço, na sala de aula. Na maioria dos países, a supervisão e a inspeção olham apenas aspectos estruturais da qualidade, como saúde, segurança e materiais. Há algumas interações, mas não há formação para os supervisores entenderem o que são boas instruções, ou boas interações. Ou para promover esse tipo de comentário de apoio aos professores. Sabemos que os adultos aprendem ao serem observados e recebendo comentários. E muitos professores da pré-escola estão isolados em suas aulas de aula. É uma profissão solitária. O notável em nosso trabalho no Chile é que os professores se sentiram apoiados e emocionalmente conectados com o seu trabalho porque alguém os engaja em uma discussão sobre a sua prática. Reuniões entre grupos de professores também são importantes. Mas os tutores têm de ter experiência em ajudar adultos a aprender, e não apenas no aprendizado das crianças. 

No Brasil, a brincadeira é norteadora das Diretrizes Curriculares para a Educação Infantil. É assim em outros países? 

A brincadeira é o modo como as crianças aprendem na pré-escola. Mas às vezes as pessoas confundem essa ideia de brincadeira com uma completa falta de estrutura. Ao olhar para as práticas de alta qualidade baseadas em brincadeiras, como em Reggio Emilia, vemos abordagens sequenciadas muito sofisticadas. Os currículos mais efetivos conferem orientação sobre como os professores podem estruturar essas atividades e apoiar a brincadeira infantil, que pode assegurar o desenvolvimento das habilidades das crianças, que haja socialização, que possam gerar hipóteses. Mas isso requer, como qualquer outra abordagem pedagógica, apoio profissional. 

A abordagem de Reggio Emilia é muito popular no Brasil. Também é referência em outros países?

Nos Estados Unidos, infelizmente, os professores da pré-escola têm baixo nível educacional e baixos salários. E o sistema de Reggio requer treinamento, qualificação e sofisticação. É popular em certas áreas do país, mas em outras, as pessoas sugerem que pode ser muito difícil prover esse modelo em um estado inteiro, ou numa grande cidade. 

É possível promover uma educação pré-escolar de qualidade em larga escala?

Venho de um país que não foi capaz de fazer isso, mas Oklahoma, por exemplo, conseguiu, assim como a cidade de Boston. Em Oklahoma isso foi construído num período de dez anos. Boston foi capaz de fazer em um período bem menor, o que é bem impressionante. A cidade escolheu um currículo em particular e contratou tutores altamente habilitados. Em cerca de três anos produziu um sistema em que os níveis de qualidade passaram de bem baixos para bem altos.

É possível universalizar a educação pré-escolar com qualidade?

Uma das lições do “Education for All” 2000-2015 [metas globais da Unesco] foi a de que, mesmo em países de baixa renda, é possível alcançar altos índices de acesso. Mas o perigo é que essas crianças não estão se desenvolvendo porque não há um investimento simultâneo na qualidade. Minha esperança é a de que, com as Metas do Desenvolvimento Sustentável [da ONU], sobre qualidade no cuidado e educação da primeira infância, poderemos colocar ênfase nessa palavra, definir o que significa e desenvolver essas medidas. De forma que, quando um supervisor vá a um programa, ele não esteja checando apenas a segurança, ou a infraestrutura. Precisamos também começar a prestar atenção à qualidade da interação dos professores com as crianças na sala de aula.

No Brasil, o problema é mais crítico no atendimento às crianças dos 0 aos 3 anos. Esse é um problema global?

Sim, a etapa do 0 a 3 é outra agenda global, e deve envolver o apoio aos pais. Em muitos países isso depende de onde as crianças estão, porque em muitos países elas estão em centros de cuidado fora de casa, e essas questões de qualidade são muito mais desafiadoras. Nos Estados Unidos temos dois, ou três estudos, mostrando que o modelo de tutoria adotado nas creches também produz aumento na qualidade desses programas, assim como a baixa qualidade pode ter resultados negativos para as crianças. Como em qualquer outra profissão, os cuidadores merecem esse apoio. E a maioria das creches não pensa nesses trabalhadores como profissionais em que é preciso investir.

Seus estudos em Boston mostraram que a educação pré-escolar de qualidade pode beneficiar tanto crianças de baixa renda, quanto da classe média?

O sistema de Boston, como o de Oklahoma, é universal e gratuito. Nossa pesquisa mostrou que todos os grupos se beneficiaram, sendo que os grupos de mais baixa renda e de minoria racial se beneficiaram mais. Crianças de origem latina, imigrantes, se beneficiaram mais também. Um sistema universal de alta qualidade pode reduzir desigualdades. É um dado importante.

O senhor está liderando um projeto sobre o impacto da redução da pobreza para crianças nos 3 primeiros anos de vida. Já há algum resultado preliminar?

Sabemos que, no cérebro em desenvolvimento, o efeito do ambiente é um dos mais poderosos nos primeiros anos de vida. Mas não testamos se a redução da pobreza aumenta o desenvolvimento infantil e o aprendizado, ou a função cerebral até os 3 anos. É um projeto amplo, apenas começamos o projeto piloto, mas será importante para termos dados para as políticas públicas de proteção social para saber o quanto a redução da pobreza pode beneficiar as crianças nessa idade. Temos essas evidências em crianças mais velhas, mas faltam dados para o período do nascimento até os 3 anos. Esse projeto é excitante, em parte, por ser interdisciplinar: envolve psicólogos, economistas e analistas de politicas públicas. É um grande projeto e ainda estamos levantando fundos. Não sabemos ainda quando estará pronto. 

Por Juliana Holanda - Revista e Educação