sábado, 26 de setembro de 2015

"A FUNÇÃO DA ESCOLA NÃO É INSTRUIR. É DESCOBRIR"

Aluno e parceiro de Paulo Freire, o professor Moacir Gadotti defende: o educador precisa se reinventar constantemente.


Aluno e parceiro do mestre em pedagogia Paulo Freire, o professor Moacir Gadotti defende a ideia de que o educador precisa se reinventar constantemente. Referência em educação, Gadotti faz uma análise atual da escola no país e diz que não há uma idade certa para se aprender. Na próxima quarta-feira, dia 23, ele participa como conferencista do 13º Congresso Internacional de Tecnologia na Educação, que acontece até sexta-feira, no Centro de Convenções de Pernambuco. Na conferência, ele falará sobre Educar para um outro mundo possível. O Diario conversou com Gadotti, que adiantou detalhes da palestra e também comentou sobre analfabetismo e a formação de educadores. Fez ainda uma reflexão sobre o papel do professor para fazer com que os alunos se sintam cada vez mais envolvidos no processo de aprendizagem. “Temos que nos reinventar diante de múltiplas metamorfoses provocadas pelo advento das novas tecnologias da informação e do mundo digital”, resume o educador, que lecionou da pré-escola a pós graduação em 46 anos de magistério.

O senhor diz que a escola precisa ser reencantada, encontrar motivos para que o aluno vá para os bancos escolares com satisfação, alegria. Como fazer isso, em lugares onde a realidade é bem complicada com problemas estruturais graves, como por exemplo, a falta de material escolar?

O grande educador pernambucano Paulo Freire nos ensinou que aprender é gostoso, mas exige esforço. Por isso, o papel da escola é despertar o desejo de aprender. O professor precisa saber muitas coisas para ensinar. Mas, o mais importante não é o que é preciso saber para ensinar, mas, como devemos ser para ensinar. O aluno quer saber, mas nem sempre quer aprender o que lhes é ensinado. O aluno precisa ser autor, ser rebelde, criador. A função da escola não é instruir. É descobrir. A escola do futuro será ousada, corajosa, formando para a autonomia, para o sonho e para a liberdade. A escola precisa, para ser eficaz, perguntar-se mais, despertar novas perguntas e não oferecer respostas para perguntas que ninguém fez. Se não temos perguntas que nos desafiem, não acharemos o caminho, não aprenderemos a superar as dificuldades da realidade desafiadora do presente.

Educar é também aproximar o ser humano do que a humanidade produziu. Se isso era importante no passado, hoje é ainda mais decisivo numa sociedade baseada no conhecimento e na tecnologia. Então como o professor deve agir?

Todos temos o direito de nos apropriar do que a humanidade já conquistou. As novas tecnologias estão nestas conquistas. Hoje é difícil imaginar que já vivemos sem Internet e sem celular. Se nos tirarem isso, hoje, certamente nosso mundo entraria em colapso. Com a rapidez com que ocorrem as mudanças, é difícil imaginar o que vem por aí. Devemos estar abertos a profundas mudanças. Nesse contexto, o papel do professor está mudando de lecionador para organizador da aprendizagem. Torna-se fundamental aprender a pensar autonomamente, saber comunicar-se, saber pesquisar, aprender a trabalhar colaborativamente, saber organizar o próprio trabalho, ter disciplina, ser sujeito da construção do conhecimento, estar aberto a novas aprendizagens, saber articular o conhecimento científico com o saber sensível, o saber técnico e o saber popular.

O ofício de professor corre risco de extinção?

Não. Muito pelo contrário. Mas, sim, um certo professor desaparecerá: o professor lecionador, como disse antes. Porque o professor, hoje, deve ser um problematizador do futuro e não um facilitador do presente, um repassador de conteúdos. Aprender não é ter acesso a computadores, a uma informação. Aprender é contextualizar a informação, atribuir-lhe sentido, construir conhecimento. O professor não é um aplicador de textos, um repassador de informações, um “facilitador”. É muito mais um “problematizador”. Facilitador é o computador. O que distingue um professor é a autoria. O multiplicador apenas replica o que aprendeu. Um computador pode fazer melhor isso do que um ser humano. O papel do professor não é repetir mecanicamente dados, informações e processos. É produzir conhecimento e reinventar a realidade.

Então como o professor pode fazer para evitar que seja um mero executor do currículo oficial?

Essa é uma pergunta complicada porque vivemos numa época em que os governos, nas suas três esferas, vêm perdendo a hegemonia do projeto educacional. Empresas e fundações privadas estão impondo políticas de educação instrucionistas a governos que não têm projetos pedagógicos. Não discutem valores, projeto de democracia, não formam para a cidadania mas apenas para o mercado. Sistemas educacionais privados transformaram os professores das redes públicas em máquinas de ensinar, meros executores de tarefas previamente apostiladas. Devemos reagir a essa mercantilização da educação. Esses sistemas desvalorizam o professor, a professora. Os professores estão excluídos de toda discussão do tema da qualidade. Eles não têm voz. O que se busca é uma estandardização da qualidade, da avaliação, da aprendizagem.

Qual a diferença do professor de hoje e daquele professor do passado?

Ser professor hoje, no século 21, não é nem mais difícil nem mais fácil do que era no século passado. É diferente. Diante da velocidade com que a informação obsolesce e morre, seu papel está mudando: ele não só transforma a informação em conhecimento e em consciência crítica, mas também forma pessoas. Ele faz fluir o saber, porque constrói sentido para a vida das pessoas e para a humanidade. Por isso, ele continuará imprescindível. Seu papel continua sendo “ensinar”, no seu sentido etimológico, do latim “insignare”, que significa “marcar com um sinal”, indicar um caminho, um sentido. Ser professor é, essencialmente, ser profissional do sentido.

Por que o senhor diz que não há tempo próprio para aprender?

Não foram poucas as iniciativas governamentais nos últimos 60 anos, que tentaram eliminar o analfabetismo no Brasil. Apesar disso, continuamos com milhões de jovens, adultos e idosos que não sabem ler e escrever um bilhete simples. E aí se introduz o conceito de “alfabetização na idade certa” como se existisse uma idade apropriada para aprender. Para mim, isso foi um grande equívoco, gerando preconceito contra os que não conseguirem se alfabetizar nesta idade. Cria-se o mito de que existe uma idade certa para aprender, contrariando tudo o que a Unesco defende: uma aprendizagem ao longo de toda a vida.

Apesar dos avanços registrados, ainda convivemos com atrasos como o analfabetismo. O que o senhor aconselha para superarmos esse grande desafio?

Sabemos que, entre nós, o direito à educação não é garantido para todos e todas. Apenas um em cada quatro brasileiros, acima de 15 anos, tem domínio completo da leitura e da escrita. Mas, felizmente, esse desafio foi equacionado pelo Plano Nacional de Educação (PNE). A saída está em executá-lo. A garantia desse direito depende muito, hoje, da mobilização em favor do cumprimento das metas 9 e 10 do PNE. Vivemos uma democracia na qual muitas promessas são feitas e não cumpridas. A Constituição de 1988 garantia que o analfabetismo seria eliminado em 10 anos. O PNE 2001-2011 fez a mesma promessa que não foi cumprida. O PNE 2014-2024 retoma essa meta. Resta saber agora se novo PNE é para valer. Depende de nós.