terça-feira, 17 de junho de 2014

CIÊNCIA POLÍTICA: EDUCAÇÃO PÚBLICA VERSUS EDUCAÇÃO PRIVADA

Robert Dahl é um cientista político norte-americano bastante conhecido por ter introduzido o conceito de "poliarquia", que reflete as características de regimes democráticos existentes com mais realismo. Em Who governs? – Democracy and power in an American city (Quem governa? Democracia e poder em uma cidade norte-america, sem tradução para o português), um trabalho não menos importante do autor publicado em 1961, um estudo de caso da cidade de New Haven, no estado de Conneticut, é usado para a investigação da seguinte pergunta: como os regimes democráticos funcionam em um sistema político no qual há desigualdade de recursos (de diversos tipos)? Uma das políticas públicas analisadas por Dahl é a educação.

Uma lei estadual de 1869 exigia que todos os municípios oferecessem escolas públicas, mas muitos pais matriculavam seus filhos em escolas particulares ou ligadas à igreja católica. Dados apresentados no livro indicam que uma em cada cinco crianças estava matriculada em estabelecimentos particulares. Quando faz o recorte socioeconômico, o autor mostra que apenas uma em cada dez crianças que moravam em bairros pobres estava em escolas particulares, número que subia para quatro no casos dos bairros ricos.

Dahl identifica dois impasses imediatos para líderes políticos gerados a partir da matrícula em escolas particulares. O primeiro é a redução da preocupação com a qualidade da escola pública por parte dos pais com nível de escolaridade alto. "Muitos pais mais educados, que normalmente apoiariam a instituição de melhores padrões para as escolas públicas, provavelmente dão mais atenção às escolas privadas onde seus filhos estudam", escreve. O outro impasse é a sobreposição de custos no caso dos pais que optam pela rede particular, que pagam, ao mesmo tempo, impostos para ter acesso à educação pública e mensalidades para ter acesso ao ensino privado. Tal sobreposição, segundo o autor, pode originar oposição a maiores investimentos em educação pública.

No Brasil, entre 2009 e 2012, houve um crescimento de aproximadamente 13,8% no total de matrículas em educação básica na rede particular (em valores absolutos, saímos de 7,3 milhões para 8,3 milhões de matrículas). As matrículas em escola pública, em contrapartida, caíram aproximadamente 6,7% no período: passaram de 45,2 milhões para 42,2 milhões. Em 2012, dos 50,5 milhões de alunos matriculados, 83,5% (ou 42,2 milhões) estavam em escolas públicas e 16,5% (ou 8,3 milhões) estavam na rede particular. 
Os dados são do Censo Escolar, realizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas e Estudos Educacionais Anísio Teixeira.
grafico blog final








Fonte: http://www.educacaoepesquisa.blog.br/

A lógica global - Como a globalização está impactando a educação ao redor do mundo?

Pesquisador da Universidade Autônoma de Barcelona, Antoni Verger analisa como a globalização está impactando a educação ao redor do mundo e os atores que influenciam a agenda educacional mundial.

A influência exercida pelo setor privado e pelas or­ga­nizações internacio­nais nas políticas educacionais é um dos principais temas de estudo de Antoni Verger, pesquisador da Universidade Autônoma de Barcelona (UAB) que, em março, esteve no Brasil para participar do II Seminário Regional sobre a Privatização da Educação, realizado pela Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação (Clade). Ph.D. em Sociologia, Verger explora como tais instituições estão moldando ou tentando moldar a agenda educacional ao redor do mundo, e os impactos das políticas globais criadas a partir dessas influências.

Na entrevista a seguir, Verger explica como, direta ou indiretamente, esses organismos tentam impor aos governos mudanças em seus sistemas educacionais sob o argumento de que melhorarão o acesso da população à educação e de que tornarão o setor mais eficiente e desburocratizado, movimento percebido principalmente nos países em desenvolvimento. Mas o pesquisador alerta: as nações ricas não estão imunes a esse processo, principalmente quando contam com a presença de instituições de prestígio, como a Fundação Bill e Melinda Gates.

Uma das conclusões de seu estudo é que a globalização está afetando drasticamente o cenário das políticas educacionais ao redor do mundo. O que estamos testemunhando hoje em dia?

A globalização afeta a educação de muitas maneiras e por razões de naturezas diversas. Sobre isso, podemos mencionar desde a revitalização do papel desempenhado pelas organizações internacionais nas políticas educacionais – papel tradicionalmente reservado para os governos nacionais ou locais – até os avanços tecnológicos que têm permitido a disseminação de formas de educação transfronteiriças, como os Moocs [Massive Online Open Courses, sigla em inglês para cursos online massivos e abertos]. No entanto, os efeitos mais significativos da globalização têm uma natureza bastante indireta. Refiro-me a todas as mudanças sociais e econômicas trazidas por esse processo, como o crescimento das desigualdades sociais ou a aceleração da dinâmica da competitividade econômica entre os países. São mudanças importantes que transformam significativamente as prioridades educacionais dos governos, bem como o ambiente socioeconômico onde os agentes educacionais atuam. E não é só isso. A globalização gera novos desafios para os sistemas educacionais e altera a capacidade dos Estados e dos organismos de segurança social de responder a esses problemas por meio de políticas educativas. Por exemplo, no contexto de uma economia globalizada, muitos governos têm dificuldade para responder diretamente às novas demandas educacionais, o que facilita ao setor privado assumir um papel maior na prestação e no financiamento da educação.

Quais organizações internacionais e políticas estão moldando a agenda educacional e disseminando práticas educativas globais?

Sobre esta questão é inevitável começar pelo famoso Pisa [Programa Internacional de Avaliação de Estudantes] da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico], que avalia e compara as competências adquiridas por alunos de 15 anos em uma ampla gama de países. Esse relatório exerce nos governos uma pressão sutil, mas ao mesmo tempo muito eficaz, para que modifiquem seus sistemas educacionais. Ele, inclusive, tem gerado modelos de referência, como o da Finlândia, que muitos governos têm buscado imitar. A própria OCDE, por meio de periódicos como o Pisa em Foco, também recomenda aos países quais práticas e políticas podem levar ao sucesso educativo tomando como base os resultados da prova. Os países que levam mais a sério os desafios deste relatório têm tentado melhorar a sua educação por meio da equidade. Em contrapartida, aqueles que procuram resultados mais imediatos se limitam a intensificar a carga curricular nas áreas de conhecimento avaliadas pelo Pisa. Também cabe mencionar, principalmente nos países dependentes financeiramente, a grande influência exercida pelas instituições financeiras internacionais e pelos bancos de desenvolvimento em função da capacidade deles de condicionar a concessão de crédito. Ainda sobre esta questão, é importante referir novamente os efeitos indiretos da globalização e, em particular, as organizações internacionais. Por exemplo, em países europeus, especialmente nos países do sul da Europa, as políticas macroeconômicas e a austeridade impostas pela União Europeia – e pelo FMI – tiveram um efeito mais significativo sobre os sistemas de ensino dos países-membros que a própria “agenda educacional europeia”. Essas políticas de austeridade impuseram cortes orçamentários muito graves na educação e, claramente, limitaram a margem de ação política dos governos nesta área.

Quais fatores motivam os governos a adotar novas políticas?

Para responder a esta pergunta é melhor partir de um exemplo concreto como a privatização da educação, uma política que ocupa, sem dúvida, uma posição central na agenda global da educação. Mas, na realidade, não é possível identificar um único padrão que explique por que os países importam ou adotam políticas educacionais de privatização em escala global. As razões que impulsionam os governos variam muito.

Desde os anos 80, com o surgimento do neoliberalimo, a privatização da educação tem tido grande aceitação entre os governos conservadores e liberais, que acreditam que o setor privado é inerentemente superior ao público na gestão de todos os tipos de serviços, incluindo a educação. No entanto, nos últimos anos, estamos vendo a privatização avançar também em países com uma tradição social-democrata, onde os governos adotam medidas de privatização educacional não porque eles achem que o setor privado é melhor do que o público, mas porque eles pensam que a privatização pode ser um bom caminho para a desburocratização dos sistemas de segurança social e para a promoção de oferta educativa mais diversificada. Em países de baixa renda, por outro lado, a privatização avança sob lógicas muito diversas. Nas últimas décadas, muitos têm recebido pressões internas e externas para expandir a educação, o que, a priori, é muito positivo. O problema surge quando, diante de restrições financeiras, os gestores pensam que a única forma de expandir o acesso à educação é por meio do setor privado. Sob uma lógica semelhante, a privatização também avançou nos países mais desenvolvidos em profunda crise econômica. 

Também acrescentaria que em países europeus com uma presença significativa de escolas religiosas, como Bélgica, Holanda, Espanha e muitos países da América Latina, as políticas de terceirização do setor privado são comuns. Estas políticas de “aliança” com o setor de ensino privado, principalmente o religioso, são rea­lizadas por uma série de razões, entre elas para conferir eficiência ao setor, para garantir a liberdade na oferta de ensino para a população e para responder a um lobby que costumava ser muito poderoso, como o da Igreja Católica ou Protestante. Finalmente, outra razão para o avanço da privatização é a existência de uma série de organismos internacionais e consultorias influentes que, como mencionei acima, estão promovendo de forma entusiástica tais políticas e tentando convencer os governos de seus potenciais benefícios. No entanto, vale dizer que a privatização geralmente é promovida por razões ideológicas, já que não há evidências acadêmicas suficientes para justificar a política a favor da privatização.

Quais são as principais diferenças desse processo nos países desenvolvidos e nos países em desenvolvimento? 

Hoje em dia estão muito diluídas as diferenças na forma como operam os mecanismos da globalização. O exemplo que acabei de colocar sobre o sul da Europa – sobre as condicionalidades e imposições das organizações internacionais – mostra isso. Outros exemplos podem ser extraídos das fundações filantrópicas que atuam não só em países pobres, mas também em países ricos. Nos Estados Unidos, a Fundação Bill e Melinda Gates tem uma grande capacidade de influenciar a agenda educacional do governo federal e de muitos de seus membros e, entre outras coisas, está conseguindo promover eficazmente o modelo das escolas charter. Apesar disso, os países de baixa renda, que continuam dependentes de financiamento externo, são sim mais vulneráveis ​​aos critérios e prioridades estabelecidos pelos países ricos e organizações doadoras. Em muitos países onde houve uma descentralização da educação, sem garantia de transferência de competências para o nível local, se abriu um grande mercado para as consultorias internacionais, como a Pearson ou a Cambridge Education, que vendem pacotes curriculares e de reformas educativas com os quais prometem resolver muitos problemas educacionais. Esse mercado de consultoria internacional não prospera, pelo menos com tanto êxito, nos países mais ricos, pois eles contam com uma maior capacidade técnica nos governos regionais e locais para resolver certos problemas sem a necessidade de recorrer a intermediários externos.

Quais são os impactos dessas políticas na prática educacional? 

Muitos estudos sobre a relação entre globalização e educação, especialmente aqueles com uma visão mais antropológica, mostram que a adoção formal de políticas globais pelos governos nem sempre se traduz em mudanças reais nas práticas educativas aplicadas em escolas ou na sala de aula. Outros estudiosos da globalização educacional, como Gita Steiner-Khamsi e seus colegas do Teachers College [Faculdade de Educação da Universidade de Columbia], têm mostrado que muitos governos podem estar adotando políticas educacionais globais para aderir às exigências das organizações internacionais a fim de legitimar suas políticas ou, especialmente no caso dos países em desenvolvimento, para obter financiamento externo. Mas, uma vez alcançados os recursos, os governos continuam­ com suas práticas habituais. Essa visão é muito interessante e relevante, pois, de fato, os sistemas educacionais formam redes de agentes, instituições e interesses muito amplos e complexos de tal forma que tendem a ser resistentes a mudanças bruscas ou às constantes demandas por reforma, tanto externa como interna, que recebem. No entanto, não podemos subestimar o fato de que muitas organizações internacionais têm sido muito eficazes tanto em alterar as prioridades e os objetivos educacionais de muitos governos como em divulgar soluções e políticas educacionais.

Há algum efeito positivo das políticas educacionais? Elas podem melhorar o acesso global à educação? 

É claro que o simples fato de que há cada vez mais países procurando melhorar a educação a partir de boas práticas internacionais é positivo em si – desde que essa melhoria não esteja relacionada exclusivamente com os resultados dos testes padronizados. Além disso, há agendas educacionais internacionais, como a Educação para Todos, lançada no Congresso Mundial de Educação, realizado em Jomtien (Tailândia), em 1990, que tiveram e têm impactos muito positivos no campo da educação para o desenvolvimento. Agendas como essas se tornaram aliadas de movimentos e grupos sociais que defendem o direito universal à educação e possibilitaram que muitos governos de países em desenvolvimento e agências internacionais de desenvolvimento concentrassem seus esforços para viabilizar e ampliar o acesso de crianças e jovens a uma educação de qualidade.

Você cita em seus textos um estudo, feito por três pesquisadores, sobre transferência condicionada de renda no Brasil. Poderia dar mais detalhes ? 

Conheço bem o trabalho de Bonal, Tarabini e Rambla, já que fizemos parte do mesmo grupo de pesquisa, o GEPS (Globalização, Educação e Política Social). O mecanismo estudado por eles é um bom exemplo de política que passou a integrar fortemente a agenda global e, sobretudo, um grande exemplo de como uma política global pode se recontextualizar e ter impactos distintos em diferentes territórios. Eles apontam que, no Brasil, o mesmo programa de transferência de renda condicionada, o Bolsa Escola, foi adotado de forma diferente pelos governos locais. Especificamente sobre isso, eles mostraram que em função de alguns aspectos, como a intensidade da transferência monetária ou o nível de componentes educacionais incluído no projeto final, a Bolsa Escola teve efeitos sociais e educativos muito variados.

Antoni Verger - Ph.D. em Sociologia, Pesquisador da Universidade Autônoma de Barcelona.

Fonte: http://revistaeducacao.uol.com.br