sábado, 24 de maio de 2014

POR QUE IR À ESCOLA?

Bernard Charlot, professor titular emérito em ciências da educação da Universidade de Paris, aborda a relação dos alunos com o saber

Muitos estudantes, desmotivados com a escola que frequentam, devem se perguntar com frequência: por que e para que ir à escola? Em busca de respostas para essas questões, o professor titular emérito em ciências da educação da Universidade de Paris, e professor visitante na Universidade de Sergipe, Bernard Charlot, participou hoje (24/05) de um talk show naEducar Educador 2014 e Bett Brasil 2014, que teve como tema a relação dos alunos com o saber.

Para começar sua apresentação, o especialista, que vive no Brasil há 10 anos, buscou o ponto de vista do professor e fez algumas perguntas que considera fundamentais. “Quando vocês vão à escola pela manhã, o que têm em mente? ‘Que sorte, vou contribuir mais um dia para formação da juventude brasileira?’ Ou será que vocês pensam que terão que aguentar mais um dia essas ‘pragas’? Essas questões são importantes porque mudam a forma como você vai ensinar. A questão fundamental não é pedagogia tradicional ou pedagogia construtivista”, destaca.

Revista Educação: leia mais sobre o tema 

Em seguida, ele partiu para o sentido de o aluno ir à escola. “O que eu quero saber, do ponto de vista pedagógico, é qual o sentido de ele estudar ou se recusar a estudar”. Segundo ele, as crianças gostam de ir à escola, porque lá estão seus amigos. “Eles também gostam de saber. O problema é que têm que aprender”.

Para exemplificar, ele citou um adolescente francês que disse a ele que gostava da escola – só não gostava dos professores e das aulas... “E Muitos jovens pensam assim mesmo. Diante disso, cheguei a minha equação pedagógica, que é simples de dizer e um pouco mais complicada de resolver: aprender é igual a atividade intelectual + sentido + mais prazer. Se não tiver atividade intelectual, não vale a pena”, afirma Charlot.

Útil x importante

Segundo ele, ao contrário do que acha o aluno, não é o professor que coloca o saber na cabeça do estudante, ele apenas ajuda. O problema do professor é “o que posso fazer para que o aluno faça?”, pois é o estudante que deve fazer o trabalho de atividade intelectual. “Mas não se fica em uma atividade intelectual que não faça sentido. É claro que não se aprende sem esforço, e o esforço também pode ser feito com prazer. A questão é que esse esforço faça sentido”, destaca.

De acordo com Charlot, a questão didática que temos que enfrentar é a diferença entre o que ele chama de eu empírico e o eu epistêmico. O eu empírico é a criança, o adolescente, o eu da vida cotidiana. O eu epistêmico é o do pensar. “Por exemplo, muitas vezes o professor diz para o aluno ‘diga o que você pensa’, mas como fazer para pensar? É uma coisa que não explicamos aos alunos. Essa é a questão fundamental do ensino médio. Alguns alunos não sabem o que significa pensar.”

Segundo ele, esses estudantes não sabem o que o professor espera, e dão sua opinião. E dar a opinião não significa pensar. “Os alunos não sabem o que significa pensar porque os alunos não têm oportunidade de ver o professor pensar. O professor pensa antes de entrar na sala, ao preparar a aula em casa”, destaca.

O especialista também convocou os professores a “sair da mentira de que ensinamos coisas úteis”. “Ensinamos também coisas úteis, mas também muitas coisas sem importância. Gramática não serve para nada, mas não estou dizendo que não se deve ensinar. Gramática é importante porque o homem tem linguagem e aprender sobre a linguagem é aprender uma coisa humana fundamental. Temos que juntar o ensino útil para o eu empírico com o ensino importante para o eu epistêmico”, acredita.

Fonte: 
http://www.educar.editorasegmento.com.br

quarta-feira, 21 de maio de 2014

QUANTO DE BARBÁRIE EXISTE AINDA DENTRO DE NÓS?

''Demos um dia, há milhares de anos, o salto da animalidade para a humanidade, do inconsciente para o consciente, do impulso destrutivo para a civilização. ''

Perversidades sempre existiram na humanidade, mas hoje com a proliferação dos meios de comunicação, algumas ganham relevância e suscitam especial indignação. O caso mais clamoroso, nos inícios de maio de 2014, foi o linchamento da inocente Fabiane Maria de Jesus em Guarujá no litoral paulista. Confundida com uma sequestradora de crianças para efeito de magia negra, foi literalmente estraçalhada e linchada por uma turba de indignados. 

Tal fato constitui um desafio para a compreensão, pois vivemos em sociedades ditas civilizadas e dentro delas ocorrem práticas que nos remetem aos tempos de barbárie, quando ainda não havia contrato social nem regras coletivas para garantir uma convivência minimamente humana. 

Há uma tradição teórica que tentou dilucidar tal fato. Em 1895 Gustave Le Bon escreveu, quiçá por primeiro, um livro sobre a “Psicologia das massas”. Sua tese é que uma multidão, dominada pelo inconsciente, pode formar uma “alma coletiva” e passa a praticar atos perversos que, a “alma individual”, normalmente jamais praticaria. O norte-americano H. L. Melcken ainda em 1918 escreveu “A Turba” um estudo judicioso sobre o fato e mostra a identificação do grupo com um lider violento ou com uma ideologia de exclusão que ganha então um corpo própro e, sem controle, deixa irromper o bárbaro que que ainda se aninha no ser humano. Freud em 1921 retomou a questão com o seu “Psicologia das massas e a análise do eu”. Os impulsos de morte, subsistentes no ser humano, dadas certas situações coletivas, diz ele, escapam ao controle do superego (consciência, regras sociais) e aproveitam o espaço liberado para se manifestar em sua virulência. O indivíduo se sente amparado e animado pela multidão para dar vazão à violência escondida dentro dele. 

A análise mais instigante foi feita pela filósofa Hannah Arendt. Em 1961 acompanhou em Jerusalém todo o processo de julgamento do criminoso nazista Adolf Eichamann por crimes contra humanidade. Arendt escreveu em 1963 um livro que irritou a muitos:”Eichmann em Jerusalém:um relato sobre a banalização do mal”. Ela cunhou a expressão “a banalização do mal”. Mostrou como a identificação com a figura do “Führer” e as ordens dadas de cima podem levar às piores barbaridades com a consciência mais tranquila do mundo. Mas não só em Eichmann se expressa a barbárie. Também naqueles judeus que extravassavam seu ódio a ele, exigindo os piores castigos, como expressão também de um mal interno. 

Que concluimos disso tudo? Que um conceito realista do ser humano deve incluir também sua desumanidade. Somos sapentes e dementes. Em outras palavras: a barbárie, o crime, o assassinato pertencem ao âmbito do humano. 'Demos um dia, há milhares de anos, o salto da animalidade para a humanidade, do inconsciente para o consciente, do impulso destrutivo para a civilização.' Mas esse salto ainda não se completou totalmente. 

Carregamos dentro de nós, latente mas sempre atuante, o impulso de morte. A religião, a moral, a educação, o trabalho civilizatório foram os meios que desenvolvemos para pôr sob controle esses demônios que nos habitam. Mas essas instâncias não detém aquela força que possa submeter tais impulsos às regras de uma civilização que procura resolver os problemas humanos com acordos e não com o recurso da violência. 

Cumpre reconhecer que vigora em nós ainda muita barbárie. Não diria animalidade, pois os animais se regem por impulsos instintivos de preservação da vida e da espécie. Em nós esses impulsos perduram mas temos condições de conscientizá-los, canalizá-los para tarefas dignas, através de sublimações não destrutivas, como Freud e recentemente, o filósofo René Girard com seu “desejo mimético” positivo tanto insistiram. 

Mas ambos se dão conta do caráter misterioso e desafiante da persistência desse lado sombrio (pulsão de morte em dialética com a pulsão de vida) que dramatiza a condição humana e pode levar a fatos irracionais e criminosos como o linchamento de uma pessoa inocente. 

Todos pensamos nos linchadores. Mas quais seriam os sentimentos de Fabiane Maria de Jesus, sabendo-se inocente e sendo vítima da sanha da multidão que faz “justiça” com suas próprias mãos? A questão principal não é o Estado ausente e fraco ou o sentimento de impunidade. Tudo isso conta. Mas não esclarece o fato da barbaridade. Ela está em nós. E a toda hora no mundo ela ressurge com expressões inomináveis de violência, algumas reveladas pela Comissão da Verdade que analisa as torturas e as abominações praticadas por tranquilos agentes do Estado de terror, implantado no Brasil. 

O ser humano é uma equação ainda não resolvida: cloaca de perversidade para usar uma expressão de Pascal e ao mesmo tempo irradiação de bondade de uma Irmã Dulce na Bahia que aliviava os padecimentos dos mais miseráveis. Ambas realidades cabem dentro desse ser misterioso – o ser humano – que sem deixar de ser humano ainda pode ser desumano. 

Temos que completar ainda o salto da barbárie para a plena humanidade. A situação violenta do mundo atual, também contra a Mãe Terra nos deixa apreensivos sobre a possibilidade de um desfecho feliz deste salto. Só mesmo um Deus nos poderá humanizar. Ele tentou mas acabou na cruz. Um dos significados da ressurreição é nos dar a esperança que ainda é possível. Mas para isso precisamos crer e esperar 

Leonardo Boff, Professor, Filósofo, Teólogo e Escritor 
Escreveu Hospitalidade: direito e dever de todos, Vozes, Petrópolis 2005. 

Artigo Publicado em sua página em 20/05 2014
Fonte:  http://leonardoboff.wordpress.com/