terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

VOU TE ABRAÇAR

"Lá há um jardim encantado onde planto árvores para meus amigos que morrem."

Escrevi-lhe então a carta abaixo: 

“Meu querido, muito querido Ladon: Tantos anos se passaram... E perdi contato com você. Mas você esteve sempre no meu coração e eu o imaginava caminhando sozinho pelas montanhas, em busca de silêncio, de comunhão com Deus e com a natureza. Contei muitas vezes a estória da nossa estranha amizade — porque é estranho pensar que duas pessoas que nunca se encontraram pudessem ser tão amigas. E agora me contam que você está se preparando para o momento de ficar encantado...

Foi-me dito que você tomou a decisão de viver o resto da sua vida da forma mais livre e mais corajosa. A vida é preciosa e deve ser bebida até sua última gota. Quando chegar a minha vez espero ter a sua liberdade e a sua coragem. A vida é bonita e é preciso que a morte seja bonita também. É trágico que nos dias de hoje, como resultado da parafernália médica, a morte tenha se tornado feia, solitária e amedrontadora. Um dos nossos poetas chamou a morte de ‘minha mais nova namorada’... Talvez ele estivesse pensando na morte como a Pietà — a morte como uma mulher que recebe o nosso corpo no seu colo.

Tenho um lugar nas montanhas. Há riachinhos, cachoeiras, árvores, pássaros de todos os tipos, de tucanos a beija-flores, e borboletas... Lá de cima eu vejo o horizonte, ao longe... Dentro de mim mora um menino. E esse menino fez um balanço numa árvore. E quando estou balançando, tentando tocar as folhas com o dedão do pé, tenho a impressão de que estou quase voando... Lá há um jardim encantado onde planto árvores para meus amigos que morrem. Já plantei minha própria árvore, pois nunca se sabe ao certo quando a nossa hora vai chegar.

Todas as árvores são de florestas tropicais com uma exceção: um pinheiro canadense, nome científico ‘liquidambar’, com folhas como mãos abertas com dedos esticados. Por muito tempo procurei essa árvore, sem sucesso. Mas uma amiga me deu uma muda como presente de aniversário. Eu a plantei numa encosta de onde se vê o horizonte. Acho que ela está gostando do clima. Mas ainda não lhe dei nenhum nome. Será que você concordará se eu lhe der o nome de Ladon Sheats? Assim, quando alguém me perguntar pelas razões daquele nome, eu contarei a sua estória... E as pessoas saberão que há, nesse mundo, pessoas bonitas que tornam a vida digna de ser vivida...

Estou lhe enviando esse livro que escrevi para minha filha, quando ela tinha 3 anos. Era cedo de manhã. Eu ainda estava dormindo. Ela saiu do seu quarto, veio até o meu lado, me acordou e me perguntou: ‘Papai, quando você morrer você vai sentir saudades?’ Eu fiquei perplexo, sem palavras. Ela não havia tido nenhuma experiência com a morte.

Como é que aqueles pensamentos apareceram na cabecinha dela? E então ela acrescentou: ‘Não chore porque eu vou abraçar você...’ Essas palavras se tornaram no centro da estória 'A Montanha Encantada dos Gansos Selvagens'. Não importa que você não entenda português. Aceite esse livro como um sacramento de amor. Nós nos encontraremos algum dia, em algum lugar... Seu amigo e irmão, Rubem Alves.”

* * *
Sempre que ouço a canção 'The Lord of the Dance', seja no CD 'Simple Gifts', seja no 'Appalachian Spring', seja na menina que toca a flauta doce, eu me lembro do Ladon Sheats.

A árvore está lá na montanha em Pocinhos do Rio Verde, subindo para os céus. Mas eu fico triste porque o liquidambar ficou mudo. Não conta mais estórias...

Por Rubem Alves

Fonte: Correio Popular - 02/02 - 2014