quarta-feira, 9 de junho de 2010

O Jurista e a luta de ideias

Instrumento contraditório
A sociedade atual se apresenta sob a hegemonia da classe capitalista. Nessa realidade o resultado do processo legislativo configura um ordenamento jurídico que tem por fundamento a manutenção das diferenças sociais – onde a propriedade privada dos meios de produção é um dos seus grandes pilares. O Estado se expressa através da lei, tendo na Constituição a síntese de seus objetivos. Os valores que se cristalizam na constituição servem, ao mesmo tempo, de fundamento e limitador para ação do Estado. Então nasce um ordenamento contraditório, pois nele encontraremos elementos que garantem a dominação da classe no poder, mas também encontraremos expressos nesse ordenamento os interesses dos extratos sociais que não detém o poder. O Estado não pode assumir seu lado de classe, deve parecer neutro perante a sociedade. Se manifestasse expressamente seu caráter de classe, perderia sua legitimidade para mediar as relações sociais. Aí reside o espaço que devemos explorar. É na contradição interna do ordenamento jurídico que os juristas vinculados aos interesses dos excluídos podem ajudar na luta de ideias.

Um exemplo concreto

Sou servidor do Poder Judiciário, numa comarca que atuei havia um processo de reintegração de posse, referente a uma área ocupada por 300 famílias. Já havia a determinação de reintegração em favor do proprietário, dada pelo juiz anterior. O oficial de justiça pediu ao magistrado o reforço da Brigada Militar para poder cumprir a ordem judicial. Minha função era elaborar uma proposta de decisão e apresentar ao magistrado. Não podia dar uma contra-ordem, pois o ordenamento jurídico estava ao lado do proprietário. Então, embasei meu parecer na dignidade da pessoa humana. Não discuti a propriedade, mas suspendi, por tempo indeterminado, a reintegração, até que o poder público propiciasse condições dignas para a saída daquelas famílias.

O direito do proprietário sobre a terra não podia ser retirado, pois ele estava sob o amparo do ordenamento jurídico, mas aquelas famílias tinham que ter sua dignidade respeitada, pois nosso ordenamento também defende esse princípio. Não existia propriedade que tirasse a dignidade dos ocupantes, não podiam ser “jogados pra fora” como queria o proprietário da área. Nesse conflito de direitos o Estado, mesmo na ordem capitalista, não pode simplesmente tomar o lado da propriedade. Porque a propriedade privada e a dignidade da pessoa humana estão no mesmo patamar jurídico, são preceitos constitucionais - servem de fundamento para a ação e limitação do Estado Brasileiro.

Na prática, a reintegração foi suspensa por quatro meses. Nesse ínterim, a comunidade se mobilizou e procurou a prefeitura e conseguiu a decretação da utilidade pública daquela área. No final, com o prazo que a decisão judicial propiciou, foi possível reverter todo o destino daquelas famílias. Todos permaneceram na área e hoje são os legítimos proprietários. Esse é só um exemplo, nosso ordenamento tem várias contradições, que se bem manejadas podem ajudar na garantia de direitos.

O papel do jurista

Ante um ordenamento jurídico contraditório e, em última instância, mantenedor do sistema capitalista, aqueles que operam com esse ordenamento têm função importante na luta de ideias, seja em favor dos excluídos ou contra eles.

O jurista pode ser um servo da lei, tornando-se, por consequência, um servo da manutenção do “status quo”. Entretanto, se for consciente de sua função, se parar para refletir quanto às contradições existentes na sociedade atual, pode se rebelar e se colocar a serviço da transformação social. Quando toma essa postura e se depara com uma lei injusta, deve revelar a todos os equívocos de tal lei, suas impossibilidades e aporias.

Os setores progressistas devem criar seus juristas - com o objetivo de disputar a hegemonia no campo do direito. O jurista, vinculado aos interesses das maiorias, deve defender e incorporar seus valores, mostrando sua universalidade e sua maior capacidade de incluir a maioria dos setores sociais junto ao seu projeto político. Deve ter uma atuação firme e forte, ajudando no enfrentamento das injustiças sociais impostas pelo Estado capitalista.

Direito e luta de ideias

Num país como o Brasil, que para ser entendido deve se ter em conta o conceito de revolução passiva, onde as transformações nunca se deram com uma ruptura única e definitiva, mas dentro de um processo, longo, contraditório e lento de transições. E onde o Estado sempre teve – e continua tendo - um papel decisivo no desenvolvimento econômico, político e social. Nenhuma tática política será eficaz se não incluir em seu campo de atuação a esfera jurídica como espaço de luta e de disputa de ideias.

Uma ordem social, para se consolidar, precisa de valores que a legitimem e que sirvam de base para a sua consolidação. Em dado momento histórico esses valores se cristalizam em instituições que corporificam tais valores e simbolizam o avanço social. Lembremos o que representou os Sovietes para luta socialista no século XX. Nesses momentos – quando os valores se corporificam em instituições -, as ideias ganham força e dão consistência às transformações sociais e políticas.

A luta de ideias é um campo de batalha importante para a transformação social. Precisamos ocupar espaço na luta de ideias no direito, dada a importância do campo jurídico na manutenção e transformação das relações de poder. O jurista foi um intelectual que ocupou um papel importante para a consolidação da ordem atual. Precisamos formar juristas que tenham uma relação estreita com os diversos movimentos sociais. Juristas orgânicos que incorporem as bandeiras desses lutadores, que deem um conteúdo político a essas bandeiras e direcione-as para a consolidação de valores sociais mais avançados. Valores esses que sirvam de justificação e legitimação para uma nova ordem política e social: o socialismo.

* Leandro Alves é Servidor do Poder Judiciário Gaúcho, ex-assessor Sindical, ex-assessor Parlamentar. E-mail: leandroalvesrs@hotmail.com

Fonte: http://www.vermelho.org.br/coluna