sexta-feira, 23 de abril de 2010

“Procurando Elly”

Cloves Geraldo *

Escolha punida
O direito de a mulher escolher seu companheiro é o centro do drama dirigido pelo iraniano Asghar Farhadi

Com economia de meios e incidentes encadeados de forma a criar uma multiplicidade de climas, o diretor iraniano Asghar Farhadi põe o espectador frente a vários caminhos que, no final, ficam abertos. Por mais que ele, espectador, tente aceitar o desfecho que o filme lhe apresenta, fica com a impressão de que ele está subentendido. Ou seja, o que Farhadi quer dizer está para além da tela. Nisto se constitui o achado deste “Procurando Elly”. Em certo momento, dá para fazer paralelos com os crimes praticados contra a mulher no Brasil, onde sua decisão de romper uma relação acaba pondo sua vida em jogo.

Percebe-se que na sociedade iraniana, mais rígida em seus códigos éticos e morais, Elly (Taraneh Alidousti) tem pouca ou nenhuma escolha, enquanto que no Brasil, com toda a “permissividade”, os registros de violência são ditados igualmente pela persistência de códigos patriarcais, machistas e reativos. Daí as semelhanças que vão surgindo ao longo do filme, pondo o espectador diante de um espelho de sua própria sociedade. Pois o que está em jogo nos entrechos que se encadeiam mudando a narrativa a todo instante é a procura desesperada pela identidade de Elly.

Afinal quem é essa jovem professora que se transforma ora em vítima, ora em culpada? Os entrechos vão colocando ao longo do filme as diversas visões dos personagens, masculinos e femininos, compondo um mosaico que no final dará uma idéia de quem é Elly, mas não suas reais intenções. Nisto se constitui a beleza deste “Procurando Elly”. Ela é quase um esboço de personagem. Aparece não em sua intensidade, mas em fios, em instantes, como quando solta papagaio com as crianças na praia, ou impaciente dizendo à sua amiga Sapideh (Golshifteh Farahani) que tem de voltar logo à Teerã.

Elly simboliza mulher iraniana

É tudo que se vê dela. Sua inquietação é tal que o espectador desconfia que ela seja ligada a alguma organização política contraria ao regime dos aiatolás. E tem uma tarefa urgente a executar não podendo mais desfrutar o feriado com Sapideh e os três casais de amigos no litoral de Teerã. Principalmente Ahmed (Shahab Hosseini), que veio da Alemanha para com ela ficar noivo. Um fio que uma vez puxado vai trazendo complicações de toda espécie para gerar uma confusão tal que o grupo antes unido se desestrutura. Farhadi dota-o de várias rodilhas, que se prendem à velha casa de praia rústica, vazia, cheia de partes quebradas; à praia de areia suja, às marés revoltas, às tentativas de Sapideh de  mantê-la junto deles, uma vez que precisa dela, Elly, para o feriado ser completo.

Um incidente irá desencadear uma série de mal entendidos, a ponto do que era equilíbrio se tornar seu elo mais fraco: a absorção de Elly pelo grupo. O drama familiar, com seus incidentes normais, vira, de repente, pesadelo. Elly desapareceu e a tragédia assume outro caráter. Farhadi constrói e desconstrói ao mesmo tempo todo arcabouço dramatúrgico do filme de suspense. Por que ela desapareceu torna-se mais importante do que explicar como isto se deu. Elucidar este mistério poderá livrar Sapideh, que organizou o noivado dela com Ahmad, de ser acusada de cumplicidade com Elly.

Diretor deixa espaço para espectador pensar

É então que Farhadi usa os entrechos para descontruir o que o espectador acha que está entendendo. Não basta Sapideh revelar as razões de Elly para romper uma relação que não mais atende a seu desejo, é necessário introduzir outro personagem para o espectador compreender o que ele, Farhadi, quer dizer. O jovem Alireza, quase em pânico, completará com seu comportamento o que ele, diretor, quer dizer ao espectador: toda esta confusão se deve única e exclusivamente ao papel da mulher na sociedade iraniana. Até esta conclusão, o espectador terá puxado vários fios, pistas falsas, choques de casais – de Amir com Sapideh, de Spyman com Shohreh -, buscas de Ahmed e Nauzidehr e do desespero de Sapideh, acusada de ter causado todo o sofrimento do grupo.

No final, quando estiver deixando o cinema, o espectador ainda estará montando em sua cabeça este mosaico de pistas. Do incidente na praia, que levou todos a procurá-la, até a chegada de Alireza, “Procurando Elly” não tem nada demais. Usa poucos cenários, a casa em reforma, metáfora sobre a sociedade iraniana, diversos personagens, e encadeia os entrechos com competência. Desta forma, seria mais um drama familiar que vira um bom filme de suspense. Só isto. O que o torna diferente, cheios de nuanças, entrechos criativos, são suas elipses, o subentendido, o que deixa para o espectador preencher. A chave para isto é o diálogo de Alireza com Sapideh: “Só me diz uma coisa. Ela falou que gosta de mim? Sim ou não? – Sim”, responde Sapideh. Toda a trama do filme é traduzida neste diálogo (o espectador sabe se é mentira ou não).
Todo o arcabouço moral se perpetua. E apenas Elly e Sapideh são punidas.


Procurando Elly” (“Darbareye Elly”). Drama. Irã. 2009. 119 minutos. Roteiro/Direção: Asghar Farhadi. Elenco: Golshifteh Farahani, Taraneh Alidousti, Shahab Hosseini, Merila Zarei, Peyman Moadi.
(*) Urso de Prata no Festival de Berlim, 2009.
* Jornalista e cineasta, dirigiu os documentários "TerraMãe", "O Mestre do Cidadão" e "Paulão, lider popular". Escreveu novelas infantis,  "Os Grilos" e "Também os Galos não Cantam".

Fonte: http://www.vermelho.org.br/coluna